Passos Arcanos - Capítulo 236
– O desejo dos mortos – disse Mestre Pice – é como seguir os caminhos trilhados por muitos antes de você, sabendo que se morrer, se tornará um deles. Assim como os vivos moldam a vida, os mortos moldam a morte.
– O mundo espiritual é cheio de mistérios – respondeu Mestre Cassiano. – Meu pai me dizia que existia muito além do que nossos olhos podem ver e que nossas mãos podem tocar, mas isso é horripilante.
Nayomi tremeu sozinha ao observar tantas figuras cinzentas agarradas nos ombros do Bruxo. Sopravam risadas, lamurias e tormentos, no qual não deixavam de carregar a verdadeira morte ao redor.
E Orion não tinha nada além de si e sua espada.
– É como ver um exército – disse Tito, amargurado. – E estão chegando mais.
Os gritos chegavam do céu, mais e mais fantasmas desse agarravam-se a Frankilin, lutando por espaço, xingando-se entre si. Suas vozes, vivas e cheias de arrogância, disputavam conquistas antigas e méritos pessoais.
– Um rapaz pequeno está tentando vencer o Bruxo. – As risadas golpeavam mais forte do que qualquer lâmina. – Você não é nada, moleque. Fuja com o rabo entre as pernas. Nada que faça vai te salvar.
– Fuja.
– Morra.
– Saía daqui, seu fedelho de bunda suja.
Orion conhecia esses rostos. Antigos Imperadores, antigos lordes, heróis e vilões. Figuras que leu mais de duzias de vezes, sabendo como venceram e perderam, o motivo de suas vidas terem sido tiradas ou corrompidos ao longo dos anos.
Tantos de uma só vez, lutando contra sua vontade e seu espírito.
– Covardes – o grito de Martin abafou a risada deles. – Como vocês podem se dizer lendas se estão querendo um pedaço do próximo Rei? São escórias, isso que são. Mortos e não podem fazer nada além de gritar.
– Cale a boca – Frankilin esboçou outro olhar mortal. – Você é só um pedaço de carne que ainda não apodreceu.
– E você é um pedaço de gelo que está tentando voltar a vida. Deprimente. Orion, mostre pra ele que você é diferente. – Apontou mais uma vez o dedo pra cara do Bruxo. – Mostra pra ele que a gente vai continuar subindo até sermos invencíveis.
– Não existe invencibilidade para mortais – as vozes gritaram juntas. – Maldito pirralho, como você se diz…
– O próximo Rei serei eu – a mana de Martin exalou em uma aura perturbadora. – Não se metam no mundo dos vivos, seus fantasmas sugadores de sonhos.
A intenção assassina de Frankilin mudou de foco, mas parou assim que a espada de Orion se ergueu mais uma vez.
– Se ele fosse seu inimigo – disse Orion –, você iria ganhar, mas seria uma vitória bem humilhante.
– Eu não vou mais me segurar.
Orion olhou para seu braço esquerdo, ainda enfaixado, e o puxou pra frente, abrindo sua mão e segurando o cabo.
– A espada que não corta porque seu mestre não quer é mais perigosa do que a já matou mil homens. – Respirou profundamente, deixando o caminho da paz alcançar sua mente. – Assim como o mais perigoso é aquele que treinou mil vezes o mesmo golpe sem se arrepender.
Cassiano assentiu fortemente.
– As lições da casa Baker foram transmitidas por mais de mil anos.
– E ele conhece todas elas – disse Tito. – Posso não confiar minha vida numa espada, mas que Baker seria se eu não confiasse naquele que conhece nossa família inteira.
Wallace mostrou firmeza e também concluiu isso.
– Como ele poderia conhecer tudo? – Mestre Pice questionou com simplicidade e medo. – Um homem levaria dezenas de anos para isso.
– É simples. – Wallace foi em frente e jogou seu machado. A arma rodou e caiu dois metros de Orion, o tirando do transe e concentração. – Recite todos os membros da Primeira Casa.
A sobrancelha de Frankilin se alterou. Procurou por algum tipo de razão, mas não entendeu.
– Maio, Tania. As cinco Crianças da Profecia. Lazio, Torino e Frezz, mortos. Sazus e Loiso Baker, vivos por mais de setenta anos.
Gargalhadas, risadas e gritos de dor. Aquele bloco de gelo sofreu uma imensa repercussões vindo de cima. Frankilin e os soldados olharam para o alto, vendo que mais fantasmas começaram a surgir.
E desceram com furiosidade, batendo contra o chão, envolvendo Orion.
– Mas que porra – a voz saiu tossindo. – Milhares de anos presos para ser puxado pra cá? E essas são… minhas crianças?
Maio, em espectro, parado diante Orion com um semblante confuso e irritado.
– Moleque, o que está fazendo lutando contra o Bruxo do Norte? Merda, você tem algum tipo de juízo descente nessa sua cabeça? Ele é lendário, matou mais papas do que você vai ver em vida. Abaixe essa espada e peça desculpas pra mim, eu te dei a capacidade de trazer honra pra nossa família e…
– Pai, por favor.
Uma voz mais suave, cheia de calor e carinho, arrebatou o frio dos ventos para mais longe. Uma mulher de longos cabelos passou flutuando a direita de Orion, tocando seu ombro. Os olhos eram cheios de graça e paz.
Apenas encará-la, Orion sentia-se preso em transe.
– Tania, esse moleque é amaldiçoado. Ele já lutou contra Angular e está agora contra Frankilin. – Maio balançava a cabeça, negando. – Isso é maluquice.
As crianças que flutuavam ao redor gargalhavam sem entender nada do que acontecia. E os outros dois Sazus e Loiso, parados com seus semblantes calmos, fitando os outros fantasmas que seguiam o Bruxo.
– Ele está bem equipado – disse Sazus, lentamente. – Lutar vai ser complicado. Muitos desses monstros foram mortos com mais de cem juntando suas forças.
– Além dos sacrifícios – completou Loiso. – Vai ser uma batalha bem complicado, pequeno Orion. Acha que apenas nós somos capazes de lidar contra tantos monstros?
– Não tenho ideia.
– Claro que não tem, moleque – berrou Maio. – Teríamos que trazer a casa inteira, da Segunda até a Milésima. E você não aguentaria tantos desejos, aguentaria?
– Ainda é difícil dizer – respondeu Tania, séria. – Muitos dos antigos lordes e imperadores possuem a sanidade corrompida. Eles vão alimentar o Bruxo, será difícil.
O primeiro passo de Frankilin rachou o solo, Orion reparou.
– Cansei de esperar – disse o Bruxo. – Sua espada ainda não é pesada o suficiente.
Os irmãos Sazus e Loiso bufaram.
– Que história teria um homem que foi selado pela união do Clero e a Ordem? Se não fosse por esses espectros, você não seria nada, Frankilin Verallia.
Afastado, Cassiano havia petrificado no lugar. Ele estava vendo aquele que teria sido o grande Maio Basker, o fundador de sua família. Tania, a Primeira Senhora dos Baker, capaz de matar um papa, e seus filhos, as Cinco Crianças da Profecia.
Uma delas passou correndo e agarrou em sua roupas, sem mais soltá-lo. Outra agarrou em Wallace e a outra em Tito. Eles abaixaram, elas queriam dizer algo, e inclinaram o ouvido para elas.
– Confie. Confie. Confie.
Uma palavra que fez seus corpos tremerem.
– Confiança provém da destreza – a voz ganhou força em sua mente. – Além da confiança, deve existir um sentimento aprofundado. O Mestre Baker não é apenas aquele que foi escolhido, seus desejos devem se alinhar, e não confundam. Os ombros desse quem carrega a família devem ser calejados.
– Quem está falando isso? – Orion também ouvia.
Tania e Maio olharam para cima, juntos.
– O Segundo Mestre, Gagari Baker.
Mais de vinte espectros começaram a descer. As vozes se misturavam no ar, criando medo nos soldados de gelo e afastando o Bruxo também. Esses vinte travaram ao redor de Orion, cumprimentando um ao outro e xingando os outros fantasmas que Frankilin possuía.
– A Segunda Casa se mostra presente – disse Gagari Baker com o peito estufado. – É bom rever aqueles que um dia foram meus antepassados. E pai – olhou para Loiso com olhos trêmulos –, perdão.
– Não estamos aqui para discutir o passado, meu filho. – Seu olhar pesado ainda estava marcado no inimigo. – Temos mais o que fazer. Orion precisa de nossa intenção.
– Assim como nós precisamos para enfrentar o Lorde Sombrio. – Gagari gritou de volta. – Seu merdinha, o que acha que está fazendo ai? Eu te matei para nunca mais voltar, o que acha que vai acontecer?
O Lorde Sombrio, Jouty Millor, senhor das sombras da Segunda Era, mostrou seu rosto no meio das dezenas.
– Seu merdinha Baker, eu vim porque quero conquistar o mundo. O que veio fazer aqui com sua prole?
– Te levar de volta para o mundo dos mortos, idiota.
Mais de cinco espectros do Bruxo começaram a gritar insultos, e os Baker gargalhavam de volta.
– Nós matamos vocês uma vez – disse Gagari fortemente. – E Orion fará isso de novo. Nossa família é grande demais para vocês superarem.
Frankilin respirava mais pesado, o ar de suas narinas exalavam um ar gélido e fumacento. Orion, no entanto, ainda estava leve, aqueles espectros não tiravam suas forças ou sugavam suas energias.
– Sua família é a escória – gritou Jouty. – Os Cães Imortais são um bando de merdinhas.
Maio foi quem ficou mais irritado.
– E quem é esse merda que está gritando? Seu fedelho da Segunda Era, eu vou arrancar sua cabeça quando voltarmos para o mundo dos mortos. Orion – olhou para o garoto –, acabe logo com esses vermes. Minha mão está coçando pra não carregar eles pros Sete Infernos.
Tania sorriu alegremente para seu pai e depois para os outros.
– Jamais pensei que nós seríamos tão calorentos assim. Parece que Gagari tem a personalidade de meu pai.
O Segundo Mestre abaixou a cabeça na hora, em respeito.
– Fico grato por isso, minha senhora.
E novamente, outra voz repercutiu no ar.
– E pelo brasão, nós formamos os intitulados Cães Imortais. Lutamos pelas terras, pelos mares e também pelos céus. Formamos alianças com os Nefrons, com os Dragões, com os Monstros Marinhos e os Místicos.
As cabeças se elevaram, mais de quinhentos deles desciam.
– Deuses – Cassiano ficou de boca aberta. – São os nossos Senhores e Senhoras.
Wallace e Tito não puderam esconder seu medo e espanto. Essa quantidade de espectros rondavam Orion, conversando e argumentando contra Frankilin e os outros fantasmas. Como se fossem vivos, eles até mesmo xingavam.
Um desses espectros saiu da ronda e flutuou vagamente para o lado deles. Cassiano balançou a cabeça várias vezes, negando.
– Isso não. Não se aproxime, por favor. Não faça isso comigo.
O homem parou de flutuar e abriu os braços.
– Isso é jeito de falar com seu pai, Cassiano?
Gagari Baker também se distanciou, rondando Wallace com um olhar crítico.
– Seu físico é bem modelado para um jovem, mas precisa um pouco mais de agressividade. Sim, sim, você tem talento para ser um dos Generais Carmesim dos Baker. Eles precisam de alguém como você, jovem.
Wallace engoliu em seco.
– Sim, senhor. Eu farei o possível.
– O possível? – Gagari gargalhou. – Você é um Cão Imortal, rapaz. Faça o impossível. Nós não somos conhecidos por mera formalidade. Olhe para frente. – A quantidade de espectros que conversava com Orion chegava a ser tremenda. – Ele está lutando pra morrer, sinta essa energia caótica e tome para si.
Quem viajou até Tito era Danoset Baker, o primeiro Atirado Mágico da família. Com uma boina lateral esverdeada e um colete de couro de touro negro.
– Quantos metros?
– Quinhentos.
Danoset apreciou. Analisava os membros e postura.
– Tente ajeitar mais para a esquerda, isso vai te dar mais força. E não deixe de sentir o inimigo, isso é essencial para um disparo perfeito. Mas, você está indo bem. Encontre o ‘Sumário da Flecha’, vai te ajudar muito mais do que pensa.
Aceitando a recomendação, Tito não teve reação a não ser ficar petrificado. Estava recebendo dicas de um dos maiores arqueiros que já pisou na terra. Nunca, em hipótese alguma, cogitou que seria capaz de estar ali, ouvindo Danoset.
E Cassiano era consolado por seu pai, dando batidas em seu ombro e gargalhando.
– Quem pensaria que você estaria treinando o próximo Mestre dos Baker, hein? Cresceu muito, filho.
– Ele é forte, pai. Muito mais do que a gente um dia foi.
– Pode ser forte como Frankilin, mas ainda não tem o necessário. Olhe pra ele, Cassiano. – Cassiel e Cassiano voltaram-se para um único ponto. – Já imaginou como deve ser solitário? Um jovem que caminha sozinho numa estrada sem nada além de um sonho e um desejo de reconstruir o que foi perdido?
– Ele sempre teve a nós.
– Não, Cassiano. Esse rapaz não está nem mesmo perto da gente. Não é arrogância que o faz ser desse jeito, é o desespero. Aquele sorriso que está vendo é porque ele foi reconhecido. Nossos antigos mestres querem o ajudar, mas quem vive ao seu lado não confia nada.
Cassiano sentiu-se deprimido. Desde sempre mostrou a Orion a espada e ele aprendeu mais rápido do que qualquer outro. Entretanto, havia a inveja. Um rapaz aprendeu o que era demorado anos para a maestria.
No final, bem no fundo do seu coração, existia esse desejo.
– Consegue enxergar, filho? Frankilin viu através da carne de todos vocês. Ele sabia exatamente o que Orion é pra vocês. Quando nós formos embora, ainda vai restar um rapaz e quem será seu apoio? Um homem com dúvidas? Ele não precisa disso.
– O senhor sempre foi cruel com as palavras, pai.
Cassiel riu.
– Sempre te mostrei o que seus olhos não enxergam, por isso hoje é um Mestre de Espadas. E um Mestre deve ensinar seus alunos, então, seja um Baker.
– E o que é ser um Baker, pai?
Cassiel deu as costas. Juntou-se aos outros dispersos em direção a Orion.
– Dessa forma – respondeu de longe. – Desse jeito.
Orion brandiu a espada violentamente para o lado e os ventos correram furiosamente. A energia que exalava era completamente diferente de antes. O frio que Frankilin exalava junto da Montanha Azulada se tornou nulo pelo calor exercido por aquele jovem.
Uma estrutura forjada por todos os senhores, senhoras e membros da família Baker que lutaram para que ele estivesse presente. Eles não se submeteram a Orion Baker, Cassiano sabia bem, o que faziam era respeitar um jovem que lutava por algo muito maior do que seu próprio interesse.
– Estou pronto, Bruxo – a voz cheia de graça remetia num sorriso de lado.
Ele luta pelo desejo dos que vieram antes e dos que vão vir depois.
– Vamos para a luta – Maio gritou agarrado as costas de Orion. – Vamos para a guerra mais uma vez. Baker, ouçam a voz do nosso atual Mestre.
A espada erguida confrontava a de Frankilian e seus fantasmas, agora, mudos e repreensivos.
– Pela espada ou pela magia, meus inimigos morrerão. – Separou uma das mãos do cabo e estendeu em frente. – E pelos que confiam em mim, trarei a vitória. E pelos que amo – seus olhos guiaram para os negros de Nayomi –, eu iria até o inferno.
Ela recuou um passo e balançou a cabeça.
– Idiota.
Os espectros urraram juntos. Maio guiava a furiosidade e Martin também liberava o fogo de seu coração, berrando.
– Aquele jovem é intenso – elogiaram alguns. – É digno de ser o próximo Rei Relâmpago.
Orion liberou o restante do ar dos seus pulmões.
– Está na hora. Mestres, guiem-me.
– Em frente!