Passos Arcanos - Capítulo 189
Por longos três dias, os tomaram a estrada fria. Carsseral não estava disposto a viajar pelo céu, e Nayomi gostava de estar mais no chão do que no ar. Era melhor para conversar e ter um entendimento melhor das capacidades um do outro.
Orion conheceu o lado técnico da Tenente, uma verdadeira Mestre de Armas. Espada, lanças, adagas ou arco, ela manejava com extrema perfeição tendo uma vasta compreensão do uso da mana nas armas e também nos estilos corporais, que ela também conhecia bastante.
Foi a primeira vez que alguém de sua geração rivalizava em termos de combate. No Estilo Nortenho, visando a defesa ao ataque, ao Sulista, concentrando-se na agilidade dos pés. O básico entre as artes marciais do continente e as esquecidas, a conversa durava horas e ambos mostravam um ao outro a forma básica de algumas delas.
No quarto dia, fizeram um breve duelo entre palma e socos, com um metro de distância. Nayomi demonstrou o ‘Corta Cura’, capaz de desligar os pontos de mana no ombro, peito e barriga, atingindo pontos precisos.
Orion a deixou fazer e ficou bem surpreso. Sentia a dor no peito, não era tanta, porém, o fluxo de mana travava e a dormência no membro diminuía seu ritmo. Em resposta, ensinou como os ‘Gatilhos do Gato Branco’, a arte que aprendeu nos livros de Magnus replicava chutes diagonais com uma manta criada no peito e no rosto, protegendo-os.
E por incrível que fosse, Nayomi Defoul assimilava o conteúdo perfeitamente. A estranheza que sentia por aquela mulher aumentava mais e mais, ela era diferente de Silena, diferente de Atena, diferente das diversas que encontrou pelo seu caminho.
Não se deixava intimidar, grandeza e força residiam no sorriso leve e modesto. Não se gabava por saber muito, como os Magos costumavam ser ou os Cavaleiros esnobes sempre arrogantes por sua maestria em armas.
Se ver em outra pessoa era a coisa mais complexa para Orion Baker. Mais por acreditar que sua historia até aquele instante não era grande, sacrifícios feitos, decisões erradas e lutas que provavam o valor de sua existência, esse era o grande momento do seu último ano. Neyomi compartilhava uma situação parecida por viver a beira do Império Nevasca, e ter uma mãe como Matilda Defoul, poderosa e rígida, com imenso senso de dever.
Nada além de uma soldado perfeito deveria existir sob a carcaça de sua filha — o mesmo procedimento em si, ao se tornar o melhor Escolástico, pelo seu pai.
Itauba se mostrou mais perto no sexto dia. Eles acamparam um quilômetro da cidade murada, com uma fogueira pequena e comendo coelhos. Conversaram sobre os Impérios e Maverick, ela quis saber mais da relação dos Baker e como Orion se encaixava no meio.
Uma história demorada, Orion teve que admitir. E nenhum segundo sequer, Nayomi o interrompeu. Os olhos negros iluminados pela tocha, uma atenção que a deixava de boca aberta e erguendo sobrancelhas algumas vezes. Sua pele rosada e os cabelos negros, com alguns fios escapulindo e descendo pela bochecha.
— Honra é uma palavra difícil — disse Nayomi, no fim. — Você tem lutado bastante esse tempo todo. Nunca fez uma pausa. Deveria tentar de vez em quando.
— Pausa?
— Seu corpo vai sobrecarregar se continuar enfrentando inimigos poderosos. Sua mente pode estar acima do cansaço, sempre ignorando o cansaço acumulado. Os melhores soldados conhecem os três limites de si.
— Corpo, mente e alma — recitou por um dos livros que havia lido tempos atrás. — Nunca levei eles em conta. Os Pilares do Topo falavam mais alto.
— Poder, Força e Influência, é isso que vem procurando para se tornar um Rei. — Ela não dizia com desprezo. Cutucava a brasa da fogueira, remodelando as cinzas em círculos. — Então, quando chegar a hora, deixará o norte, é como costuma fazer as coisas, certo?
Houve um pequeno intervalo entre seus olhares. Queria acreditar que aquela pergunta não fosse pessoal.
— Tenho certeza que algum dia terei que ir, só não sei quando. Gosto de viajar pelo mundo, conhecer as diversas culturas, e lutar. Sempre quis lutar e agora eu posso, mas meu objetivo principal permanece lá em cima.
— E o Masquerati vai ficar de olho em você.
— Ele sempre esteve. Existe um outro Baker que pode atrapalhar seus planos, mas sem nem ele sabe onde está, eu também não tenho como saber. — Pensar em Omar, a lembrança mais vivida, de sua ida, trazia dor ao coração. — Uma outra pessoa que tenho certeza que entrará no meu caminho algum momento.
— Não é um objetivo ruim, mas não é o único caminho. Sempre existe a descrição, a camuflagem, como eu disse, fazer uma pausa é adequado para qualquer homem ou mulher. — Ela parecia decidida nisso. — Quando minha mãe retornar da sua viagem, talvez eu faça uma para aprimorar melhor meus estudos, aprendi bastante em seis dias com você um conhecimento que teria anos para mesclar com meu estilo de batalha.
Era compreensível. Diferente de Orion, as outras pessoas precisavam de tempo para incorporarem algo novo em si. Mesmo uma Mestre de Armas tinha seu próprio tempo. Lembrava sempre o motivo de se achar singular num mundo tão preto no branco.
Cinza, como meu pai dizia.
Aos poucos, as diversas frases que Oliver soltou durante a infância de Orion fazia efeito. Uma por uma, recordava como um ensinamento. Nunca esperou que fosse para estar do lado de fora, lutando contra inimigos de um Imperador ou compartilhando fogueira com uma mulher esbelta como Nayomi.
Eles descansaram lado a lado. Um cobertor e uma lona, deitaram-se cobertos por uma cabana móvel e dividiram cobertores. Olhando para o teto, o sono não chegava. Por longas duas horas, permaneceu fitando o verde musgo tendo Carsseral em cima de seu peito, enroscando em si, descansando toda aquela semana.
— Também tem problemas com o sono? — ouviu a direita, bem baixinho. — Insonia?
— Sempre tive.
Ela virou-se com delicadeza para cima, puxando a coberta até o pescoço.
— Somos bem parecidos nisso também. Quando eu era mais nova, eles tentaram me dar uma erva do sono, aqueles negócios com cheiro estranho, mas minha mão deixou. — Libertou um riso fraquinho, com névoa cinzenta. — Matilda Defoul já foi considerada a pior mãe do mundo por muitos da realeza, nunca pra mim. Sempre me deu uma chance, sempre quis o meu melhor, e ninguém sabia o que isso significava para a garotinha que corria e balançava um bastão de madeira. Os jornais nacionais procuravam entrevistas dela, faziam perguntas desonestas e queriam tirar sua credibilidade. Foram até o meu tio, mas nunca em mim.
— É óbvio que não fariam isso. Você era o pilar de sustento dela. Se os rumores fossem desfeitos pela própria filha, eles não teriam como continuar falando. — Orion sentiu um leve toque em sua mão, quente, enluvada. Os dedos de Nayomi subiram sua palma. — Nós temos pais que foram difamados a vida toda pelo que acreditavam ser o certo.
— E vivemos com o destino traçado. — Orion suavizou o aperto aos dedos dela. — Acha que algum dia, quando acabarmos tudo, vai haver um tempo de sossego?
— Quero acreditar que sim. Seria ruim se a gente ficasse igual a eles, não acha? — Virou o rosto e Nayomi já o fitava. O sorriso sumiu, a fraca luz da fogueira só lhe dava o brasão de um rosto maduro e quente, de lábios carnudos e um par de esferas negras excepcionais.
Desde quando isso existia dentro de si?
— Ficar igual a eles é uma das opções — respondeu Nayomi apertando seus dedos com mais força sobre sua palma. — A outra opção é não se tornar nada além de nós mesmos. Uma outra jornada, um outro conto, como nos livros. A história que nunca foi contada.
— De onde você saiu, Nayomi Defoul? — Sem perceber, Orion admirava os lábios e o nariz dela. — Porque nunca conheci ninguém como você antes?
— Minha mãe sempre dizia que uma flor da adversidade nasce em campos longe um do outro. Orion Baker, o Espada Destra, nas Caldeiras de Ilhotas. — Girou, se pondo em lateral e Orion a seguiu. Ela continuou em um sussurro: — E Nayomi Defoul, uma Mestre de Armas, no Império Nevasca.
— Longe demais para meu gosto.
Ela sorriu.
— Também acho. Como uma Tenente, nunca dividi minha cama com ninguém. É reconfortante ter alguém com quem conversar. — Ela ficou mais próxima. Orion conseguia ouvir sua respiração, mais do que antes, mais perto do que qualquer outra vez. E a vontade de inclinar a cabeça, apenas um pouco, e tocar sua boca… — O mundo inteiro pede por pessoas gentis, mas o próprio mundo nunca nos deu a chance de sermos.
— Somos obrigados a ser, para proteger o nome daquele que nos apoiam. Eu…
— Não precisa dizer, também quero isso.
As duas mãos se apertaram mais forte. Orion tocou sua testa na dela, e fechou os olhos. Suavidade, beleza, indescritível — um beijo leve, um calor ardente. Sentia o desejo, o seu próprio e o dela, crescia com ferocidade, mas respeitou o momento.
Tocou o queixo dela e respirou fundo ao se distanciarem.
— É a primeira vez que beijo alguém — admitiu meio envergonhado. — Espero que tenha sido bom.
— Abra seu olho. — Orion o fez. — Foi o meu também. E me sinto bem em dizer que foi mais honesto do que qualquer pessoa querendo me bajular. Obrigada por isso, senhor Baker.
— Eu quem agradeço, senhora Defoul.