Passos Arcanos - Capítulo 242
Nero recebeu Artrax, porém, a expressão do Velho Rei era pior do que da última vez que conversaram. Esperou que ele se acomodasse em um dos seus sofás, respirando fundo e tomando a xícara dada por uma das criadas.
– Ele te irritou? – perguntou Nero, mesmo sabendo a resposta. – Orion possuí esse dom quando quer.
– Não me irritou, me deixou intrigado. – A xícara repousou em seus lábios por alguns segundos e depois passou a língua por cima. – Um rapaz que dita as regras de uma família como aquela tem que ser temido e destemido. Conheço muitos que teriam uma recepção mais amorosa e falsa. Ele foi honesto comigo, do começo ao fim.
Pelo menos o Rei Alquimista reconhecia a lábia de Orion Baker.
– Posso perguntar o real motivo de ter ido lá?
– Eu queria respostas.
Nero esperou mais do que só isso de resposta.
– Atravessar metade de um continente apenas para conversar com o chefe de uma família? Se os outros Reis ouvissem, você seria taxado como bobo. – Nero largou a pena no tinteiro e dobrou o papel que escrevia. – Pode ser que tenha a ver com tudo que está acontecendo em Hunos.
Os ombros de Artrax estavam pesados, e ele nem disfarçava.
– Pode ser que eles estejam certos e eu seja bobo. Um bobo que tem tentado curar essa maldição que criamos dentro das nossas próprias terras. Não aguento mais ter que ver humanos enfrentando seus semelhantes e morrendo por nada, e os que sobrevivem são escravizados e levados para longe, onde criaturas, se posso chamar assim, compram e vendem eles. – Balançou a cabeça, cansado. – Queria que a Ordem dos Magos voltasse para os dias que tínhamos culhão para entrar e tomar Archaboom sem nos preocuparmos com aquelas merdas de leis e tratados.
– Esses tempos se foram quando Masquerati chegou ao topo – disse Nero. – Deixaram um monstro ganancioso se apossar de um dos melhores tesouros. Entretanto, ele tem seus dias contados. Não se preocupe quanto a isso.
Artrax o olhou de soslaio, um pouco interessado.
– O que quer dizer?
Nero mostrou seu sorriso perverso.
– A mesma pessoa que conseguiu te irritar ontem também tem um inimigo que o atormenta por mais de vinte anos. Orion Baker e o Masquerati estão destinados a ser enfrentar, e você pode escolher um lado, meu amigo. – Abriu os braços, mostrando as mãos nuas. – Encarar Orion e sua família desonrada, mantendo a hierarquia e controle da Ordem sob as asas dos Grandes Magos de Masquerati ou – balançou a mão direita – mexer nas estruturas que estão moldado essa sociedade por tanto tempo. E então, qual o melhor caminho para um Velho Rei Alquimista?
I
– O convidado Orion Baker, da família Baker, está presente.
As duas portas de madeira se abriram. O cheiro que Orion sentiu a princípio era carne e ovos fritos, uma refeição padrão até mesmo em VilaVelha. Sobre a mesa quadriculada, a quantidade de comida posta poderia alimentar mais de trinta pessoas facilmente, e somente havia quatro delas ali.
Tanto para poucos, e pouco para muitos.
– Mestre Baker. – A chegada amistosa de Rabin Tripier, o dono da União de Ferro, era calorosa. – É uma honra ter vindo nos visitar depois da carta que recebemos para irmos até o Norte. Ficamos surpresos.
Um dos empregados, com um terno formal enegrecido e luvas brancas, puxou a cadeira para que Orion se juntasse a eles. Ali, presentes, Rabin e seus filhos, Carlos Tripier, legítimo de sua primeira esposa, e Adenona Tripier Alex, filha de sua segunda e atual esposa.
Os dois não se pareciam nada com o pai, que tinha grandes maças no lugar das bochechas e um nariz de batata. Puxaram a mãe, com rostos finos e suaves, de nariz empinado e sobrancelhas estreitas.
O olhar de Carlos Tripier era surrado e bruto, duvidando de sua presença mesmo estando ali. E Adenona calculava de lado suas principais intenções. Orion entendia bem de olhares depois de ter que estudar por tanto tempo nas Caldeiras de Ilhotas.
Não pareciam confortáveis em sua presença.
– Agradeço por me receberem tão cedo.
– O galo sempre canta as seis – disse Rabin, rindo. – O melhor horário que podemos te receber é o horário que você pode vir. Conhece meus garotos, certo?
– Conheço apenas por nome.
– E esse é meu conselheiro – apontou a extrema direita, enrolado num turbante roxo e peludo. O gordo e careca tinha a fama de ser umas das facas afiadas da União de Ferro. – Milton Lupin, o melhor economista que já conheci também.
Orion o saudou com um balançar de cabeça.
– É um prazer.
Num gesto gentil, o homem ergueu a xícara de café que tomava.
– Digo o mesmo, Mestre Baker. A história que contam sobre suas vitórias no norte contra Rock Albone, Azrael France e Monique Aurelius são incríveis. Muitos exageram, mas vendo sua aura, tenho certeza que são verdadeiras.
– É gentil demais pensar que fui vitorioso em todas elas. Azrael escapou das prisões da Ordem, Rock Albone ainda está foragido e Monique Aurelius é uma Bispo com capacidade de atormentar os Magos onde quer que esteja.
– Ainda é uma vitória – disse Carlos Tripier. – Bateu neles e os mandou embora. O importante é sair vivo.
Orion não sabia o quanto aquele rapaz sabia das histórias, mas negou da mesma forma.
– A vitória só depende de quanto está disposto a sacrificar. E eu não fiz o suficiente para me considerar vitorioso nessas batalhas. – Tomou água de uma jarra e despejou na taça de vidro. – A certeza é que eu vim aqui porque minhas batalhas são travadas de muitos ângulos, e preciso entender onde meus negócios estão envolvidos.
– Confiança é nossa palavra-chave – disse Rabin, ainda sorrindo. – Pode perguntar o que quiser, um patrocinador como você tem total direito de respostas.
– Agradeço. O fator principal é que tenho um pequeno grupo de pessoas que gostaria de comprar as ações da empresa. Os Bancos Centrais alegam que a quantidade máxima a ser comprada seria de algumas poucas dezenas de cotas, acho que cem delas mensalmente, o que custaria dez mil moedas de ouro.
Rabin concordou facilmente com sua afirmação.
– Os fundos da União de Ferro veio de uma conexão entre muitas pessoas, Mestre Baker. Digo isso porque cresci sendo ensinado sobre a nossa cultura de ter muitas pessoas juntas, formar uma aliança comercial. É o que fazemos, damos aos nossos melhores acionistas a parte que é deles.
– E a família Tripier ainda mantém a maior porcentagem de ações no mercado da Ordem?
– Como de costume. – Rabin não se importou nada de revelar. – O senhor pode achar um pouco mesquinho, mas meu pai e meu avô forjaram a estrutura que está hoje. O caminho sempre terá que ser percorrido pelos pés dos meus filhos depois que eu não tiver mais condição de andar.
Orion olhou para Milton Lupin.
– E a porcentagem máxima que uma família poderia ter seria de 49% já que é uma organização pública?
– É o que deve ser relatado. – A face do Economista não era risonha como Rabin. Era de precaução. – Me pergunto se teria interesse em se integrar ao grupo dos mais altos acionistas, senhor Baker.
Manteve-se impassível num exalar calmo. Ainda olhava para Milton.
– Na verdade, não tenho nenhuma vontade. Gostaria de saber por quanto venderia sua ação nesse momento, senhor Milton. Qual o seu preço para que não faça mais parte dos acionistas da União de Ferro hoje?
A pergunta pegou os quatro de surpresa.
– Senhor Baker – disse Adenona, pela primeira vez. – A pergunta é inconveniente para essa situação. Por favor, reconsidere.
Ainda olhando para Milton, ele negou.
– Por que eu deveria? Milton Lupim tem um dos piores capitais desde que se tornou integrante da União de Ferro. Tem uma dívida nos Bancos Centrais de dezenas de milhares de ouro, e tem carta marcada em três cidades livres de Hunos. – Olhou para Adenona, com um olhar conflituoso. – É um pouco inconveniente eu saber os passos de um homem com a cabeça a prêmio por duas famílias nobres?
Ouviu-se o seco da garganta de Rabin descendo e o olhar torto de Milton se tornando raivoso.
– É uma imensa falta de respeito dizer tais coisas na nossa mesa – disse Milton. – Senhor Rabin, esse homem veio aqui com uma intenção pior do que os Magos. Ele quer minha cabeça, assim como todos os outros. – Apontou o dedo para Orion. – E não existe provas. Meu nome nunca foi marcado.
Orion esperou um pouco. Gostava de ver um homem lutar contra a sua própria natureza em momentos como esse. Sabendo da sua verdade, vivendo-a por tantos anos, e mesmo assim negando para salvar sua vida.
Puxando de dentro de seu manto vermelho e dourado, uma carta lacrada.
– Senhor Rabin, esse é um documento criado pelo próprio Economia, um dos meus patrocinadores das cidades livres, que alega que seu conselheiro e economista tem uma dívida com mais de quinze pessoas diferentes. E eu tenho isso – ele puxou outro papel. – A testemunha e também cúmplice de Milton em golpes aplicados a empresas pequenas, revendendo as peças de armadura e armas que o senhor fabrica. E o nome desse homem é Julius Lupim, o irmão dele.
A face de Milton se tornou vermelha. Orion não esperou, apontou o dedo e uma runa se formou. O movimento do careca diminuiu ao ponto dele não se mexer mais. Os três olharam para os olhos de Milton serem tão lentos, tão demorados, e ficaram estupefatos.
Pondo a runa cinzenta flutuando no ar, Orion abaixou o braço.
– Uma runa passiva com intenção de bloquear qualquer escapatória. É conhecia como ‘Sono Acordado’. O que mais me impressiona é o fato de que o senhor não procurou saber sobre o passado do seu próprio conselheiro, e nem mesmo da condição da sua fábrica, senhor Rabin.
O sorriso dele se transformou em uma massa flácida de indiferença e descrença. Ainda olhava para Milton, a decepção se transformou em raiva. Havia negação também, mas não foi além disso.
– Esse homem veio ao meu pai como um antigo amigo – esbravejou Carlos, socando a mesa. – Eu mandaria matá-lo pelo que ele fez.
– Mandaria matar um homem que só roubou vinte e cinco manoplas de ferro do seu cofre? E os guardas que foram pagos por eles? E as famílias dos guardas que vivem as suas custas? – Orion cruzou o braço. – Sentenciaria esse homem sabendo que vai acarretar em tanto?
O rapaz silenciou sua raiva.
– O que pretende fazer? – perguntou Adeona. – Ele deve ser punido.
– Eu não sou um Justiceiro. – A runa se desfez e Milton voltou a mexer-se velozmente.
Tropeçou sozinho, segurando-se na mesa. Piscou os olhos fortemente, meio tonto.
– Felizmente, tenho como deixá-lo ir, Milton. – Outra runa se formou e uma corda enroscou seus pulsos e o puxou para baixo. Ele bateu com o queixo na mesa, ficando ali parado. – Sua ação da União de Ferro, eu quero ela. Me dê e te deixo partir, como se nada tivesse acontecido dentro dessa sala.
– Mestre Baker, por favor – implorou Milton. – Meu rosto… doí.
– Eu sei que doí. Bastante, pelo visto. Seus dentes vão esmagar um ao outro, e depois de trincar, sua gengiva vai ser a próxima. O sangue vai escorrer por toda essa comida desnecessária. – Orion não gostava de vê-lo agoniando, era apenas… necessário. – A sua ação, quer me dar em troca da sua liberdade indolor?
– Sim, sim. Pelo amor, eu entrego qualquer coisa.
Uma mão feita de chamas escarlates adentrou o peito e puxou o papel para fora. Com o símbolo e também o nome de seu portador. Assim que ela atravessou a mesa e entregou a Orion, se dissolveu no ar, sozinha.
O papel tinha muitas marcações, como o valor e também seu crédito no Banco Central. O registro de sua fabricação e o mandante, senhor Rabin Tripier. Orion leu por completo e o abaixou ao lado dos outros dois documentos na mesa.
– Parece bem legível pra mim. Eu vim atrás disso, senhor Rabin, e fiquei impressionado que o senhor não saiba onde se meteu ao vender tantos das suas ações para um grupo de arrogantes e corruptos empresários que o roubam noite e dia.
– Eu… como? – o homem ainda estava perdido com o queixo Milton sendo esmagado contra a mesa. – Ele sempre me deu os melhores conselhos. Meu pai o ajudou e…
– Seu pai nunca esteve em contato com esse homem. Milton é um fraudulento, capaz de criar histórias tão reais que ninguém além dele mesmo poderia saber que é mentira. Mas, o pior erro de um mentiroso que não tem uma boa memória é contar versões diferentes para muitos. E eu não me esqueço de nada que escuto.
– Por… favor – gemeu Milton mais alto. – Por… favor.
– Com toda essa verdade sendo jogada na frente dos Tripier, vocês devem estar se perguntando em quem poderão confiar. – Orion Baker ajeitou a postura. – VilaVelha é tão suja quanto a Justiça Mágica, cheias de ratos querendo um pedaço do seu lucro. E no meio disso tudo, os honestos homens que são empregados são corrompidos pelo desejo de serem tão ricos quanto eles. O que ofereço é minha ajuda.
– O que você tem para oferecer? – Adenona perguntou no lugar do pai. – Como sei que suas palavras não são cheias de mentira, como a desse verme?
– Isso é simples. Antes de vir aqui, eu comprei cada ação da União de Ferro, uma por uma, das mesmas pessoas que vocês entregariam suas vidas dizendo que são seus elos fortes. – Uma moeda apareceu em sua mão. – O ouro é amigo deles, não vocês. Correram pelo preço certo, o que me custou apenas cem mil de ouro. Um preço justo para uma empresa tão grande e antiga que seus antepassados criaram com tanto suor?
– Eles venderam?
Rabin segurou a mesa com uma cara de choro. Carlos segurou o pai pelo ombro, acolhendo-o rapidamente. Adenona também ficou perto, segurando sua outra mão.
– Eu sei a sensação – disse Orion Baker. – E eu estou aqui para te mostrar duas coisas, senhor Rabin.
O homem se obrigou a olhá-lo. Orion viu a alma entristecida e decepcionada de um homem vigoroso e virtuoso. A dor da traição doía mais do que uma facada no peito, em alguns momentos.
– A primeira é que não existe nada que eu não possa tomar. Se eu quero algo, eu faço de tudo para pegar. E segundo, meus aliados nunca são derrotados. Essas duas cartas são suas, faça o que quiser com Milton Lupin.
Orion arrastou a cadeira para trás e se levantou.
– Com a ação de Milton, eu tenho cerca de 49% da posição da União de Ferro. Vocês são as únicas pessoas que podem comandar uma empresa dessas. Daqui pra frente, se precisarem de ajuda, estou a disposição. E não se preocupem – devolveu a cadeira a mesa – sou mais gentil do que fui agora.
A runa se dissolveu e Milton arfou em alivio. Sua boca já sangrava e seus dentes mancharam-se em vermelho rubro. Ele caiu deitado no chão, solto.
– Eu quero a União de Ferro sob proteção dos Baker – disse Orion a eles. – E espero que entendam o que isso quer dizer.
– Quer mandar em tudo que construímos? – perguntou Carlos. Aquela raiva de antes sumiu. O poder de Orion o deixou abalado. – Meu pai…
– Quero apenas que atendam os meus pedidos como prioridade. O pagamento será maior do que vocês podem imaginar. Começando por agora. Eu estarei doando cem quilos de Itrio e mais cem de Cristais de Zio para produção de armaduras de alta qualidade. O que estou dando é uma pequena quantidade do que os Baker podem oferecer, mas quero que deixem claro para seu público que a partir de hoje, qualquer acordo e qualquer negócio que esperam fazer, deverão passar por uma inspeção da minha família.
– Itrio? – Rabin o olhou mais uma vez, cheio de surpresa. – Esse minério é tão raro quanto safiras douradas. Como você teria isso?
– Não se engane, senhor Rabin. – Orion mostrou seu sorriso. – O que as pessoas sabem sobre o poder dos Baker é pequeno comparado ao que realmente temos. Querem ser uma outra organização, uma outra fábrica no meio de Hunos? Que seja. Mas se querem ter algo no qual acreditar, aceitem a minha oferta.
– Sua oferta é exclusividade – disse Rabin. – É isso que quer?
– Venha me visitar no norte e saberá do que estou falando. Até lá, aceitem os minérios como presentes.
Orion deu as costas e saiu andando. Antes de atravessar a porta, ouviu Rabin.
– Meu avô fundou essa empresa porque queria que os verdadeiros Cavaleiros pudessem sair vivos do meio da batalha sem serem atravessados por espadas ou lanças. A armadura deles deveria ser resistente, sem brechas.
– Sem brechas – repetiu Orion. – Um peitoral de aço dobra por um Mago de Força. Com Itrio refinado, as magias que sempre foram fatais vão diminuir.
– Eles querem qualidade. Eu quero mostrar isso a eles.
Rabin ficou de pé com a ajuda de seu filho.
– Se sua família pode fornecer esse tipo de qualidade, não me importo em caminhar numa estrada cheias de espinhos. Pode ser hoje ou talvez amanhã, a Ordem sempre acha um jeito de tirar minhas melhores mercadorias.
Orion virou o torso de volta.
– A Ordem não pode mais tocá-los comigo aqui.
A força nessas palavras deram a Rabin e seus filhos uma leve tremedeira. Não era só uma frase, era o efeito dela. O sorriso de um rapaz de vinte anos que entregou cem mil moedas de ouro e ainda juntou as ações da União de Ferro para si, a vontade de ser grande. A ambição carregada da vontade fervorosa da grandeza.
Era assim que viram Orion Baker.
Sua pequena aparição em VilaVelha não tinha terminado. Não ainda.