Passos Arcanos - Capítulo 238
Jinx e Artrax esperavam por Anneton na sacada de uma das torres mágicas. Dali de cima, o vento era fresco e as nuvens poucas no céu. A última vez que choveu, Jinx ficou observando as gotas caírem com violência daquele mesmo lugar, com os moradores correndo de um lado para o outro para se protegerem.
A cidade de VilaVelha era grande, capacitando mais de trinta mil pessoas. E ainda assim, daquele ponto em questão, parecia minúscula comparada com os reinos e impérios. Uma das maiores perdas da Ordem foi a derrota que levou quase 40% de Archaboom e a metade do Campanário Verde para o Clero.
Uma batalha que eles conquistaram muitos anos atrás, quase que perfeitamente alinhadas com as famílias nobres. Agora, o que tinham eram pedaços de terra e um poder ofensivo tão baixo que lembrar dos tempos antigos lhe trazia vergonha.
A Ordem dos Magos não estava preparada para enfrentar qualquer fronte que não fossem Campanário, Archaboom, a Travessia e mais três lugares menores, que lhes entregava vantagem comercial e territorial.
Aos poucos, aquele mundo cheio de verdadeiras batalhas decaía para um cenário mais burocrático, de joguetes pensamentes e menos ações. Os dois lados se tornaram pesados demais para matar seus inimigos, era o que pensava.
– Está olhando para o passado – concluiu Artrax ao seu lado. O velho tinha uma barba mesclada entre o cinza e o preto, não por sua idade ser pouca. Era uma característica que apenas os Reis Alquimistas possuíam.
Um tipo de anomalia por utilizar e reproduzir tantas substâncias ao longo da vida.
– É um pouco difícil não pensar.
– Se for para prever o futuro, é um bom ponto. Se for apenas para remoer o que acontece hoje, admito que é idiotice.
Palavras tão dóceis que Jinx se esquecera do motivo de Artrax ficar longe do Conselho Negro. Como um dos Velhos Reis, era do Alquimista mais renomado do continente ter um lugar em questão para as reuniões que demandavam certa precisão anciã, isso para não dizer que apenas os idosos podiam resolver.
E entretanto, ninguém gostava da sua presença. Desde que três dos Velhos Reis se sentiram ofendidos, Artrax se isolou em tantos lugares que seu paradeiro era um mistério. Cartas retornavam e mensageiros ficavam meses a fora apenas para voltarem cansados e desanimados.
Um homem que sabia se esconder da Ordem era perigoso até mais do que o próprio Papa Oculto. E pensar em Jaimes Harrigan também o levava ao Norte, para a recém instalada família.
– A Montanha Azul e o Templo de Gondor Nisho foram vendidos, soube disso? – perguntou a Artrax.
– Quem comprou perdeu bastante dinheiro. – Não havia deboche na resposta, apenas uma indiferença bem estruturada. – Aquele Bruxo ainda está lá, e vai permanecer.
– Espero que pra sempre.
Jinx não tinha medo do Bruxo, nem da Montanha Azul. O Castelo de Espeto era uma das melhores ruínas a se conquistar por sua divisão territorial, porém, no passado, antes mesmo deles se firmarem como Magos, os boatos de que aquele território era completamente inabitável aterrorizava-os.
O Bruxo do Norte, Frankilin Verallia, vivia como Guardião. E o que ele protegia? Ninguém realmente sabia.
As muitas expedições feitas ao extremo norte se tornaram escassas. Poucos voltavam e traziam a mesma informação; o lugar era amaldiçoado por um Bruxo.
A porta estremeceu atrás deles e Anneton entrou, como sempre cheio de papeis em mãos. Jinx sentia-se um pouco triste pelo rapaz ter tanto trabalho e fazer tudo sozinho. Quando o escolheu para se tornar um dos Doze, também esperava que os outros três fizessem algo além de espreitar pelo mundo a fora.
Um homem tendo que comandar a guerra inteira era complicado demais, e um homem que dormia com uma Elfa se tornava ainda mais.
– Senhores – disse Anneton fazendo uma cortesia com a cabeça. – Obrigado por me receberem. Eu trouxe o Chamado Nobre, como ordenaram.
Dois documentos foram passados. Artrax leu o seu sem fazer comentários. Jinx o achava meio estranho desde que havia retornado, algo havia mudado, algo importante.
– Para que vai servir esse tipo de chamado? – perguntou o Rei Alquimista. – Debater sobre fundos e a guerra?
– E sobre os suprimentos das cidades neutras. O buraco que Santa Helena está se metendo e as ilhas seguras – respondeu Anneton, calmo. – Basicamente esses pontos são os mais importantes, mas também temos as questões raciais que foram impostas recentemente e os boatos do sistema de escravidão nas partes lestes e oeste.
Com um resmungo silencioso, Artrax devolveu o documento.
– Os Baker irão vir?
A pergunta pegou tanto Jinx quanto Anneton de surpresa.
– Eles se recusaram, senhor. Como sempre fazem. Dizem que enquanto o título de desonra estiver sobre eles, não podem nem mesmo pisar em VilaVelha.
– Por que eles deveriam vir? – perguntou Jinx.
– É uma resposta óbvia se for posta no papel, a boa parte das situações que ocorrem no continente hoje são formados por pessoas que não ligam para o sistema da Ordem. Desde Dest Baker, os problemas relacionados a comida e também organização dos frontes eram simplesmente impecáveis. Agora, estamos em uma lambança que nem mesmo cinco generais treinados conseguem arrumar. Ah, claro, eles são dessa nova Era cheias de almofadinhas que não conseguem enxergar que pessoas estão sendo traficadas e que as Raças Menores estão sofrendo o mesmo problema em suas casas. – Artrax bufou desviando os olhos para o chão. – Esqueço que preciso manter a postura aqui.
Havia se segurado bem até aquele momento. Artrax olhava para o passado tanto quanto Jinx. Sabia que a questão não era o poder, mas a forma como o poder era descentralizado. As Casas Nobres atuais sequer tinham um controle de seus próprios territórios e suas famílias secundárias.
A desordem despercebida por baixo, dos moradores, apenas resultava em um aumento do preço dos alimentos, das comodidades. Sofriam em sobreviver, mesmo na capital da Ordem dos Magos, com fome e também dor.
– Quer que eu mande uma carta para os Baker novamente? – perguntou Anneton.
– Eles não vão aceitar, como disse. Falarei eu mesmo com o Mestre Baker.
Jinx não disse mais nada e o deixou ir. A porta se fechou e Anneton suspirou.
– O senhor tinha dito que ele era difícil de lidar, mas não parece ser tanto assim.
– Não se engane, jovem. – Jinx devolveu o documento do Chamado Nobre. – Artrax está assim porque descobriu sozinho algo que a Ordem estava anos indo atrás. E quando voltou, soube que Jaimes Harrigan apareceu e tentou pegar o Dragão de Prata.
– E o que isso tem a ver?
– É uma longa história. Mas se for pra resumir, digamos que Artrax e Jaimes são mais do que inimigos.
Mais do que inimigos, mais do que adversários, mais do que qualquer coisa que uma pessoa poderia ter de ódio contra o outro. Diferente de Jinx, o sentimento ultrapassava o ódio pelo Papa Negro.
Era um tipo de fogo amargo queimando suas entranhas, que nunca se apagava.
I
Ter visto Maio e Tania deu a Orion Baker um pouco de paz interna. Aquelas figuras tão importantes, revivendo seus desejos e seus sonhos para confrontar seus próprios inimigos do passado, além de um incrível habilidade para reforçá-lo.
E agora, conquistando a Montanha Azul, guardada por tantos anos. Estar em cima da muralha que guardava o Castelo de Espeto, com as duas torres defensivas de cada lado e um portão congelado abaixo de si, vivia um sentimento único de ocupar terras tão devastadas pelo tempo e pela história.
Estar ali significava apenas um pequeno preço de que sua luta não era em vão. E acreditar nisso, mais do que na própria caminhada, o fortificava de tocar o gelo ameia sem sentir dor.
Mestre Pice caminhou de dentro da montanha, onde o restante do castelo guardava o terreno, parando ao seu lado. Usava um casaco mais grosso, e luvas de couraça dadas por Cassiano antes de entrarem.
– Mestre Baker.
Orion não tirou os olhos da planície congelada.
– Diga.
– Gostaria de parabenizá-lo pelo feito de antes. – Orion se virou para ele. – Meus antepassados sempre disseram que os espíritos só sorriem para os que são considerados de bom coração. E eu vi que eles acreditam tanto em você, mesmo sendo tão jovem.
– Fiquei surpreso por isso também. Nunca esperei que o fundador e minha Primeira Senhora viriam me ajudar. – Sorriu modestamente. – Um pouco de crença é difícil de se ter num mundo cheio de batalhas. O senhor deve ter vivido isso também.
– Mais do que gostaria, admito. – Mestre Pice passou a mão sobre o gelo da ameia e puxou algumas pedras. – O senhor uma vez me perguntou quem eram os meus inimigos, e eu respondi de maneira bem crua que era o mundo inteiro.
– Lembro disso.
– O mundo inteiro não tem nada a ver com a Tribo Mestiça. Essa é a verdade. – Ele o encarou. – Heivor é um rapaz que lidera a vida de incontáveis pessoas, mas que também acredita que o mundo pode ser conquistado com força e garra, determinação e a famosa força de vontade. Um desejo que muitos carregam também.
– E o senhor não.
– Acredito no meu líder, como acreditava naquele que liderava antes dele. – Sua cabeça negou. – O que não creio é no acumulo de terras que não podem ser governadas por confiança. Meus inimigos sabem que fugimos de Aragano, também são partes das Bestas endeusadas, o Urso, a Cobra e o Alce.
Desde que soube das Bestas Endeusadas, Orion havia procurado nos livros, mas nada encontrou de relevante. Era apenas um grupo que se autoproclamavam guiados pela natureza, um tipo de culto que adorava as artes místicas de criaturas mágicas.
Heivor recebia dois títulos diferentes, o que dizia ter matado dois dos seus antigos usuários. Não fazia ideia do que poderia lhe entregar de benefício, mas ao lutar contra ele na Costa Congelada, soube de sua força bruta fora do normal.
Seus punhos se tornavam armas, isso era diferenciado de qualquer Mago estudante da Escola de Força.
– E o que eles podem nos prejudicar no futuro, Mestre Pice?
– Se vieram para cá, para esse continente, seriam diferentes de todos, tanto em mente quanto em corpo. Não somos selvagens, mas nossos costumes não fazem parte da civilizações de vocês. Nós lutamos por um lugar, vocês usam acordos. Nós pegamos o que queremos, vocês compram e vendem.
– É uma forma de não derramar sangue desnecessário.
– Pra mim, as palavras servem para unir os povos, nada além disso. O restante – ergueu a mão, o gelo havia deixado um corte na parte de cima de sua palma –, nós fazemos com sangue. Mesmo que eu vá contra muitos das lições antigas, nós vivemos bem hoje com sua família, mas não seremos doutrinados.
Essa era a questão principal.
– Essa nunca foi minha verdadeira intenção, Mestre Pice. O que quero para seu povo é que fique longe das amarras que a Ordem ou o Clero vão enrolar em seus pescoços. Meu aperto de mão não é para que se juntem a mim, se quiserem ir agora, podem ir.
O velho mestiço tinha os olhos cansados, mas esboçou um sorriso.
– É bom ouvir isso. De verdade. Entendo porque os espíritos gostaram tanto de você. Suas palavras não são mentirosas, como de muitos outros. Elas são esboçadas em sua expressão, e um rapaz tão novo fazendo isso me deixa bem envergonhado.
Orion deu uma risada e negou várias vezes.
– Eu só faço o que acho ser certo, Mestre.
– Por isso é diferente deles.
Outro som de passos veio da entrada. Mestre Pice fez uma reverência curta e partiu. Orion permaneceu olhando para frente, até que dois braços passaram pela suas costelas e o abraçaram. Sentiu a respiração em seu ouvido e o queixo recostado em seu ombro.
Aquele cheiro, impossível de esquecer, mesmo se quisesse.
Ele levou sua mão a dela, acariciando seus dedos.
– Tem um tempo para conversar comigo? – sussurrou Nayomi em seu ouvido.
– Tenho todo tempo do mundo. Aonde quer ir?
– Conhece algum lugar quente?
Orion anuiu. E levou o dedo para a direita. Um portal se abriu e passou por eles parados. Num piscar de olhos, estavam dentro de uma casa de madeira. A mesa de centro e os sofás empoeirados, além do chão que não parecia ter sido varrido fazia meses.
Nayomi se desgrudou dele, observando as vigas de madeira que formavam o teto.
– Parece um lugar bem simples.
– Eu morava aqui – disse Orion.
Viu ela pegando um pequeno caderno jogado de lado e depois tocar alguns objetos nas prateleiras. Tantas emoções num único cômodo, tantas histórias. Orion deixou que ela fosse de uma ponta a outra e voltasse até onde estava.
Abraçou-lhe de novo, e fechou os olhos deitando a cabeça em seu peito.
– O que houve? – perguntou Orion.
– Eu fiquei com medo. – Afundou mais ainda o rosto nele. – Muito medo. Se fosse eu lá, não conseguiria. E ele falou que eu não confiava em você.
Ah, Frankilin Verallia tinha feito um estrago bem grande em que observou aquela luta. Realmente, Orion tinha ficado um pouco chateado.
– Confiança se conquista, Nayomi. Ei, olha pra mim. – Fez com que ela erguesse o rosto. – A gente só precisa passar mais tempo juntos. Agora, as coisas vão esfriar, e teremos como jantar, treinar e conversar mais.
– Minha mãe não vai me deixar faltar o serviço do Império.
– O Imperador Nero me deve muito e a sobrinha dele pode faltar algumas missões por mim.
Nayomi sorriu, mesmo entristecida.
– Você joga sujo até mesmo contra o Imperador.
– Não jogo sujo. – As palavras de Mestre Pice vieram em sua mente. – Eu só pego o que gosto. E gosto de você.
Levou seus lábios até os dela. Macios e suaves, como ameixas. O cheio daquela mulher era diferente de todas as outras que passaram em sua vida, a fragrância simples misturada com seu perfil hábil e sua vontade indomável da espada.
Dentro de si, Orion não tinha lugar para outra pessoa, além de Nayomi.