Passos Arcanos - Capítulo 249
– Eu ordeno que lutem.
A mensagem de Orion atravessou o espaço para Martin Crons. O Mago dos Raios tinha sido preso em uma estranha amarra de gelo, e atirado para longe. Os raios não estavam penetrando mais as estruturas gélidas, e ele se viu preso deixando Nayomi Defoul sozinha.
Bufou e fechou os olhos.
– Onde está aquela maldita euforia de antes? – bateu na sua testa várias vezes. – Você não é uma animal adestrado. É um Imperador, tem que agir como um. Olhe pra você agora. – E viu o gelo se esticar mais pelo pulso, descendo para o cotovelo. – Uma magia tão fraca e está preso. Ele enfrentou um Bruxo Amaldiçoado naquele dia e você não consegue ganhar de uma Maga qualquer? Ridículo, Martin Crons. Rídículo.
Virou a cabeça para a esquerda.
– Eu estou fazendo meu máximo. Não posso sair destruindo tudo só porque eu quero. Tem muitas casas e pessoas se escondendo dentro delas. Eu tenho que ajudar a Nayomi também, ela precisa de mim.
A cabeça para a direita.
– Ajudar? Você é um maldito Imperador Relâmpago. Deixe a mana dos antigos fluírem pelas suas veias. Lembre-se do seu objetivo final, é se tornar o maior ao lado dele, não é? – Apertou o punho e puxou o braço pra fora do gelo, quebrando com facilidade. – Orion precisa de alguém de confiança e nós precisamos de alguém para nos auxiliar. Somos mais fortes do que todos os seus irmãos juntos, não somos?
– Somos, claro.
– Me mostre, então. Me mostre que é mais forte que eles.
Balançando a cabeça, Martin piscava os olhos fortemente. Deixou o ar se esvair pela boca. Os seus pensamentos, afugentados pela concentração constante, se desdobrou numa linha única, azulada. Chiava em estalidos, uma chuva colidindo contra o telhado de uma casa no meio da pradaria. A calma e paz de um pequeno estaleiro navegando no meio do oceano. No fundo, esperando pela tormenta de uma tempestade, Martin foi carregado para a fúria dos céus.
Se via flutuando no ar, os relâmpagos a sua volta, de todas as cores, colidindo fortemente uns contra os outros. Aquilo era imperar, não ia contra ninguém, mas não obedecia ordens.
– Um homem pode mudar durante sua vida, mas se nasce Imperador, sempre será Imperador.
Martin inclinou-se e libertou um grito de sua alma. A mana guardada em seu peito, em seu núcleo, saiu violentamente em cores variadas. Ele fechou o punho mais uma vez e abriu os olhos, o azul correndo pelas suas pupilas eram faíscas intermináveis.
– ‘Lyn: Golpe da Tempestade Eterna’.
Ele rompeu os resquícios de gelo ao redor e disparou. As casas foram deixadas para trás, o chão se tornou um borrão. Ele surgiu novamente diante da muralha e do portão, o braço puxado para trás da cabeça e um rugido cheio de ira.
O gelo da estranha Maga se formou diante sua frente. Lento demais para acompanhá-lo, apenas metade dele chegou ao topo.
O soco destroçou aquela parede, um buraco se formou e Martin adentrou o campo dos Cavaleiros. Nayomi só teve tempo de recuar um passo e olhar. O Mago de Raio passou rasgando a armadura de latão com as mãos nuas. O sangue jorrou para fora e antes de tocar o chão, os dedos dele se tornaram uma afiada lâmina, penetrando mais três em seu caminho.
Só existia um único jeito de chegar até a Maga de Gelo que controlava o campo de batalha e era destruindo o batalhão adiante. Num giro no ar, os raios se libertaram como flechas e guiando-os com o olhar, fez mais dez caírem em instantes.
– Preciso de cobertura – disse Nayomi. – Martin, temos que tirar essas pessoas daqui.
– Vai.
Ele bloqueou a espada com o antebraço, acertou o pulso no meio do homem e ergueu os dois dedos. Um calda elétrica se libertou da ponta e penetrou o queixo, matando-o na hora. Ao empurrá-lo, usou sua queda para pisar em seu ombro e saltar mais uma vez.
Por poucos segundos, ele e a Mago de Gelo se encararam. O rosto dela era coberto por um pano, apenas o azul dos seus olhos ficavam visíveis. A vestimenta totalmente cinzenta, com um pequeno objeto em sua mão.
Ela apontou aquele objeto para Martin.
– ‘Vinte Picos Gélidos’.
Quase instantaneamente vinte imensas videiras subiram do solo. No ar, sua desvantagem era evidente. Martin não se desesperou, ainda estava focado. Não existe nada que não possamos conquistar.
– Nada.
– ‘Lyn: Parafuso’.
Num redemoinho, ele girou no próprio eixo em alta velocidade. As videiras de gelo tentaram se aproximar. Faíscas começaram a se libertar perfurando o gelo e o expelindo. Assim que terminou, Martin usou os últimos rodopios para esticar o braço para trás.
Mana foi expelida, o jogando na direção dela.
– ‘Cavaleiro do Inverno’ – reagiu a maga.
– Isso é tudo que você tem?
A espada de gelo da invocação cresceu quase dois metros e desceu velozmente. Martin ergueu a mão e bloqueou. Não foi suficiente para pará-lo completamente. Ele defletiu a arma para cima, obrigando o Cavaleiro a recuar alguns passos.
– ‘Lyn: Dragão Solitário’.
Uma carcaça draconiana se mostrou da runa. A boca do dragão feito de raio mastigou o Cavaleiro de Gelo e avançou até a Maga.
– E pensar que teria que lutar a sério. – A mulher ergueu a mão e dezenas de símbolos se formaram ao mesmo tempo, tão negros quanto a noite. – ‘Zero Absoluto: Prisão Eterna’.
Ao simples brandir, a temperatura caiu drasticamente. O Dragão Elétrico rugiu e se libertou com fúria, porém, ao passar os escombros congelados pelas laterais, sua velocidade diminuiu. Seu balanço lateral se tornou nulo, travando em pleno ar.
A Maga ainda tinha seu braço erguido, fitando claramente Martin Crons.
– Nada pode se mexer na Prisão Eterna – disse ela. – O Reino de Crons não possui desavenças com a gente. Recue e poderá viver. Caso negue – ela fechou a mão e o Dragão de Raios se tornou um pedra de gelo.
Mais recuada, Nayomi encarou Martin. Ele tinha um olhar bem centrado, não piscava e nem desviava pelos sons ou gritos ao redor. Desde que conheceu esse rapaz, jamais acreditou que poderia rivalizar com Orion Baker, mas vendo sua determinação, as palavras do próprio Orion faziam sentido.
– O único que conseguiria me fazer chegar ao extremo – ouviu de Orion quando caminhavam pelo Palácio de Vidro, no Império Nevasca. – A vontade dele de querer lutar me lembra quando eu era mais novo, ele cresceu sem perder isso.
Nayomi sabia que Martin não recuaria, e ela também não faria isso.
– Martin – chamou alto, tentando sobrepor sua voz aos lampejos flamejantes que ocorriam em outras partes da cidade. – Vou te dar cobertura. Vai.
A cabeça de Orion balançou algumas vezes, negando.
– Não, não. Isso está errado. Isso está errado, está muito errado. O quê? O que está errado? – Ele apontou para frente e questionou a si mesmo. – Não faz sentido. Se ela fez isso, quer dizer que temos que ser mais rápido e mais forte. Idiota, não é assim que funciona.
A espada de Nayomi voltou para o chão. Martin estava conversando com ele mesmo?
– Isso acontece – ouviu em sua mente, era Orion. – Ele está aprendendo, não interrompa.
– Mas não deixa de ser estranho.
Orion riu.
– Se soubesse o que se passa na cabeça dele, mudaria o conceito de estranho.
Os olhos de Martin não piscavam. Ele focava na Maga, todos os seus membros, todos os fios de cabelo, sua respiração, o ângulo dos seus dedos e dos seus pés, a runa e também o gelo jogado em vários cantos.
Aquela pequena mulher estava limitando sua trajetória.
– Eu nasci Imperador ou tenho que me forjar? – a pergunta não saía de sua cabeça. – Preciso entender ou só destruir? Preciso ser um Imperador ou preciso estar convicto que minhas ações são dignas de um? O que é ser um Imperador e o que é o Relâmpago?
– Está questionando sua própria existência de novo? – a voz rebatia com arrogância. – Observe o que ela fez com essa cidade. Essas são ações de criaturas medonhas e mesquinhas, um Imperador pode destruir ou salvar em medidas extremas, ele não fica no meio do caminho. Se temos um objetivo, nós nos sacrificamos por ele, até o final. E qual o nosso objetivo agora?
O dedo de Martin se elevou, apontando para a Maga.
– Destruir quem fez isso com a cidade.
– Não poupe energia, mostre para ela, como mostrou para Jlien, lembra?
Um sorriso abriu-se no rosto dele. A lembrança agradável de uma luta em conjunta.
– Eu só preciso acabar com ela – sua voz saiu em voz alta. – Só isso.
Jogou seu braço para trás e fagulhas se acenderam. Elas adentraram sua pele e expuseram suas veias, subindo para o pescoço e alimentando seu manto desgastado, cortando e rasgando em muitas outras partes.
Em cinco segundos, o espaço onde Martin pisava se tornou um conglomerado de fragmentos elétricos de todos os tamanhos e formas. Ele gargalhou e deu um passo. O cimento rasgou-se em cem direções e afundou.
Martin saltou. A Maga nem percebeu sua aparição repentina. Teve que desviar a cabeça de um soco violento, e de um chute circular. Tentou tocá-lo, mas num gingado cheio de destreza, Martin acertou todos os pontos futuros e abriu espaço.
Ele abriu e fechou a mão, subindo velozmente.
– ‘Lyn: Escalada ao Céu’.
A Maga se jogou para trás, um imenso relâmpago escapou do chão e subiu direto para o céu. Achou que teria tempo para conjurar alguma magia, mas Martin não lhe deu essa chance. A calda do relâmpago foi agarrada por ele e puxada, uma parte da carga azulada desceu como uma espada.
– Merda.
Unindo as mãos, a mana da Maga surtou efeito imediato. Um imenso casulo de gelo se cresceu ao seu redor num giro perfeito. A improvisada espada golpeou o bloco, centenas de fragmentos se separaram, não o suficiente para abrir uma fissura sequer.
– Seus raios são fracos, Herdeiro dos Crons. – De dentro da estrutura gélida, a Maga relaxou os ombros. – Seus irmãos tem um poder ofensivo muito mais mortal, sua mobilidade não pode ganhar de uma defesa dessa. Eles poderiam, mas você não.
Do lado de fora, a espada ainda era segurada pelas mãos nuas de Martin. Ele puxou para si e aproximou perto do peito.
– Meus irmãos são apenas marionetes dos meus pais. – A espada se tornou uma centelha, pequena e bem condensada. – Eu escolhi viver meu próprio destino. Assim como os Imperadores antes de mim.
– O último Imperador Relâmpago morreu sem deixar discípulos. Sem os registros, você é só outro Mago qualquer.
Outra risada, Martin gargalhou e concordou.
– Eu gosto de ouvir isso. Ele morreu sozinho, mas nunca teve ajuda. Diferente dela, eu sou um Imperador que tem outro me apoiando. – A centelha pulsou e sua cor azulada mudou. Um roxo escuro brilhou. – Ele enfrentou inimigos muito mais fortes do que você, como posso ficar ao lado de um Imperador se me rebaixo a uma Maga de Gelo qualquer?
Seu braço esticou-se e a centelha se esticou.
– ‘Lyn: Condensação do Dragão Roxo’.
Houveram rugidos no continente, de bestas mágicas e criaturas mitológicas, seus berros se tornaram tão desagradáveis que assustavam quem assistia. Entretanto, aquele rugido que se espalhou não foi furioso, não foi violento, foi cheio de arrogância e desprezo.
Nayomi se assustou. O imenso dragão não era igual ao outro, era duas vezes maior, mais vivo, cheio de energia e parecia estar sorrindo, assim como Martin. Lembrou-se novamente de Orion dizendo:
– Algumas pessoas só precisam acreditar que são fortes para se tornarem mais fortes. Martin não está nesse meio, ele sabe que é forte, mas que não existe limites para nós.
O imenso dragão abriu sua boca e carregou a casa de gelo da Maga. Bateu contra o chão, as paredes, os escombros e seus dentes racharam a estrutura. Ele jogou o bloco de gelo para o alto, e subiu junto em um giro circular.
Martin uniu as mãos novamente e gargalhou mais alto do que das últimas vezes.
– Ninguém pode me parar. – Sua voz soando ainda maior do que o rugido. – Ninguém pode dizer o que posso fazer. Porque eu sou o próximo Imperador Relâmpago. ‘Lyn: Carga Máxima do Raio Criador’.
A tensão foi tanto que seus joelhos dobraram um pouco, porém, ele se manteve em pé. Apontava vagamente para o céu, tremendo e arfando. Nayomi olhou para cima, uma imensa runa azulada separou as nuvens, maior do que a muralha, quase pegando metade da cidade inteira. E tinha apenas um alvo.
– Desça – ordenou Martin.
O Dragão abocanhou o bloco de gelo e a Maga tentou se libertar. O gelo até conseguiu travar o focinho da criatura, mas sua fúria não podia ser controlada. Desesperada, desfez a magia e saltou para a direita.
Os dentes do Dragão fecharam-se. Seus olhos percorreram o ar até onde ela estava. Foi quando a Maga de Gelo observou a runa no céu, girando como uma engrenagem fomentada pelo desejo e vontade.
Nayomi Defoul teve medo, com todas as suas lutas e treinos, observar o que um Mago de Raio de vinte anos poderia fazer, e ainda nem estava no seu auge, isso era mais do que suficiente para atormentá-la.
Queria saber o que se passava na mente daquela mulher. Que tipo de plano ou lembrança estaria percorrendo sua cabeça para sair dali viva. Como alguém não teria medo daquilo?
– ‘Zero Absoluto…
– Nem pense nisso.
Os dois braços dela foram puxados para trás, travados e unidos por uma corrente elétrica. Martin pisava em um círculo mágico, um que não estava ativo até aquele instante.
– Eu descobri o poder das magias passivas faz pouco tempo com um amigo meu. A condição para ativação era o toque, se você usar uma magia duas vezes, seus dois braços seriam trancafiados pela ‘Prisão do Rei’.
A Maga viu o Dragão e uma lança descendo em sua direção. E nada podia fazer.
Nayomi observou o desespero de um lado e a risada tensionada do outro. Martin não deixava de admirar seu próprio plano, suas próprias ações, suas próprias medidas. Ele não só gostava do que fazia, ele amava destroçar seus inimigos.
E quando as duas magias a tocaram, Nayomi Defoul virou o rosto. Era doloroso demais para assistir esse tipo de morte. Doloroso demais para qualquer um que não fosse ele.