Passos Arcanos - Capítulo 203
– Tem certeza que essa é a roupa que quer usar, jovem mestre? – Cassiano não parou de chamá-lo dessa forma desde que tinha sido nomeado Líder dos Baker. Era muito vergonhoso já que normalmente apenas a realeza detinha esse direito.
Orion não era nada além de um guerreiro. E a roupa escura que usava lembrava-o dos tempos que lutou por Poulius Qujas. Era a mesma roupa, costurada e transformada por uma das artesãs, de nome Vich, uma senhora que recebeu uma casa bem grande para começar o preparativo das roupas de inverno.
E sentia-se bem usando seu antigo traje de batalha.
– Essa é a minha essência, Mestre Cassiano. Sou o conflito em pessoa.
– Por uma causa maior do que si mesmo.
Não sabia o que se passava na mente de seu mestre, mas desde que ele foi posto na posição de ensinar as crianças, ficou ainda mais alegre. Havia algemas em seus pulsos, nas Caldeiras, que se quebraram ali em Itauba.
Uma nova residência, uma nova vida.
– Ainda assim, é muito escura para um baile. E temos duas questões a tratar também. A base econômica dos Baker sempre foi um poço bem fundo e lamacento. Mesmo que recebamos auxilio de Nero, os Anciões acham que devemos ter uma renda fixa.
Ainda de frente para o espelho, via seu reflexo limpo. Dois mensageiros esperavam na porta, logo atrás. Passou sua atenção a eles.
– Não estão errados. Eu já preparei tudo, esse ano, nós sairemos da miséria. Todos os convites foram enviados?
– Sim, senhor. – Um deles abaixou a cabeça. – Rob, de São Burgo. Homero, do Palácio das Baleias. Os mercenários do Forte Drax. O Bancário, Economia. E os Anciãos Baker, incluindo Mestre Cassiano.
– Perfeito. – Virou-se e tocou a cintura. – É uma pena eu não poder levar minha espada.
– Isso já foi conversado. Eles não se importam se levar – disse Cassiano. – A espada de seu pai foi refinada e temperada.
Um dos mensageiros foi até o canto do quarto e abriu a caixa cuidadosamente. Dali, retirou a lâmina prateada de cabo vermelho com o dragão que corria pelo metal. Um desenho tão bonito e tão distinto.
Lembrou-se do próprio Dragão que deveria estar com ele.
– Onde está Carsseral?
– Se banhava no Lago Congelado, pelo que disseram. Deve estar voltando agora. Ele sabe que isso é importante.
– Certo, faremos da maneira correta dessa vez. E outra coisa, Kadu, Milena, Wallace, Tito e Truman, poderão vir?
– Estamos entrando em contato agora, mas parece que Tito e Wallace estão dentro de umas trincheiras, sem previsão de retorno.
Cassiano fez uma pausa assim que viu o olhar de Orion.
– Se irá até lá, precisa de tempo. Temos cerca de três horas, mesmo que você vá e traga eles, ainda é perigoso.
– Quero todos comigo, Mestre.
– Sei disso, você não deixaria seus parentes de lado sendo que está um passo de se tornar uma figura pública. Devo te alertar que isso trará uma série de riscos e problemas para os Baker.
– Eu tomo controle disso depois.
– Que bom que eu trouxe o pergaminho de teleporte para a Torre de Archaboom comigo hoje. – O sorriso de Cassiano foi maléfico. – Nunca esperei que realmente fosse usar.
– Como se o senhor não tivesse previsto isso, mestre.
Orion abriu o pergaminho, observando as coordenadas e também o círculo mágico usado para aquele ponto em especial. Ainda não tinha capacidade de abrir um portal tão preciso apenas por coordenadas, mas já era suficiente para lhe dar uma base.
Fez os dois mensageiros erguerem os olhos.
– Ficarei fora por algumas horas. Digam a Naomi que irei encontrá-la no Salão de Vidro.
Juntando as mãos a frente do peito.
– Sim, meu senhor.
O título realmente era estranho. Orion riscou o pergaminho e um portal começou a emergir da sua frente.
– Mestre Cassiano, gostaria de ir comigo?
– Eu? – Pego de surpresa, Cassiano tocou o próprio peito. – É um campo de batalho, jovem mestre. E estou despreparado.
Uma espada voou da sacola dimensional de Orion. E entregou a ele.
– Apenas uma visita, nada demais.
I
Uma explosão lançou fragmentos da muralha de pedra pra todos os lados. Clarões rugiam de partes diferentes do terreno árido e infértil. O céu, manchado de fuligem e fumaça, se tornou negro o suficiente para que o sol não o perfurasse.
A lama densa manchava o rosto dos soldados. Os tremores abalavam a terra desde o começo do dia, e os Sacerdotes não terminavam a investida por nada. Os números dos Cavaleiros que protegiam as trincheiras haviam caído mais de cem, Wallace sentia o peso das ações de seus Generais na pele.
Numa única noite, para segurar sua posição, eles perderam cerca de duzentos em uma investida suicida. Encostado na terra, oculto pela trincheira, observava o machado em sua perna e também o poder que emanava dele.
Desde que tinha chegado ali, um ano e meio atrás, se tornou poderoso para rivalizar contra os Sacerdotes e Sumo-Sacerdotes de uma só vez. O que não esperava era que mesmo o poder tinha deficiência lidando contra os seus próprios superiores.
Uma ordem dada e centenas morriam. Uma ordem dada, colegas que trocaram segredos e risadas, choros e lamentos, se tornaram poeira. Apenas um pequeno grão de areia, é o que somos.
– Os Magos vão fazer o movimento – Alardin gritou de uma outra ponta. – Cavaleiros, subam e façam a proteção. Não deixem falhas.
Era a mesma merda todo dia. Os Magos precisavam de tempo para conjurarem uma proteção contra aquelas bombas destruidoras. Se acovardavam no primeiro choque, foi assim que perdeu muitos colegas na primeira semana.
E a culpa caía em cima dos Cavaleiros que davam suas vidas para protegê-los.
Wallace fez força para sair do lugar e ficar de pé. Olhou por cima da terra. Os picos deformados que os Sacerdotes criaram sustentava a defesa física e mágica, por isso as magias dos Magos não funcionavam.
Magias não faziam efeito, eram fracos demais.
– Não vamos ter chance assim – Rudeg disse ao seu lado. – Seremos alvo fácil.
– Tenta dizer isso pra eles. – Roino respondeu irritado. – Se nem Wallace conseguiu argumentar contra os supervisores, nós só podemos seguir as ordens.
Houve xingamentos dos quase cem Cavaleiros ao redor. Esses eram homens e mulheres que jamais dariam o gosto da derrota aos Comandantes ou Generais. Seguiam a risca o poder tomado por Wallace naquele tempo, sendo muito mais confiável.
– Faremos o de sempre – disse a todos. – Só mais um dia, como sempre.
Um ano e meio, só mais um dia. Tito estaria bem?
Os Magos chegaram caminhando pelas trincheiras. Meio desatentos e limpos. Sempre recuavam depois das barreiras, ficando nos alojamentos e descansando por dias antes de voltarem. E com as mesmas expressões arrogantes de sempre.
– Hoje será mais um dia daqueles – um dos Magos disse com total despreocupação. – Eles sempre tentam avançar, são tão burros. Da última vez, perdemos dois, não foi? Uma grande perda.
Dois Magos mortos, e a queda dos Cavaleiros? Mais de vinte.
– Incompetência de quem está na trincheira. Sempre perdemos um ou outro por causa deles.
Rudeg soltou um bufar nervoso, e segurou o próprio punho. Wallace ficou de frente para o grupo de Magos, ele era maior do que qualquer um presente, tanto para cima quanto para o lado, e conheciam a arma que carregava.
O ‘Machado que Corta Magia’.
Wallace se tornou famoso depois de proteger muitos Magos daquela forma. De alguma forma, a lâmina de seu machado faria um trabalho excepcional separando as moléculas da mana, por isso, se tornou quase uma lenda nas trincheiras.
– Baker – o nome ainda soava como uma ofensa na boca dos Magos que conheciam a história de sua família. – É sempre um desprazer ser protegido pela sua boa arma. Ainda não sei como os superiores não tiraram ela de você e deram para outra pessoa.
Aquele era Belfu Lila, um membro da família nobre do continente. Desde que soube que Wallace era um Baker, fazia questão de andar por ali afim de desprezá-lo. Um homem com caráter duvidoso e um talento acima da média.
– Eles não deram pra outra pessoa porque sabiam que você morreria assim que pisasse naquele lugar.
Houve tensão. O clima ficou pesado, mais ainda com as bombas mais perto do que antes.
– Sua língua é sempre tão afiada quanto o machado, fico impressionado que ainda não morreu.
– Com seu nível tão baixo de Arcanismo Comum, eu digo o mesmo, Lila.
Como Lila era um sobrenome feminino, nenhum dos homens da família se sentiam bem ao serem chamados daquela forma. Incluía-se Belfu junto dela. Seu pescoço latejou com a veia exposta.
– Faça logo a barricada, Cão de Guerra.
Wallace cuspiu pro lado e limpou a boca com o pulso.
– Como quiser, pedaço de merda. – Virando-se para Cavaleiros cansados, sentiu um vasto desconforto. Medo, sabia que era. Vê-los se arriscando por pessoas que não se valorizavam. – Senhores e senhoras, mais uma vez, tenho que convocar suas armas e armaduras. Lembre-se de nunca deixarem uma falha, Archaboom precisa de nós.
Não houve grito de resposta. Isso fez Belfu dar uma risada.
– Eles estão prestes a desabar.
Outros Magos riram junto.
Wallace apertou o cabo de seu machado. Uma morte, apenas uma, seria punido pra sempre. Os Baker não podiam ter outra falha, outra mancha. Tinha que segurar, por Tito, por Orion, por Kadu, por seu pai.
Dest Baker ficaria desapontado se matasse um Mago da família Lila dessa maneira.
– Por que não fez isso de maneira justa? – seriam suas palavras.
Teve que respirar fundo, mais uma vez. E seus subordinados fizeram o mesmo. O cansaço acumulado seria a morte caso perdessem em desejos suicidas.
– Mensagem da Torre de Archaboom. – Um rapaz entrou correndo pelas curvas das trincheira. – Um Arche-Mago está se aproximando. Eles pedem para esperar.
Belfu e Wallace fizeram expressões semelhantes.
– Um Arche-Mago? – Belfu questionou. – De que família?
– Da família Baker. O Cão Imortal está vindo.
Os dedos de Wallace se abriram, antes de sua arma cair, ele a pegou mais uma vez.
– Um Baker? – Os Magos ficaram chocados. – Eles não podem ser Magos.
Uma sombra recaiu acima deles. Já era escuro por conta da fumaça, porém, ficou ainda mais.
– Ora, um Baker sempre atrai olhares bem assustados.
Wallace reconheceu a voz e virou-se. Engoliu em seco e caiu de joelhos na mesma hora.
– Mestre Cassiano.
Os Cavaleiros reconheceram a figura idosa em sua frente, e reagiram idêntico a Wallace. De pé, apenas os Magos que não o conheciam.
– E quem é esse velho? – Belfu perguntou com nojo. – Um Baker também? O que está fazendo aqui?
– Tão jovem e tão desbocado, um Mago deveria ter o mínimo de senso para reconhecer um ancião. – Cassiano deu uma risada. – E pensar que até mesmo nas trincheiras de Archaboom as coisas não mudariam.
Wallace ergueu a cabeça, tão chocado quanto impressionado.
– Mestre, o que veio fazer aqui? A barreira vai se desfazer a qualquer momento. Precisamos avançar…
– Não se preocupe quanto a isso. – O dedo de Cassiano ergueu-se. – O Líder dos Baker também veio.
Belfu interrompeu velozmente.
– Os Baker não possuem líder, seu velho.
– É melhor se acalmar, rapaz. – Cassiano não tirou o sorriso do rosto. – Se ele te ouvir falando isso, aposto que não sai daqui com vida. Alias, ele surrou muitos herdeiros da sua família quando estava em Magnus.
A boca de Wallace começou a se abrir, pouco a pouco. E olhou pra cima. Estava lá. Flutuando, com os dois braços atrás das costas, o traje de batalha completo e sua espada na cintura. Uma aura tão forte, tão poderosa.
O cabelo mais longo, a feição mais dura. Esse era Orion Baker.
– Onde está Tito? – a voz soou em sua mente, Orion perguntou mentalmente. – Não estou sentindo sua mana em lugar algum.
– Orion. – Wallace segurou o máximo que pôde, mas balançou a cabeça. – Eles levaram Tito faz um mês. Eles prenderam em algum lugar em Archaboom. Não pude fazer nada… Eles…
Cassiano ouviu assim como os outros. Wallace abaixou a cabeça, tremendo.
– Eu fui fraco.
– Todos os Baker são – Beful ousou dizer. No entanto, uma figura surgiu diante sua face, agarrou seu pescoço e sumiu.
Cassiano deu uma risada e olhou os outros Magos assustados, recuando um passo de cada vez.
– Eu disse que era um erro.
No outro segundo, o jovem Lila caiu a frente deles, vindo do céu. Os rostos se ergueram, Orion Baker se mostrava flutuando, com uma face completamente impassível.
– Hoje, qualquer um que fale sobre os Baker terão sua vida ceifada. Esse jovem talvez acorde daqui a algum tempo e sua mente terá apenas um sentimento. Medo. – A aura que fluía dele era ainda mais agressiva do que o campo de batalha ao lado. – E é o que devem sentir quando olham para minha família.
Ninguém respondeu.
– Ouviram o que eu disse?
– Sim. Sim, senhor.
– Eu sou o Líder da Casa Baker. E Wallace é meu braço direito, assim como Tito é o meu braço esquerdo. Se o Clero capturou um dos meus, a única resposta é a retaliação imediata. Observem atentamento, Magos de Archaboom, como um Baker lida com seus inimigos.
Seu braço voou na direção das explosões. E instantaneamente pararam. O silêncio propagado por segundos. Nunca, desde que chegaram, tiveram tanta paz. O chão parou de sacudir e as chamas que se elevavam em diversas pontas cessaram.
– A partir de hoje, quero que se lembrem de nunca mais desprezarem minha família. – Um círculo mágico surgiu em sua palma, virada para o outro lado. – Porque o seu destino será a morte. ‘Epik: Dragões Gêmeos.’.
Dois imensos rugidos soaram no céu. O clarão de chamas carmesins dissipou a fumaça e fuligem que caía, e gotas de chuva se propagaram a chegar ao solo. Olhando pra cima, os Cavaleiros e Magos assistiram a chegada de duas criaturas abissais batendo suas asas e descendo para a outra ponta.
Cassiano deu uma risada e Wallace subiu para o mesmo nível que seu antigo mestre. Os Cavaleiros o seguiram. Uma única rajada de fogo destroçou três barreiras de mana dos Sacerdotes e queimaram a primeira trincheira completamente.
Os gritos e desespero chegaram até eles. De repente, o Dragão de Água expulsou uma esfera de água com quase o dobro do tamanho da montanha que eles ocupavam. Um tornado de pedra se formou bloqueando parcialmente seu avanço, mas muitos foram carregados pela tormenta azulada.
Os Dragões fizeram seu voo novamente e pararam diante dos inimigos.
– Eles pararam? – os Sacerdotes ficaram surpresos. – Merda, o que está acontecendo?
– Chamem os Cardiais, agora. Precisamos de reforço.
O turbilhão de confusão atormentou os inimigos. Wallace não acreditava que aquelas duas criaturas majestosas eram criações do próprio Orion, ao seu lado, flutuando casualmente.
– Mestre Cassiano, eu vou atrás de Tito.
– Como quiser, jovem mestre.
Orion flutuou um pouco no ar e parou, olhando para trás.
– Você não vem, Wallace?
Rapidamente, virou-se para a trincheira.
– Alguém me dê meu machado, agora.