Passos Arcanos - Capítulo 253
— Está meio frio hoje, senhor Baker. — Mestre Trindade tinha dois casacos por cima do ombro e ainda assim tremia segurando os próprios braços, aquecendo o peito. — Tem certeza que está tudo bem?
A Montanha Azul era uma visão bem bonita no começo da manhã. Orion gostava de estar ali para observar os fracos raios solares penetrando seus picos e deslizando como as antigas fadas para sua base. Os ventos traiçoeiros do norte também faziam seu brilho parecer ter som, como um uivo de lamento que Orion trazia para si nas palavras do Bruxo Verallia.
O desejo de tantos depositados em cima de si.
— A sensação é diferente para mim, Sindromeu. — Não sentia o frio nem o calor, por isso usava as leves roupas negras com decaimento avermelhado dos Baker. — O inverno e o verão são épocas muito iguais, mas elas passam voando. Faz algum tempo que o senhor não vem me relatar nada.
— Peço perdão. Seu pai quase me obrigou a deixá-lo em paz esse tempo. Ele disse que você estava muito ocupado com questões do Arcano.
Atrás de Sindromeu Trindade, seus três guardas utilizavam armaduras completas. O ferro cinzento quase os deixava invisíveis na neve. E o trio não tirava os olhos daquele homem.
— Meu pai apenas queria me tirar um pouco da confusão que Ordem criou, mas nada que eu não saiba realmente. Mesmo não vindo até mim, seria negligência da minha parte como um aliado não entender para onde nossos passos vão nos guiar.
— Prezo pela sua preocupação. — Sindromeu deu um passo adiante, ficando perto da ameia e olhando adiante. — E por que todos estão dizendo que não é para me preocupar vendo que o senhor parece tão distante?
Orion demorou para responder. Uma das nuvens bloqueou o sol completamente, e o brilho da Montanha Azul morreu lentamente.
— Precisei desse tempo para pensar. — Virou-se para ele. — Pensar em como seguir adiante.
— E poderia me dizer que passos são esses?
— Se fosse para resumir, toda a estrutura da Ordem vai entrar em reestruturação. O que aconteceu no mês passado foi bem traumático para muitas pessoas. — Ele voltou o olhar para a montanha. — E meso que nós ofereçamos nossa ajuda, seria insuficiente. Nossa cidade é prioridade acima de tudo, e também virou um tipo de alvo desde que VilaVelha se tornou tão caótica.
Sindromeu não gostou nada daquelas palavras.
— Alvo? Quem quer que esteja pensando em atacar nossa cidade, eles vão pensar duas vezes antes. O senhor está aqui, no final das contas. Eles sabem da sua força.
— Exatamente. — Orion fez uma ligeira pausa. — Eles realmente sabem.
I
As discussões eram fervorosas. A boca de mais de dez pessoas se abria e fechava, argumentos fundados e alguns que pareciam ser fruto da própria imaginação fértil daquelas mentes velhas e antiquadas. Wallace mantinha-se apenas calado controlando sua respiração.
A retirada temporária de Orion Baker do círculo fechado deu aos Anciãos, incluindo seu pai, um poder de erguer a voz e pensamentos. Cada um deles rebatia sobre a sequência das ações que deveriam tomar, mas nenhum confrontava a verdadeira realidade diante suas caras enrugadas.
Velhos gostam mesmo de discutir, pensou consigo. Por isso Orion odiava conversar com eles.
— Nós já doamos cerca de cinquenta milhões para a restruturação da Ordem, isso tirando os vinte milhões de taxa que teremos que pagar caso a Justiça Mágica ache necessário por causa da realocação da família Trindade. — Ancião Dest, seu pai, não deixava quase ninguém falar. — Nossa missão nesse mês foi concluída e extraímos cerca de quase uma tonelada daqueles minérios. Agora, está na hora de abrir as portas comerciais.
— Muito cedo — respondeu Rinngo um pouco menos esbravejador. — Qualquer ação no mercado agora irá atrair mais atenção para as duas famílias. Temos o Império Nevasca ainda nos abastecendo e as fazendas estão perto de serem atualizadas, mais uma semana e a jovem Lumiere…
— Aquela garota não faz parte da nossa família — gritou Dest.
— É melhor controlar essa sua língua, Ancião Dest.
As vozes se redirecionaram para o Mestre Cassiano. Ele sentava com sua espada apoiada em ambas as pernas. Até o momento estava calado.
— Lumiere trabalhada diretamente para o Mestre Baker. Ela é um trunfo que nós encontramos na área de Alquimia que nenhum outro de nós poderia replicar. As doenças pulmonares e pneumonia tiveram uma queda de quase 70% desde que os elixires produzidos por ela começaram a ser comercializados.
— Ela ainda não carrega o nosso nome. Case ela com qualquer um dos jovens e…
— Cale-se, moleque — advertiu mais forte Cassiano. — Desde quando sua língua se tornou cheia de veneno? Ouça o que está pedindo. Não somos mais os antigos Baker. Somos seres civilizados, se o Mestre Baker estivesse aqui e você levantasse a voz desse jeito, estaria morto. Guarde esses seus pensamentos de cinco décadas atrás para si, idiota.
Wallace não ligava para como seu pai era chamado em reuniões. Desde pequeno se acostumou a vê-los conversando entre xingamentos e ofensas. No começo, claro, achou que ouvir seu pai sendo chamado de ‘velho decrépito sem raciocínio lógico’ era meio constrangedor, mas aos poucos aquilo se tornou comum.
O melhor momento para se xingarem era aquele e também para colocarem as ideias em dia. Entretanto, era realmente diferente quando Orion estava presente. Eles não ousavam dizer tudo o que queriam e nem erguer a voz como queriam.
Vendo Sindromeu e seu filho sentados mais ao lado apenas assistindo, se questionou em como eles deveriam estar com tudo o que ocorreu. E quando outra reunião chegou ao fim, ele os seguiu até um dos corredores, mas parou na esquina.
— Eles não parecem com os Crons — Daves Trindade, o filho mais velho, disse. — São mais entusiasmados. E falam bastante.
— Os nobres costumam falar muito. Nossa função é filtrar e passar para o Mestre Baker o que realmente importa. E não se preocupa, nenhum deles fará nada sem a permissão dele.
Andaram para mais longe. Wallace não mais os escutava. Ficou de costas para a parede fria dos corredores da Primeira Casa. Olhou para cima, a esfera que brilhava no teto era feito de mana, uma magia passiva de Lumos.
— Está perdido?
Olhou para o lado e viu Tito. Carregava aquele arco de madeira bruto nas costas e as aljavas do lado esquerdo do ombro.
— Só pensando.
— Isso ai é meio raro. — Tito passou e deu um tapinha no peito dele. — Vamos andar, temos um lugar para ir.
Wallace o seguiu, porém, apenas no meio do caminho, descendo as escadas, que percebeu.
— Pra onde vamos mesmo?
Tito nem se virou.
— Tomar conta dele.
Os dois chegaram aos estábulos. Os cavalos negros que normalmente os Baker cavalgavam era cuidado por um velho senhor, que repassou as rédeas assim que se aproximaram. Tito subiu com facilidade, afagando seu animal na lateral. Wallace demorou um pouco porque a presilha da perna estava dobrada.
Tito girou para a cidade. Esperou Wallace montar e trotou lentamente. Passaram pela ponte de curta ponte de pedra e o arco que separavam a área da família Baker com o resto da família. Já na entrada, mais de dez grupos de Cavaleiros e Magos se reuniram, usavam roupas diferentes, de cores avermelhadas, azuis e até amarelo. O símbolo dos Capitães de Areia, raro até mesmo nos livros dos Cavaleiros Sagrados, estava presente. O sol amarelado com espinhos laranjas, um dos maiores grupos que existiu e se enfiou no Deserto Carmesim, sumindo entre tribos.
Outros mais recentes, os Espadachins da Névoa e as Facetas do Sul, aclamados por terem imensa habilidade com espadas e lanças.
— Quando essas pessoas chegaram? — perguntou Wallace.
— O primeiro chegou faz três dias. Mestre Cassiano pediu que se instalassem pela cidade até serem chamados, mas ninguém fez isso. — O arqueiro deu uma risada. — Eles acham que é um teste de comodidade.
Wallace sentiu um pouco de pena.
— Estão passando frio a toa.
— É um bom treino. Aqui no norte tem dias que são terríveis. Graças as Matrizes de aquecimento, muitas casas não sofrem com as noites. Aqui — virou a esquerda numa rua estreita.
Assim que fez a curva, Wallace sentiu uma manta passando por ele. No segundo seguinte, estava em um imenso pátio. O vento repartiu seu cabelo o obrigando a olhar para trás. Havia um imenso abismo atrás deles, e casas perfeitamente construídas, como as de Kofer, com telhados triangulares escuros. Algumas torres afastadas e escadarias ligando essas partes.
Até mais longe, depois daquele pátio havia algumas casas altas e outras torres. Porém, dava para ver as nuvens perto da base.
— Onde estamos, Tito? — Observou que ele continuava indo adiante, passando por um estreito caminho entre a casa e o abismo. — Tito, onde estamos?
— Já estamos chegando, se acalme.
Os cavalos não pareciam desacostumados. Wallace não conseguia ver o chão lá de cima, mas cada habitação construída tinha o mesmo padrão, algumas mais largas e outras abertas, como se fossem uma varanda. Viu algumas pessoas nessa, conversando e bebendo o que parecia ser chá, mas não os reconheceu seus rostos, mas as roupas, túnicas e armaduras pertenciam a Magos e Cavaleiros.
— Wallace, se apresse. — Tito já tinha se distanciado uns vinte metros e entrou em um segundo caminho.
Conduziu o cavalo até lá e virou-se. Só então ouviu os estalidos e tintilares. Havia um imenso círculo de pedra projetado. Muita gente sentava no limite, quase fora do círculo, assistindo o desenrolar de dentro.
Wallace se pegou mais atento aquelas pessoas a quem realmente fazia barulho. Essas pessoas não eram desconhecidas, viu rostos desses em Vila Velha, alguns dos Magos que o ajudou e Cavaleiros que entraram em combate sabendo dos riscos da morte.
Por estarem reunidos ali, finalmente focou no centro do pátio.
— Parte dos ataques rápidos tendem a ter uma falha crítica, a ilusão da conectividade. — Orion se situava um pouco mais longe dos dois no centro, porém, era o único de pé. — O que vocês enxergam durante uma luta deve ser a conectividade, nunca o sistema em si.
Era Cristina quem lutava. A jovem de treze anos escapava dos golpes de um Mago de Raio bem talentoso, mas que não conseguia acertá-la de jeito algum. Com passadas leves e rápidas, Cristina se aproximava e recuava, gingando o ombro da esquerda pra direita e abrindo espaços.
— Magos de Velocidade e Magos de Raio possuem brechas raras. Eles são confiantes na sua própria capacidade de acelerar e reduzir seu ritmo, por isso, quando encontram um oponente que reage mais rápido do que eles, perdem a conectividade. — Orion esperou mais um pouco e Cristina rotacionou por baixo do punho do jovem rapaz. Ela golpeou a costela dele e chutou a dobra do joelho, o lançando ao chão. — Aquele que descobrir a falha do seu inimigo primeiro tem a vantagem, mas novamente, não é o sistema da luta, mas a conectividade que irá lhes dar mais aberturas.
Quando o jovem caído ergueu o braço em derrota, Cristina parou de se mexer. Wallace esteve com ela em Vila Velha e viu sua capacidade. Conseguir utilizar duas magias ativas ao mesmo tempo e conhecer estilos de lutas variados.
Um pouco de nostalgia cresceu em seu peito. Lado a lado, Cristina e Orion pareciam exatamente iguais na infância. Entretanto, a garota tinha a capacidade de usar magia desde cedo, o que lhe dava uma pequena vantagem sobre Orion nesse quesito.
Assim que encerraram, os que sentavam ficaram de pé e escolheram seus pares para um breve treino. Tito desmontou do cavalo e o amarrou perto de um tronco pedregoso numa das paredes da casa. Wallace o imitou, esperando ao lado.
— O lugar é bonito, não é? — Tito olhava para as bandeiras vermelhas que caíam em algumas pilastras avulsas. — Orion pensou nisso assim que o volume de Magos quis sair de Vila Velha. Projetou sozinho em uma noite e começou a montar com magias ativas. Demorou só alguns dias para conseguir terminar tudo.
Wallace não acreditou.
— Dois dias? — Cada parede parecia ter sido manejada por mãos experientes. — Mesmo que seja possível porque é o Orion, qual a finalidade de ter algo assim tão longe do solo?
— Ele esteve pensando muito nas pessoas da cidade. Aqui será uma segunda casa para aqueles que perderam tudo, e está incompleta ainda. Cada dia que passa, ele inicia uma nova construção. Está vendo ali — Tito apontou para uma parte mais distante, onde um caminho de pedra esverdeada cruzava o ar e tocava outro pico montanhoso. — Será um amontoado de residências, e com os Magos treinando aqui, teremos mais defesa.
— E Keifor? Aquela é a nossa primeira cidade.
— Os planos sempre envolvem mudanças, Wallace. — Orion se aproximou. — Keifor está sendo bem cuidada por Mestre Cassiano. Teremos algumas mudanças, mas será uma cidade portuária como sempre. As pessoas de lá precisam continuar suas vidas.
Ainda olhando para a bandeira vermelha em alguns pilares, Wallace não deixou de suspirar.
— As coisas estão indo rápido demais.
— Sei disso. — Orion o confortou com um aperto de ombro. — A Ordem está sendo reformulada, e eles perderam muita gente. Assim como tenho que estar em muitos lugares ao mesmo tempo, quero que seja meu Comandante aqui em Sinali.
— Colocou o nome de Sinali?
— Em homenagem a Cidade do Céu, a primeira datada. — Orion deu uma risada fraca. — Me impressiona que fique mais chocado com o nome da cidade do que meu pedido pessoal.
Wallace apenas deu de ombros.
— Sempre sei quando vai me pedir para fazer alguma coisa. Essas pessoas vieram de Vila Velha, sei disso também. Mas, tem certeza que uma cidade no topo de uma montanha não vai chamar atenção?
— Resolvemos isso com Psev, a Escola de Ilusões. Procurei nos nossos registros e ocultei a presença e imagem de tudo que está aqui. E mesmo que eles vejam, subir até aqui é um caminho ainda mais difícil.
— Está usando as magias de espaço, Wallace — disse Tito. — É quase impossível chegarem até aqui sem que Orion queira.
— Ou que vocês queiram. — Do bolso de seu manto negro, Orion retirou dois braceletes avermelhados. — São parte da minha coleção pessoal de Sumonas. Estive projetando alguns nesse meio tempo. São ‘Chaves-Portal’, que possibilitam criar um pequeno caminho até a Pequena Casa, que está atrás de vocês. Dura cinco segundos e fecha com o corte de mana. Gostaram?
Wallace encaixou a sua no pulso e ela mudou de tamanho, ajustando ao seu porte. Era firme, mas não selava seu movimento.
— É bem confortável.
— É pra ser. Podem me ajudar com isso enquanto termino os acabamentos da cidade?
Mais uma vez, Wallace se impressionava pela criatividade e imprevisibilidade. Uma cidade sendo construída no topo de uma montanha, oculta do mundo inteiro. Realmente, Cristina teria que correr muito para alcançar o Mestre dos Baker.
E falando na garota, ela saiu do pátio de pedra e se aproximou. Vestia um traje de batalha bem leve e com um bordado semelhante a Orion, um dragão na lateral, descendo do ombro até o pulso.
— Mestre, está na hora do nosso treino.
— É mesmo? Já está tão tarde assim? — Orion a empurrou de leve e apontou para uma das bordas. — Pode ir na frente ou quer apostar corrida como da última vez? Você foi massacrada, lembra?
Cristina não levou como brincadeira e endureceu o rosto completamente.
— Dessa vez eu vou vencer. Preciso praticar um pouquinho mais.
— Certo. — Orion virou-se para Wallace e Tito. — Nos encontramos em Keifor daqui a dois dias. Tenho que conversar com Sindromeu e os novos instrutores que aceitaram meu pedido. Quero que estejam comigo.
Tito acenou e Wallace os assistiu. Cristina e Orion saíram correndo na direção do abismo, pisaram na borda e saltaram. Por um segundo, flutuaram e depois caíram. Antes de sair do lugar, Tito o segurou pelo braço.
— Espere.
Logo depois, viu Cristina disparando pelo céu. Orion a seguia pelas costas, com suas duas mãos atrás das costas e rindo. A leveza do seu rosto ali em Sinali era diferente quando atuava como líder em Keifor.
O peso de suas costas era diferente.
— Desde que nós voltamos de Vila Velha, tivemos que restruturar muitas coisas — explicou Tito ainda observando. Círculos azuis surgiram no ar e Cristina começou a atravessá-los gradualmente, elevando sua velocidade aos poucos. — Sinali foi criada com o propósito de treinar aqueles que realmente se esforçam para mudar um pouco desse mundo infernal. Aquela mulher mudou Orion de alguma maneira.
— Eu fui fraco. — A mão de Wallace se fechou fortemente. — Cristina me ajudou a derrotar aqueles Cavaleiros, mas eu sempre dependo de alguém. O Dragão também protegeu a gente. Era pra eu ter vencido aqueles desgraçados com facilidade.
Tito apenas o fitou.
— E o que te segurou?
Houve uma pausa.
— Tudo. — Ele esticou os dedos. — Tudo ainda me segura.
Wallace respirou fundo e saiu a passos curtos.
— Estou voltando para Keifor — anunciou ainda caminhando. — Tenho que ver como meu pai está.
— Estarei lá amanhã.