Passos Arcanos - Capítulo 239
Dois dias depois, o Castelo de Espeto era governado por incontáveis trabalhadores de Keifor, a cidade mais aclamada desde a última semana. As maiores capitais do continente conheceram seu novo nome depois de ser anunciado que os Baker aceleraram seu processo, dando a entender que estavam industrializando seu interior.
Uma notícia falsa. Os vários empresários que atravessaram semanas para chegar até lá ficaram abismados por dois pontos. A cidade não mudou nada de sua estrutura social, mantendo-se constantemente reavaliando as despesas e o índice dos moradores, sua felicidade e também postura quanto os novos senhores, era ótima.
A fama dos Baker pelas famílias nobres eram sempre as mesmas. Arrogantes, mesquinhos, fariam de tudo para voltar ao topo, incluindo sugar uma cidade pecuária como a antiga Itauba, e tomando seus moradores como escravos.
O que assistiram era completamente o oposto. Pessoas que gostavam do que faziam, trabalhando e ajudando aos outros, tendo também novos companheiros, reunidos de acampamentos espalhados pelo norte. Os caçadores e coletores se tornaram uma só organização, os lojistas formavam seu próprio sindicato, os navios construídos eram propriamente ditos para a pesca, com uma tecnologia arcana diferente do que se tinha nas Terras Fluviais.
Ali, em Keifor, o mundo de gelo e neve que conheciam pela boca dos outros, era muito mais calorento que o esperado. E os Baker eram constantemente vistos pela cidade, questionando, perguntando, se tornando parte do povo.
Essas pessoas não eram arrogantes, isso Artrax podia ver perfeitamente quando pediu uma informação sobre um restaurante que costumava comer. Foi atendido por um rapaz com um sorriso largo e que o levou pelo caminho mais rápido, sem pedir nada em troca.
Por alguma razão, as suas lembranças dos antigos Mestres de Ofício da família desonrada eram cheios de si, gritando aos quatro ventos o quanto fizeram pela Ordem dos Magos e como deveriam ser respeitados.
Vinte anos enfiados na merda deve ter deixado eles mais humildes.
– Ei, essa comida está uma merda.
Sentado fora de um restaurante, um dos comerciantes socou a mesa de madeira. Aqueles ao seu redor, aliados pelo visto, também recuaram o prato.
– Como servem esse tipo de comida para um dos mensageiros da família Sasuolo? É um ultraje – disse outro, cruzando os braços. – A família Baker deve ser acionada imediatamente para uma reparação. Chamem eles, agora.
Um homem parou diante a mesa, era velho, com um rosto enrugado e um corte no pescoço. Usava um avental sujo, óleo ou tempero líquido, Artrax não soube identificar. Mas, aquele velho homem, ele reconhecia e muito bem.
– Podem falar comigo, senhores de Sasuolo – a voz do velho era grave. – Mas, se xingarem mais uma vez em voz alta, terei certeza que essa seja a última vez que pisem aqui.
Artrax sentou-se com um sorriso divertido. Isso seria interessante de ver.
Os homens na mesa se levantaram quase juntos. Eram novos, seus músculos vívidos e uma incessante vontade de mostrar superioridade. A família Sasuolo era uma das nobres de VilaVelha, e não pareciam procurar por amizades.
Bom, isso se realmente fossem de lá. Só idiotas diziam de onde vieram e para quem trabalhavam assim tão abertamente. Um erro bem jovial. O único problema era que eles não lidavam com pessoas comuns, lidavam com os Baker.
– Acha que pode dar conta da gente, velho? Ficou maluco?
– Moleque, eu já bati em mais Sacedotes do Clero do que você respirou em vida. – Seu dedo ergueu-se, meio trêmulo. – Estou trabalhando aqui só pra passar o tempo, então não me amola. Seu rabo sujo nem deve ter pelos e essa sua boca deve chupar uns cinco paus por dia para conseguir ter esse cheiro de mijo.
As veias do pescoço do mensageiro se exaltaram e ele passou uma perna por cima do banco, indo em seu encontro.
Artrax balançou a cabeça e ergueu a voz:
– Se chegar um metro desse velho, vai perder seu pescoço, moleque.
Parou, olhando para o lado. Os outros, mensageiros ou moradores, viram Artrax receber seu prato e levantar a colher.
– Se sua coragem for realmente alta, tem uma chance de sair vivo. Poucos conseguiram escapar das Garras de Ferro, o homem que lutou contra três Cardeais de uma só vez em Archaboom. – E mirou o talher para o velho. – Esse é Fredy Baker, o antigo cozinheiro das trincheiras. Insultar a comida dele, como acabou de fazer, resulta na morte, não sua, mas de toda a sua família. E você disse que veio de Sasuolo, não é? Vai ser divertido vê-los sendo massacrados.
Houve silêncio. Eles hesitaram depois da nova informação. Encararam o velho e seu dedo erguido, mas tomaram ciência de que não era alguém simples. Esse tipo de gente era fácil de enganar, mas Artrax não mentiu.
O velho era Fredy, um dos Cães Carniceiros, que batalhava com um cutelo e fazia chacina onde passava.
– Vão embora – disse Artrax. – E me poupe de ter que pedir alguém para mandar seus membros decepados de volta para VilaVelha.
– Perdão. Perdão.
Um por um, aqueles homens deram as costas e saíram. O clima pesado tornou ao frio leve e aconchegante de comida boa e de cheiro apetitoso. Fredy esperou que não mais visse aqueles arruaceiros para então abrir os braços e um sorriso.
– Artrax, quanto tempo não vejo, meu velho amigo.
O Rei Alquimista levantou-se e foi ao seu encontro, recebendo um aperto forte e sincero.
– Faz tempo, hein, Cão – respondeu, segurando-o pelo braço. – Essa sua cicatriz ainda está mais viva do que meus cachorros. Esteve em ação ultimamente?
– Ha, como se eu pudesse – exaltou Fredy. – Hoje eu cozinho para as pessoas de graça, e ainda treino alguns cozinheiros para serem grandes. Verdadeiros chefes. Meus tempos de guerra se foram há anos.
– Seu braço não perdeu força, bem que podia voltar. Precisamos dos experientes e dos durões. As batalhas ficaram piores desde que os veteranos se aposentaram.
– Eu deixei isso, Artrax. – Puxou o Alquimista para a mesa. – Done, traga um suco e o prato de meu amigo, por favor.
O rapaz na porta assentiu em velocidade e carregou tudo para a nova mesa, um pouco mais afastada.
– E agora, quem está fazendo toda a algazarra no norte? – perguntou Artrax. – Soube que vocês estão tratando essa cidade como verdadeiros reis. Nunca vi pessoas tão bem vestidas contra um frio mortal. Fico invejado porque em VilaVelha ninguém tem culhão de fazer nada além de olhar pro próprio umbigo.
– Ah, você teria que conhecer nosso novo mestre – riu Fredy. – Ele pensa muito nas pessoas e mais ainda quando o assunto é negócios. Para você ter vindo, o assunto foi o Papa Oculto, não é?
Artrax engoliu o pedaço de carne com gosto, mas desceu seco depois de ouvir aquele nome.
– Sempre direto, Fredy. – Teve que beber o suco. – Sempre bem direto.
– Você sempre foi assim, meu amigo. Um dos Velhos Reis não viria só pra saber da cidade ou das pessoas, ou até mesmo de um velho amigo.
– Não deveria ser tão sincero assim. Você era considerado um dos Velhos Reis antes de tudo acontecer, não era?
Fredy assentiu com um sorriso, mas não expressou sentimento negativo das lembranças de ter seu posto tirado. Há vinte anos, Artrax lembrava-se perfeitamente, de como o Masquerati fez questão de dar aquela cicatriz em seu pescoço.
– Para que nunca se esqueça, a dor nunca vai passar. – Essas foram as palavras do desgraçado que atuava no topo da Ordem dos Magos.
E viu Fredy coçar a cicatriz, ainda parecendo pulsar, depois desse tempo todo.
– São só histórias que conto para os mais novos agora – respondeu o Baker. – Vivo agora como cozinheiro e gosto bastante de ver como meus sucessores estão buscando ampliar nossos negócios. Pode falar, o que veio fazer aqui no norte?
Sem mais como ocultar suas intenções, a carta tirada de seu bolso foi posta em cima da mesa, entre eles.
– Vim atrás do Mestre Baker para o Chamado Nobre.
Fredy nem tocou no papel, apenas o fitou e depois retornou a cabeça para a posição anterior.
– Só isso? Poderia ter mandado alguém no seu lugar?
– O Mestre Baker tem recusado o chamado das reuniões faz meses. O Conselho dos Doze e Jinx pediram para que eu viesse já que tem muita coisa envolvida além de dívidas e controle territorial. Como posso convencê-lo de participar?
– Orion? – Fredy deu uma risada. – Aquele rapaz é igual o pai dele, Artrax. Na verdade, é mais inteligente e mais perspicaz. Ele negou esses pedidos por vários motivos, o maior deles foi porque não tem interesse.
– Não tem interesse? – Artrax tentou entender. – O Chamado Nobre é uma das maiores honrarias para famílias. Entendo que os Baker não possuem mais seus títulos, mas ainda assim é importante pra serem vistos.
– Meu amigo, seu olhar para batalhas sempre foi crítico e muito singular – disse Fredy, calmo e sereno. – Minha família já saiu dessa guerra. E querem nos fazer participar. Ainda existe cerca de dois mil Baker em trincheiras espalhados por ai, esperando por uma oportunidade para voltar para casa.
Artrax tinha um pouco de compreensão desse número depois da Ordem pedir uma pessoa de cada família das Ilhas Seguras. Mas, duas mil pessoas é bastante coisa?
– E o que quer dizer com isso?
– Estamos vivendo outra vida, Artrax. Enquanto Orion luta contra os monstros que nós já enfrentamos antes, essas pessoas aqui – e olhou para os dois lados – são protegidas por Cavaleiros, Magos e mercenários contratados. Consegue entender? Nossa luta não é mais nas Terras Fluviais, é aqui.
– O frio não parece ser um oponente poderoso.
– Seu sarcasmo ainda é inflado, não posso negar isso – riu Fredy Baker. – Se esse Chamado Nobre é tão importante, posso te levar a encontrar o Mestre Baker, mas terá que esperar por alguns dias. Eles estão em expedição no Castelo de Espetos.
E viu o sorriso de Fredy não morrer ou ser substituído por preocupação. Artrax indagou com um olhar.
– Não – disse mais para si do que para ele. – Aquele lugar é amaldiçoado.
– Ah, meu amigo. Sabe mais do que ninguém que um Cão Imortal luta até a morte, e se ele não morre, ele fica mais forte.