Passos Arcanos - Capítulo 192
A fragata avistada fazendo a curva no rio continha as velas abertas, tomando o vento contrário e diminuindo sua velocidade para o porta. O imenso símbolo de um golfinho de chifre, datado por Glassiaus em Eras passadas, ainda soprava com fervor no coração dos soldados de Itauba.
De casco arranhado, mastro rachados e uma figura negra no meio do ambiente esbranquiçado, Fornalha recebia a fama por ser comandado por um dos melhores capitães da época, Sor Rogério Ibras.
E sua tripulação, diferente de qualquer outra com marinheiros ou corsários, regida pela mulher que esperava no convés, observando a cidade portuária chegar até ela.
Os soldados correram para o ponto de descarregamento. Fileiras de ambos os lados, de peitos estufados, homens e mulheres, orgulhos a prova e um queixo erguido. Perfeitamente alinhados por patente, Tenentes, Sargentos, Cabos e os Soldados.
Mais de trinta frente a frente. Entre eles, esperando sozinho, Kalebre Diaz, o único Capitão além de Matilda Defoul. Dos cabelos loiros, olhos verdes e um porte de ombros largo, Kalebre havia carregado a si de outra cidade para receber Matilda pessoalmente.
Além da Capitã das Neves, o único que poderia obter sua presença era Nero, o Imperador Nevasca. O ambiente já era frio, com o Capitão ali se tornava pior.
Abaixaram a ponte de madeira, Kalebre ergueu a mão e os soldados saíram da fila e correram para dentro do navio. Outra ponte foi abaixada, e a bota negra, com uma crosta fina de gelo, fez o caminho para baixo.
As cabeças baixas, tantos rostos comuns, assustados e admirados, assustados ou temidos. Kalebre fez uma mensura mais leve, no entanto, ela buscou um rosto em particular.
— Nayomi, onde ela está?
— Sua filha pediu um pequeno tempo para descansar enquanto a senhora estava fora — respondeu Kalebre. Matilda seguiu caminho por entre o corredor de jovens. — Fizemos um apelo para que viesse recebê-la.
— Não me importo com ela aqui ou não, só se está bem. — Uma carruagem esperava por eles. O colcheiro abriu a porta e esticou o braço, ajudando-a subir os dois degraus e entrar. Kalebre deu a volta e entrou sozinho. — Por que está tenso desse jeito, Kalebre?
Desde que chegou no porto, os ombros rígidos e a faceta meio amargura lhe deram curiosidade. Um Capitão não costumava estar tão pensativo se não fosse importante.
— Envolve a pausa da sua filha, senhora.
Retirando o casaco pesado de cima dos ombros, pediu que ele continuasse.
— Duas semanas atrás, Orion Baker apareceu com ela, vindo direto de Carnel. Nos foi informado que Imperador Maverick entrou em contato com os dois, e recebemos boatos de que Rock Albone, Sor Januario e Sor Deco, além de um Sacerdote conhecido como Rahin foram derrotados por esse rapaz.
— Eu vi o jornal. O que isso tem a ver com Nayomi?
— Ele tem o Brasão do Imperador. — Havia ali um problema. — Esse rapaz não pode ser parado, preso ou revistado, por um padrão que o próprio Imperador lhe deu. Nayomi tem usado o mesmo argumento para fugir dos treinamentos e exercícios que os Sargentos e Tenentes dizem ser indispensáveis.
— O mesmo treinamento que nenhum deles gosta de fazer porque sempre perdem?
— Senhora, nós…
— Kalebre, quantos dos nossos conseguem derrotar minha filha em uma luta padrão? — Matilda cruzou a perda direita por cima da outra. Aquilo não era um problema, era a solução. — Se eu for contar nos dedos, talvez um ou dois.
— Ainda assim, senhora.
Teimoso, Kalebre ainda tinha o desejo de ver um anel no dedo anelar de Nayomi. Depois de tantos anos, pensava que a chama havia sido transformada em uma brasa gelada. Errei, pelo visto. Um Capitão de trinta anos, bonito e bem feito, com ciumes.
— E quer que eu mande uma mensagem ao Imperador? Quer que eu diga a ele para tirar o prestígio do mesmo rapaz que conseguiu salvar a filha dele, derrotou Rock Albone e tem o boato de que possuí ligação com Carsseral e o Imperador Maverick?
A cara de Kalebre endureceu.
— Foi o que pensei. Orion Baker não é um problema meu, não por agora. Meu irmão tem planos para ele, por isso está em Itauba. Metade das nossas investigações não precisam dos dois, então, deixe-os andarem e terem um pouco de paz.
— Ele é um Arcanista, Matilda.
— E tem seus vinte anos. — Deu de ombros. — Posso considerá-lo um gênio, se quiser também.
Uma luta perdida, a falsa esperança que habitava no coração de Kalebre deveria ter sido mantida morta. Rivalizar contra uma possível ascensão, ainda mais que era apoiada por dois Imperadores, só um lunático teria essa ideia absurda.
A carruagem parou em uma esquina mais afastada, onde restaurantes e bares com mais moradores do que soldados preenchiam a praça redonda com um cheiro de carne e cerveja.
Matilda abriu a porta sozinha, e tirou metade de todas as joias do pescoço ou da orelha, guardando em uma caixa e deixando na locomotiva. Tanto peso sem necessidade lhe incomodava.
— Quando eu retornar, Nayomi estará comigo. — Não foi uma promessa, mas pelos olhos de Kalebre, foi como ele entendeu. — Cuide da papelada que pedi para entregarem, e iremos conversar com o Imperador sobre as Ilhas do Domo.
— Como desejar. — Num tapa no teto, Kalebre fez a carruagem tomar rumo novamente.
Nem precisou procurar muito. Entre as mesas, a risada e a voz que conheceu ali mesmo, correndo entre as cadeiras e os idosos, uma baderna inteira com os adultos apostando quem conseguiria tomar a pequena pirralha dos pés ágeis.
Jovem demais para ser considerada uma mulher, e infantil demais para tomar título de soldado. Nayomi não era ninguém além de uma mera criança com sonhos e desejos, que por muito tempo teve sua própria adolescência roubada pelos estudos e pelos treinamentos.
E Matilda não lia mentes, como saberia se ela estava satisfeita? Foi um desejo egoísta, na época. Nero recebeu sua filha, uma pequena garotinha de cabelos brancos, a própria realeza dada pela sua esposa.
Como o amor de uma família era forte. Mais do que uma espada, mais do que uma magia.
E observava a colher de sua filha descer na sopa, enfiar na boca e quase cuspir depois de ouvir uma piada sobre macacos e babuínos de um rapaz tão simples quanto ela. Um Baker, uma parte de uma família desonrada. Conheceu alguns em sua vida, o Cão Carrasco, Cassiano Baker, e nunca se sentiu tão humilhada em ser considerada ‘honrada’.
Uma palavra tão simples de ser descrita. Cassiano era um homem que bebia chá, que estudava esgrima, que possuía uma incrível oratória e conversava sem precisar se agarrar aos conceitos rígidos do mundo.
Foi um encontro que Matilda se recordava muito bem.
E a forma como Orion prestava atenção em sua filha, não a interrompia, sorria e se animava mais com uma pequena e boba história de caçada. A primeira que Nayomi fez sozinha. Eles não queriam se impressionar, não um ao outro.
Um jovem com tantos problemas, uma vida difícil nas Caldeiras, e jogado no meio de grandes inimigos. O Clero, as Academias Mágicas, Azrael Carnage — que queria sua cabeça a qualquer custo — e Rock Albone junto de um imenso grupo de Feiticeiros Nortenhos.
Matilda riu pensando como Kalebre poderia enfrentar um oponente com essa bagagem toda? Ele não era perigoso, não para Nayomi.
— A senhora vai querer uma mesa? — uma das garçonetes se aproximou, um sorriso de orelha a orelha. — Hoje fizemos uma sopa que mata qualquer fome.
Devolveu o sorriso, puxando o próprio cachecol envolvido ao pescoço.
— Tem certeza? Porque faz alguns dias que não como uma boa comida.
— Claro, senhora. Temos mesas aqui fora, se desejar.
— Não. — Apontou para o restaurante. — Gostaria de falar com Gerome enquanto preparam o meu prato.
A garçonete fez seu trajeto, e Matilda a seguiu.
I
— Conheço as aberturas que temos diante tantos termos e também contratos, senhor Anneton. — Nero olhava para um transmissor de imagem. Desgostoso, odiava ter que usar uma runa para conversar com um dos membros do Conselho do Doze. — Só não vou fazer o que pediram.
Anneton respirou profundamente, também desgostoso. Era a mesma cara de sempre, não conseguia o que queria e tentava jogar sujo. Foi dessa forma que Nero descobriu que o Masquerati procurava pistas sobre Orion Baker e um outro rapaz.
— Nero, sejamos sinceros, sabemos o que vai acontecer daqui alguns anos. Esse rapaz não pode ser salvo sozinho, nem mesmo se proteger. Talber tem uma influência entre os Anões, entre os Elfos, até mesmo as Raças Baixas o apoiam. Como vai esconder um garoto que não sabe ficar parado?
— Ele sabe ficar parado, só que os problemas normalmente o encontram. Foi assim que a Academia de Magnus tentou vendê-lo e assim como querem que ele vá até ai. — Replicou o mesmo argumento mais de cinco vezes aquela manhã, e para membros diferentes do conselho. — Vinte anos de idade, um mundo pela frente, não vou deixá-lo ir.
— Está fazendo papel de pai.
— Se você conversasse com Oliver Baker, o pai de Orion, ouviria bem mais do que agora — mostrou um sorriso de canto. — O mundo já viu a história se repetir algumas vezes. Aqui no Norte, ele tem uma chance de chegar a Lança Externa, trabalhar até ganhar mais força, e depois, partir para onde quiser.
— Quer amarrá-lo a um casamento ou vínculo de sangue? — Anneton não sabia perguntar as coisas subjetivamente. Era seco demais. Por isso conversar com ele era irritante. — Maverick já deixou bem evidente que irá transformá-lo em uma Espada Destra.
— O que pode dar errado? — Na verdade, muitas coisas. — Eu tenho Matilda e Kalebre tomando conta dele agora. São meus melhores Capitães, e não serão fáceis de aceitá-lo. E esqueça casamento, conhece minha filha, duvido que aceitaria entregar a mão a qualquer um.
Anneton balançou a cabeça, aquele olhar lascivo.
— Orion não é qualquer um. Ele salvou sua filha.
— Sim, de uma ordem direta dizendo que ela deveria ser morta. — Esperou que o sorriso vago dele morresse. — Eu soube da história toda. A Academia de Magnus fez tudo o que podia, não é? Até mesmo fugiram da batalha contra Rock Albone.
— Está equivocado quanto a isso. — Anneton se ajeitou a cadeira. — Houveram discussões, muitas. Cecilia não era para ser posta como um alvo.
— Alvo, não. — Endureceu o tom. — Um sacrifício.
— Erraram, como sempre erram, Nero. — Como sempre, não iriam admitir o erro, nem mesmo quando a cabeça de duas crianças eram postas recompensas. — Boa parte do conselho acha que Rock era a cabeça de um esquema entre Feiticeiros, Bruxas e Sacerdotes. Queremos saber se isso é verdade, e pelo que eu soube, a Academia de Magnus perdeu três Selectores nessas últimas semanas.
— Tauros, Drieck e Senma. Li no jornal.
— Esse Jornal Continental está muito ativo ultimamente. Ouvi que criaram uma rede de comunicações externas, usando uma runa de rendimento, passiva e de baixo grau. É um perigo gigante, sabia?
Nero tinha suas dúvidas quanto ao jornal, mas desde receberam uma imensa doação de quase cem mil moedas de ouro, expandiram suas chamadas do norte ao sul. De ponta a ponta, e toda semana uma notícia diferente era retirada.
O que mais lhe deixava curioso era o fato de que nenhum Baker foi chamado para ser entrevistado. Uma história rendendo Masquerati seria de alto nível, e se manchasse sua reputação, ainda melhor.
— Conheço um dos diretores — afirmou Nero. — Terei uma conversa básica para entender o que está se passando. E se podem nos ajudar também. Nossa reunião hoje só foi formada porque existem bons desenvolvedores de runas. Precisamos estar mais a frente do que se passa no continente, ainda mais com os grupos de Cavaleiros em Santa Helena se rebelando contra os Krasios.
— Acredito que será a melhor ação a ser tomada. Nós temos os melhores Escolásticos aqui em VilaVelha trabalhando para conseguirmos a ‘Alta Comunicação’.
— É o projeto daquele homem chamado Professor. — Nero olhou um dos tópicos escritos no papel a sua mesa. — Parece promissor. Por que a demora em criá-lo?
— Muita burocracia. A Juridição Mágica atende dois requisitos, concentração e influência. Com uma runa dessa imposta, teríamos como nos comunicar com todos os postos avançados, porém, os postos avançados fariam o mesmo com os outros.
— Congestionamento.
— Exato. — Anneton fez uma pausa, recebendo uma xícara com biscoitos. — Eu te ofereceria se estivesse aqui, Nero.
A mão abanada foi a resposta.
— Comer ao mesmo tempo que bebe uma xícara de café ou chá é um costume das Terras Fluviais. Agradeço.
— Certo, eu nunca consigo entender muito bem a cultura dos nortenhos, mas são ótimos cultivadores de ervas. — Anneton tomou a folha, balbuciando algumas palavras avulsas até achar o que queria. — Ah, vamos falar sobre as Ilhas Vulcânicas?
— Tome nota, por favor.
I
— Duas vezes derrotado. — Azrael gargalhou apontando para Rock Albone. — Duas vezes aquele pirralho te deu uma surra. Quantas pessoas já fizeram isso conosco, seu merdinha sem entendimento básico e lógico? Idiota — gritou. — Você é um idiota.
Gemini nada disse. Rock manteve-se no canto. O Círculo de Lumos normalmente se unia apenas com os dez membros mais altos, no entanto, aquele dia, os cem membros, chamados para uma reunião de extrema urgência, se reuniram.
Até mesmo Azrael se impressionou com tantos rostos sumidos, medrosos de serem achados, assustados com o rabo entre as pernas. Ele sentia nojo, repulsa.
— Nós fomos escolhidos para representar a benção dos altos divinos — falou para todos ouvirem. — Fomos recompensados para doutrinar as mentes dos que se dizem fracos e sem espírito. Fomos derrotados, humilhados e suprimidos pela Ordem dos Magos? Foi isso?
— Você também foi.
Ele lançou um olhar para o canto da sala, Gemini tinha o olhar duro, um corte na sobrancelha, que se erguia até o começo de seus cabelos. A marca deixada pela lança de Orion Baker.
— Temos certeza de que aquele Professor e Orion Baker são a mesma pessoa — falou sem medo. Pelo menos, uma era salva daquele lamaçal. — Você perdeu para ele, o Elfo Negro derrotado em São Burgo.
— Você era o Sétimo da Lista do Círculo. — A costela dele ainda estava quebrada, Rock enfaixou a si mesmo, mantendo-se em pé, mesmo com imensa dor. — Desde que perdeu, foi jogado para a vigésima posição. Ninguém dos Dez vieram aqui.
— Eles não vieram porque não é necessário, seu porco fedorento — cuspiu Azrael. — Eu reuni os cem membros do Círculo porque quero a cabeça de Orion Baker tanto quanto vocês. Souberam dos Imperadores, souberam do Dragão. Você viu o Dragão.
Rock ainda estremecia pela vaga sensação de confrontar os dois aquele dia, no Oceano Congelado.
— Nós podemos ter os dois — continuou Azrael para os ouvintes. — A morte do Baker e o Dragão Prateado. Eles estão no Norte, enfiados em algum vilarejo, sem apoio ou recursos. Faremos o necessário para que ele sinta a dor de perder tudo o que mais ama, começando pela sua casa.
Houve silêncio.
— A Caldeira de Ilhotas? — ouviu de um canto. — A Casa das Famílias Nobres?
— Os Baker se escondem em cima de seus montes, sem comida e ajuda. São tratados como escórias, mas o título de desonra não é firme. Eles não cederiam. Vou enviar dez de vocês para lá, e acabem com eles. Outros dez serão enviados para São Burgo, outros dez para Santa Helena. Outros dez para o Forte Drax. Outros dez para a Academia de Magnus. E o restante virá comigo para o norte. — Azrael mostrou seu punho. Areias subiram pela pele, negras como a noite. — Mostraremos que ninguém pode enfrentar o Círculo de Lumos, nem mesmo o Último Cão Imortal.
— Ambicioso.
Um velho de bengala passou entre os outros membros, com um óculos repousado em cima de um olho e uma bengala sustentando seu peso. Nobre, um terno verde escuro e uma imensa capa nos ombros.
— Sor Alduim. — Azrael gargalhou. — Gostaria de nos dar a graça de orquestrar esse projeto?
— No mínimo um ano, Elfo Negro. Se quer que não haja falhas, farei acontecer em um ano. O que acha?
Queria mais do que qualquer homem naquela sala a morte do desgraçado que o rebaixou de título e também de prestígio. Vigésimo no Ranking, desprezado por uma quase morte, e recheado de comentários pelos Bispos e Cardeais.
Nem mesmo na sua prisão em São Burgo ele teve tanto desprezo voltado para si. O Elfo Negro, respeitado por sua soberania, derrotado por um rapaz de Primeiro Núcleo. Isso era ridículo, completamente ridículo.
— Faça acontecer, sor. O que tiver que fazer, eu o apoiarei.