Passos Arcanos - Capítulo 254
— Pai. — Wallace abriu a porta lentamente. — Posso interromper?
O homem se entregava aos livros, antigos demais para que Wallace entendesse. Porém, em sua infância, a imagem se tornou comum. O cheiro da poeira e também as folhas velhas. Vê-lo sentado atrás de uma mesa com seu óculos redondo e um olhar vago lhe trouxe certa notalgia.
Um pouco da sua raiz ainda vivia forte.
— Algo de errado, meu garoto?
— Não. Apenas queria conversar.
Dest fechou o livro e o empurrou para o lado. Diferente de como se portava em reuniões ou encontros oficiais da família, sua postura era bem flexível quando a conversa era pessoal.
— Puxe uma cadeira.
Assim que sentou, olhou ao redor. As prateleiras e os armários eram idênticos as de quando viviam na Caldeiras. Poderia ter trocado a mobília, mas não seria a mesma coisa. Antes de Orion, ele quem ordenava as questões primárias de sobrevivência dos Baker. Deixar os vinte anos de lado seria humilhante.
Foram anos difíceis, pra todo mundo.
— Pode falar. Você nunca vem com alguma coisa simples. — Cruzou os dedos sobre a mesa. — Normalmente, seria sobre treinamento. Mestre Cassiano diz que você já alcançou o limiar do machado, então, deve ser sua força. Você nunca esteve muito satisfeito.
Se impressionou pela precisão do seu velho.
— Como sabe disso?
— Como eu não saberia? — Dest deu uma risada leve. — Sou seu pai. Mesmo que não veja, estou te observando. Quando escapuliu das Caldeiras, eu sabia onde estava e com quem estava. Um velho guerrilheiro ainda possuí contatos no continente.
— E por que nunca mandou uma carta?
Dest piscou duas vezes e respirou fundo, ainda mantendo um esboço leve de sorriso.
— Filho, quando os Baker foram chamados pra compor as lacuna das trincheiras, eu já sabia que nada naquela ilha iria te segurar. Mesmo se fosse eu, ou sua mãe, ninguém iria conseguir te manter com a gente. Sua decisão foi ir, então eu apenas concordei com ela.
— Eu vi muitas coisas lá, pai.
— Eu sei, e fez bem pra você. Eu soube do que aconteceu em Vila Velha também. — Ele distanciou as mãos da mesa e se recostou mais fundo na cadeira. — Quer saber o que eu acho que está passando na sua cabeça?
Wallace concordou em silêncio. A única luz que emanava na sala era uma fraca tocha na pilastra lateral. A sombra dos dois vagueava lentamente no chão.
— Que você se acha fraco. Está querendo uma resposta do porquê disso, mas não é de hoje que tem nisso agarrado nessas sua cabeça dura. — Dest riu. — Quando nós nos filiamos com pessoas mais inteligentes, nós ficamos fascinados em como elas pensam. Quando nós ficamos muito próximos de pessoas mais fortes, ficamos admirados de como elas chegaram lá. Acontece com todo mundo, meu garoto. — Apontou para o peito de Wallace. — Mas, você quer saber o porquê.
— Quero, muito. — Levou a mão abaixo do pescoço, esfregando. — A sensação que tenho é um aperto estranho, como se tudo o que eu fizesse… tudo que fiz até agora… — ele balançou a cabeça. — Não sei dizer.
— Eu sei. Sei bem, na verdade. Na sua idade, eu tinha alguns rivais muito fortes, sabia?
Dest olhou para os lados e depois tocou o braço da cadeira que sentava.
— Esse lugar foi um refugio por anos. Oliver Baker era o mais inteligente no Arcanismo Comum. Cassiano, aquele cara era um gênio com as armas. Rinngo tinha facilidade na diplomacia e Rasgun com aquelas teorias de Alquimia. Mas, tinha Suzanna e Mirian, as Gêmeas do Futuro, com magia de Luz e Trevas e Ferdinanda, uma das maiores mulheres que já vi realizar uma chacina na guerra. E o que esse eu tinha? — Ele deu de ombros. — Um pouco de cada, mas nunca fui forte demais, nem inteligente demais, nem criativo demais. Eu fui um homem esforçado, apenas isso.
Wallace colocou a mão no rosto e respirou fundo.
— Não era essa a resposta que você esperava. — Dest deu uma risada. — Nem sempre nós temos as respostas de imediato, filho. Mas, você tem uma pessoa muito importante do seu lado que pode te ajudar, só não cometa o mesmo erro do seu pai.
Os dedos se separaram e Wallace encarou o seu pai.
— Que foi?
— Ser orgulhoso demais. A nossa família tem um histórico de não se dar por vencido, somos os maiores teimosos que esse mundo já viu e duvido que vá existir outra. — E apontou mais uma vez. — E assim como seu pai, seu avô e os que vieram antes, podemos fazer qualquer coisa. Você tem 21 anos, se arrisque e aprenda algo que queira. Vá até o fim, filho.
A resposta ainda não era aquela. Ainda tinha pensamentos que tomavam conta das suas madrugadas. E passou aquela na muralha, olhando para cima, na direção das estrelas. O frio nem incomodava muito, mas encontrou Lumiere no meio do caminho para lá e ela o obrigou a colocar um casaco reforçado.
Ter conversado com seu pai depois de tanto tempo foi bem refrescante. Era um homem bom, cheio de desejos, mas uma personalidade muito forte quando os assuntos era os Baker. Wallace não se sentia parecido, tinha Tito e Orion, Kadu e Milena, até mesmo os Mestres dos Burgos.
Pensar na família se tornou um pouco distante.
— Não esperava te encontrar aqui.
Wallace notou a voz. Heivor caminhava sozinho com um casaco nos ombros, mas não usava nem botas e nem uma camisa. Naquela noite, só alguém da Tribo Mestiça para estar quase nu no Extremo Norte.
— Sem sono. Vim tomar um ar.
Heivor se aproximou da beirada e pulou por cima, sentando.
— Nem você acredita nisso. Está pensando em alguma coisa. É sempre assim.
— Sempre assim? — Wallace se interessou. — O que quer dizer?
— Bom, é como o povo de vocês fazem as coisas. Tem problemas, procuram uma solução na cabeça. Dependendo, ficam com isso por meses até fazerem algo a respeito. — Fez uma careta de desgosto. — Ai simplesmente tomam uma ideia e prim — estalou o dedo — começam a correr atrás. Tentei entender quando cheguei, mas vocês são difíceis demais.
Não era mentira, Wallace deu uma risada.
— Quando você tem problemas, o que faz?
— É meio óbvio. — Ergueu a mão: — Penso pouco. — E levantou a outra. — E faço muito. É o jeito que lido com tudo. Minha mente não pode me controlar, eu tenho que controlá-la.
— E quando não consegue?
— Simples, paro de pensar nela. — Deu uma risada. — Sua cara diz tudo. Não consegue entender. Vamos, tente me dizer o que está passando na sua cabeça e eu te digo o que faria.
Wallace coçou o pescoço, meio pensativo. Falar com ele não faria mal, afinal, Heivor era uma máquina de combate na visão de muitos.
— Eu quero melhorar como Cavaleiro. Mas, costumo me comparar muito com as outras pessoas. Tito, por exemplo, tem uma pontaria diferente. Nayomi é uma mestre na espada. Martin tem um futuro brilhante como Cavaleiro Mágico. E você sabe como lutar de diversas formas diferentes. E eu, bem… — ele puxou o machado do seu lado e segurou com as duas mãos. — Tenho um machado.
— Ah, então está procurando sua verdadeira essência. — Heivor concordou com uma expressão confiante. — Eu já devia saber. Desde pequeno, sua performance foi pra tentar alcançar alguém. Por isso, se perdeu. Não sabe qual caminho tomar.
Foi quase como ouvir Dest falar. Seu pai tinha bem razão.
— Praticamente.
— Wallace, você não tem só um machado. O machado faz parte, mas não é você. Olhe para os outros e olhe pra você. A diferença é clara pra mim. — Apontou como se fosse óbvio. — Você é dotado de um corpo incrível. Sua resistência é surreal. Nos treinos que fizemos, eu sempre chegava a uma conclusão. ‘Como vou vencê-lo numa luta assim?’. — Heivor deu uma risada. — Consegue aguentar mais de cinquenta socos por minuto, sem ondular, sem perder a paciência, sem ao menos pensar na derrota.
— É verdade, você enxerga as coisas de outra forma.
O Lobo olhou para cima.
— Pense nisso. Os últimos Cavaleiros com quem treinei não duraram nem mesmo um décimo de quando lutamos. Uma muralha, forte e firme. Uma montanha, impenetrável. Um escudo, a defesa absoluta.
Wallace também encarou as estrelas. Algumas pulsavam mais do que outras.
— Se quiser, posso te ajudar — disse Heivor. — Volte a treinar comigo e te ensino as técnicas do Urso.
— E o que é isso?
Heivor o encarou, inconformado.
— O Urso, a Besta Endeusada mais difícil de se matar. Não conhece? — Ele negou quase como se fosse um pecado. — Como seu povo não conhece as lendas mais bonitas? O Urso dominou as outras bestas por centenas de anos por ser a mais difícil de matar. Ele virou um alvo e conseguiu juntar as outras Bestas que se odiavam para ir atrás dele. E sabe o que aconteceu?
— Ele morreu.
— Morreu? — Heivor gargalhou no meio da noite. — Maluco. O Urso dominou os outros. Seu corpo era como ferro, suas mãos como diamantes. Ele agarrava e não soltava. Ele mordia e não largava. Sua pele se abria com as espadas, com as garras, com as magias, e ele gargalhava. O Urso é o mais forte.
— Heivor Lobo Javali, você não é o Urso.
A risada dele morreu.
— Óbvio que não sou o Urso. Deixa de idiotice. Olhe meu corpo, sou mais rápido e me adapto melhor. Mas se eu me ferir, preciso de um tempo.
— E como vai me ensinar se não é ele?
— Antes de vir para cá, encontrei com o Urso. Quando eu morrer, meu título e minhas técnicas serão passadas para quem me matou por meio disso. — Suas tatuagens circulares espalhadas no peito e no braço brilharam um pouco mais forte. No meio da noite, era fácil ver os símbolos. — São um método de não deixar que as lendas morram. O Urso me ensinou que não precisamos morrer para passar alguns conhecimentos para os outros. Então, ele me deu isso. — Puxando o casaco de cima do ombro, deixou a costela a vista.
Diferente dos outros círculos azulados, esse brilhava no sentido contrário e tinha a cor vermelha. Era mais complexo, com mais números e ligações entre símbolos.
— Ele me ensinou a aprimorar o físico. Sendo apenas Lobo e Javali, eu morreria fácil. Como era novo demais, isso foi a única coisa que consegui aprender. — Heivor tocou a tatuagem e uma imagem saiu de sua pele ao puxar, como se fosse uma irmã gêmea. — O ‘Tronco Impenetrável’ consegue absorver impactos mágicos e físicos. Se quer ser diferente, Baker, precisa pensar diferente.
A runa em suas mãos tocaram os olhos de Wallace de um jeito que nunca sentiu antes. Tinha algo ali, uma voz baixa, o chamando. Sem perceber, já tinha esticado o braço.
— Mas… — Heivor fechou a mão e a runa sumiu. — Terá que treinar comigo. É um acordo. Seu povo só trabalha com esses malditos acordos.
Acordado daquele estranho transe, Wallace concordou.
— Você me ensina e nós treinamos.
— Não, não. Nós treinamos e eu te ensino. É diferente.
— É a mesma coisa, idiota.
Heivor soltou uma risada.
— Claro que não é, idiota. Amanhã, nós começamos. Só temos que achar um lugar bom pra isso. — Seu olhar percorreu a cidade atrás dele, pouco iluminada e com poucos ruídos. — Tem tanta gente nova que fica difícil até de andar nas ruas pra comer.
Keifor recebeu uma remessa muito grande de Cavaleiros e Magos, era verdade. Chamaria muita atenção se fosse nos pátios ou se fosse nas Grandes Casas. Por sorte, o bracelete em seu pulso funcionava perfeitamente.
— Vamos para Sinali.
— Onde é isso?
Wallace riu e apontou pra cima.
— Um lugar bem alto.