Passos Arcanos - Capítulo 228
Os ferimentos de seu braço eram piores do que imaginou. A pele enegreceu e os dedos enrijecidos, quase dormentes. Não sentia capaz de abrir ou fechá-los, mesmo usando uma runa de Fike, da Escola de Força. A mana realmente atrofiou seus músculos e veias, sobrando apenas o osso.
Pelo menos esse está estável.
Por enquanto. Os doutores que Cassiano reuniu ao redor de Keifor. Um por um, eles analisaram seu estado, anotando e aplicando procedimentos em alguns pontos de pressão, algo que Orion já tinha feito assim que acordou, três dias atrás.
– A carne não responde mais. – O primeiro fez uma cara de tristeza. – Não pode ser recuperada.
– Está morta, praticamente. – O segundo era um velho com um rosto puxado feito uva passa. – Mesmo que haja alguma possibilidade no futuro, a medicina atual não pode fazer nada. Ela perdeu toda a sua essência.
E o último foi mais impassível.
– Não faço ideia como fez isso, mas ele ainda está pendurado no seu ombro. – Refogou se levantando. – Se sinta privilegiado. Ferimentos baseados em sucção de mana são tão complexos quanto raros. O osso está intacto, mas o restante nem deveria estar ai. Sorte, rapaz. Sorte.
A semana seguinte, Orion encontrou certa resistência por parte de Cassiano e Oliver. Os dois andavam com semblantes caídos, uma culpa que nem deveria existir em seus corações. Mas, Orion entendia os dois.
Quando pequeno, acreditava que o erro de Omar também era sua culpa. Remoeu por anos até que encontrou equilíbrio interior. Mas, os dois eram quase que irritantes.
– O senhor não pode fazer esforço, Mestre Baker. – Cassiano simplesmente tirou a espada de sua posse.
– Eu perdi o movimento, não a consciência. – A espada voou de volta para Orion. – Pare de acha que estou debilitado. Meu braço esquerdo não é o meu forte.
Seu pai também começou a proibi-lo de subir as escadas, de querer fazer reuniões e de encontrar com os líderes dos acampamentos que eles trouxeram para Keifor. Ignorou cada um deles, as pessoas que acolheu deveriam vir em primeiro lugar, e suas pernas andavam normalmente.
Nos primeiros dias, sentiu-se um pouco tonto, mas acostumou-se, como sempre. A luta contra Jaimes e Monique lhe deu muita experiência em questão de batalha de vida e morte, e não tinha remorso algum do que houve no seu braço.
Salvou Carsseral de um futuro incerto, o que poderia dar uma vantagem ao Clero – que eles já possuíam, teoricamente, pela Travessia de Ignolio. Porém, assim como Orion, o Dragão Prateado também tinha seus ferimentos.
Subiu a escada giratória de pedra fria, passando por vitrais âmbar. Bem mais escuro, fez o caminho devagar até o topo da Primeira Casa, e empurrou a porta lentamente. O tapete esticado era um carmesim escuro, lembrando sangue seco, e as janelas foram tapadas por grandes cortinas grossas, eliminando os raios solares de atrapalhar o sono da criatura escamosa.
Carsseral roncava vagarosamente. Desde que as Cobras Marinhas aplicaram o veneno de dormência, continuou a dormir mais vezes durante o dia, acordando as vezes apenas para resmungar e beber a Popa de Krimar, que Lumiere e Rasgun haviam preparado.
– Tem gosto de merda, humana. – Carsseral cuspiu metade na primeira vez numa das cortinas. – Quer me matar também?
Ela não se ofendeu e deixou o braço esticado.
– Beba ou vai ficar pior do que já está. O veneno vai circular pelas escamas e vai ficar verde até apodrecer. É isso que quer?
– Merda. – Ele enfiou o focinho na cumbuca e continuou bebendo, resmungando mais e mais.
Orion o encontrava ali em cima pelo menos duas vezes ao dia. Sentava-se diante suas costelas prateadas, com seu reflexo bem visível, e tocava lentamente. O Sol Negro nascia em sua pele e deslizava para dentro do dragão, procurando o veneno dormente que estava lá.
Havia se espalhado por muitos músculos e órgãos. A sorte de Carsseral foi seu núcleo não ter sido contaminado por conta do Sol Negro, que Orion usou para proteger na Costa Congelada. Mas, o veneno líquido não tinha como puxar completamente.
Um pouco de cada vez, fazia o caminho pelas veias e o tirava por uma ferida exposta, a única que os dentes afiados das Cobras Marinhas tiveram força para abrir. E dissolvê-lo também era pior, porque era um veneno hospedeiro, precisava de algo para se alimentar.
Para tirar Carsseral de uma série de problemas futuros, Orion pegava para si e o circulava pelo braço esquerdo, que já estava bem doente. Depois de uma hora nesse processo, Orion aplicava o Sol Negro em si.
O efeito era diferente já que condensava a mana de Carsseral e da Natureza ao seu redor. Com um pouco mais de dez minutos, o resumiu em gotas, extraindo completamente do corpo.
– Você não precisa fazer isso toda vez que vem aqui.
Orion abriu os olhos. Carsseral se tornou menor, cabendo melhor no imenso cômodo. Mesmo com pouca luz, seus olhos brilhavam intensamente, possuindo luz própria.
– Eu sei, mas posso acelerar um pouco o processo de sua recuperação desse jeito.
O resmungo do Dragão já tinha se tornado comum pra Orion.
– Deveria cuidar melhor de si. – Esticando seu pescoço, aproximou sua narina do braço dele. – Isso fede muito a mana. Daria pra sentir mesmo com bosta no meu nariz.
– Bom saber que seu olfato é aguçado – sorriu em volta. – Estou curando. Estive lendo uns livros, talvez daqui a algum tempo eu use uma magia passiva para absorção.
O Dragão recuou a cabeça e ficou um tempo em silêncio.
Curioso, Orion franziu o cenho.
– O que foi?
– Está mentindo. Dá pra sentir isso também. – Abaixou o corpo alongado no carpete e descansou a cabeça. Mesmo deitado, ele era quase duas vezes maior que Orion. – Esse é um ferimento que você sabe que não tem cura, estamos conectados, eu sei o que você sente e vice-versa.
Era verdade. Orion podia entender os pensamentos de Carsseral perfeitamente. Foi o que levou a correr para a Costa Congelada, também foi o que lhe obrigou a usar toda a sua força para contrariar Jaimes e Monique ao mesmo tempo.
Abaixou a cabeça. Talvez, no escuro Carsseral não notasse sua expressão cansada. Ele notou.
– Lutar contra Jaimes e não morrer foi uma honraria – disse Carsseral. – Alias, ele é quem recebeu a Arte Divina Sagrada dos Treze Deuses. E usou contra você, mas ele perdeu mais do que a gente naquele dia.
– Não vejo como uma perda. Ele levou seu sangue, não foi?
– Você não entende, Orion.
Foi a primeira vez que seu nome foi falado daquela maneira. Teve que erguer a cabeça e ver Carsseral com uma expressão humilde, sem a arrogância de sempre. Parecia outra criatura, mais sublime e mais calma.
– O meu sangue é pequeno comparado com minhas veias, meus órgãos, minha pele, minhas escamas, meus olhos. Minha raça inteira foi caçada por causa disso, mas Jaimes não queria nada disso quando enfrentou meus irmãos. Ele queria domar a raça draconiana inteira por prazer, para criar seu próprio exército.
– Ainda vejo como uma vitória para eles. – Orion caiu pra trás, recostando-se na calda do dragão. Era dura e fria. – Perdi um braço, você ficou ferido e eles perderam só um dos Bispos. A vantagem moral…
– Ele não conseguiu te matar. Isso é o que importa, não quem perdeu o quê. – Carsseral aproximou mais ainda de Orion. – Ele não conseguiu te matar mesmo usando aquela magia ridícula. Se soubesse quantas pessoas sobreviveram quando Jaimes Harrigan queria a morte, ficaria orgulhoso e não remoendo.
– Não estou remoendo nada. Ele lutou comigo, mas eu não usei tudo o que tinha. – Aquilo sim lhe deixava nervoso. – Se eu mostrasse as magias que produzi, eu chamaria todo o Clero para o norte. Só o Mundo Espelhado de Theodoro foi suficiente para a Justiça Mágica ficar atenta.
– Foi uma boa maneira de não destruir o lugar. – Carsseral fez uma expressão risonha. – E ordenar que sua família usasse magia mesmo sabendo que pode ser morto, isso também foi esperto.
Essa parte Orion não tinha certeza se acertara. Os Baker não precisavam sofrer mais do que já estavam por causa de um pedido seu. Se alguém abrisse a boca ou o Jornal Continental tivesse qualquer canal de comunicação comprado por alguém, a Ordem dos Magos e o Masquerati iriam voar em seus pescoços.
Um risco mais do que desnecessário, era mortal.
– Está pensando muito – Carsseral disse, de novo. – O Clero não vai se mexer porque eles tem outros problemas para resolver. Os Treze Deuses e o Homem que Conjura as Estrelas são só dois, existem outros onze que podem fazer um estrago gigante.
– Onze títulos?
– São singularidades. Você conjura a magia ao redor de si como bem entende, mesmo que ainda não tenha aprendido sobre tudo, nem mesmo a base dela. Se soubesse, teria matado Jaimes e aquela humana em minutos. – Os dentes brancos se mostraram com um sorriso de canto. – E os outros são como vocês, cheios de habilidades diferentes, mas que carregam a destruição ou reconstrução por onde andam. Só conhecia Jaimes e o Neto dos Mares, o Criacionista, mas ele se foi muitos anos antes de Jaimes aparecer.
– Ele morreu?
– Não. Apenas se mudou para um continente qualquer, longe dessa palhaçada de guerra. Ele dizia que era humanos só servem pra isso, brigar. Ele era diferente, pensava na formação, no intuito.
Era difícil ver Carsseral elogiando os outros, ainda mais um humano.
– Ele poderia reparar esse braço em segundos – continuou o dragão. – Foi ele quem me deu esses olhos.
Reluzentes e esverdeados, brilhavam no escuro como joias a mostra de luz.
– Por que precisaria de olhos novos?
– Acha que um Dragão não tem predadores? – debochou num bufar. – Tem criaturas espalhadas pelos cantos do mundo que poderiam me matar também se quisessem. Tem muito nesse plano que você não consegue enxergar ainda, e o Criacionista me deu esses olhos por conta disso.
Haviam outros onze que eram parecidos com Jaimes. Singularidades, Carsseral disse. E agora, Orion não tinha um braço e estava fadado a continuar procurando um meio de se reerguer desse tal ‘empate’.
Mas, as palavras do Dragão Prateado tocaram uma ferida sua.
Você conjura a magia ao redor de si como bem entende, mesmo que ainda não tenha aprendido sobre tudo, nem mesmo a base dela. Se soubesse, teria matado Jaimes e aquela humana em minutos.
Mesmo sabendo Arcanismo Comum, Runas Justas, BioArcanismo e Natureza Arcana em suas bases, ficou fadado a empatar.
O Papa Oculto era um demônio que atormentava a Ordem dos Magos por sua força e fatalidade – Orion queria vencê-lo mesmo tendo menos da metade de sua idade e poucos anos de experiência no geral.
A ideia parecia idiota, mas um empate? O amargo ainda descia a garganta. Aquilo foi uma derrota completa para si.