Passos Arcanos - Capítulo 255
— O que eles estão fazendo?
— Não faço ideia. Aquele cara sem roupa está atacando com tudo o que tem e o outro nem se mexe.
Nayomi e Martin observavam de uma das torres abertas. Lá de cima, Sinali se transformava em um conjunto de edifícios unidos por nuvens. No entanto, nem mesmo a beleza de uma cidade no topo de uma montanha retirava a atenção de ambos para um dos pátios de pedra.
Heivor Lobo ia de um lado para o outro em pequenos saltos, e socava com imensa potência. O estalo gerava uma lacuna de ar de tão forte, mas Wallace nem mesmo se mexia. Seu braço direito livre ditava o bloqueio, e fazia uma careta ardente mais dolorida a cada golpe.
O treino, se podia ser chamado assim, era apenas isso. E se demonstrou por horas e mais horas. Heivor não descansava e Wallace arrastava-se para o suor escorrido de sua face para o queixo, pingando no braço ou nas pernas.
— Mantenha-se firme — gritou Heivor. — Falta pouco.
Aumentando a velocidade, os punhos e as palmas se tornaram como sombras. Heivor parecia como um fantasma aplicando ataques de todos os ângulos. E o Baker não se movia por nada.
— Eu nunca vi alguém ser tão resistente assim — disse Martin, sério. — Não são só ataques físicos. A pele do Heivor está cheia de mana. E a quantidade, estão mais de duas horas nisso.
— É incrível — elogiou Nayomi. — Achei que ele fosse só um machadeiro.
Tito estava da outra ponta, recostado numa pilastra observando. Só um machadeiro, o comentário de Nayomi deixou um gosto amargo em sua garganta. As trincheiras de Archaboom tinham um cheiro de morte e sangue, Cavaleiros se sacrificavam todos os dias para os Magos conseguirem recriar as barreiras contra o Clero. Os Comandantes e Tenentes desprezavam os fracos e aqueles que foram mortos de maneira ridícula. Wallace assumiu o comando de um dos piores buracos que existia, e ele era considerado apenas um mero Machadeiro?
A mente de um jovem que resistiu a tentação de fugir ou morrer para não sofrer mais naquele inferno aguentava meras duras horas numa trocação de um lado só. Tito tinha certeza que era opcional, Wallace buscava algum sentido nesse treinamento.
— Firme — o berro de Heivor manteve o silêncio afastado. O baque dos punhos contra o peito, o braço e perna aumentava mais e mais. — Mantenha aqui. Não vagueie.
Raízes pareciam ter nascido na sola dos seus pés. Mesmo naquela velocidade, ele não se mexia.
— Um erro e Heivor vai matá-lo — comentou Nayomi. — Qual o sentido dessa luta?
— Fique firme. — Uma das mãos de Heivor abaixou lentamente e mais três surgiram como imagens reflexivas. — Fique firme. Foque. Veja, escute.
Wallace ergueu o braço esquerdo pela primeira vez. Uma imensa aura adotou ao redor de si, uma presença tão esmagadora que silenciou o pátio e as torres em volta no mesmo instante. Tito sorriu, a sensação que sentia era familiar.
A boca do Baker se tornou uma linha reta e seus olhos não desgrudaram de Heivor. Wallace guiou-se a um sorriso depois.
— Agora.
Os seis punhos de Heivor apareceram na sua frente e ele prendeu a respiração. Sua mana circulou pelo peito, ombro, braços e pernas. O coração bombardeava sangue quase duas vezes mais rápido, e pelos socos que recebia, marcas eram deixadas em sua pele, modelando-se ao combate.
O rugido de Heivor veio de seu último ataque. Seu braço esquerdo inteiro se incendiou. E ele apareceu pela lateral, mirando a cabeça.
Seguraram a respiração, todos que assistiam.
Apenas a cabeça de Wallace se virou. A pressão aumentou mais ainda e o soco do Lobo nem mesmo chegou a tocá-lo. Uma barreira feita de energia bruta e densa bloqueou seu avanço. Tendo que recuar, ele parou e bufou.
— Finalmente. — Esticou os braços para si, relaxando os ombros. — Conseguiu. Duas horas, inacreditável. Eu demorei mais de duas semanas para aprender a liberar a ‘Aura Selvagem’ e você dominou duas artes de uma só vez. — Riu sozinho, limpando o nariz.
A aura era diferente de quando usava só mana para cobrir suas falhas. Sentia perfeitamente fechado, recluso, longe de qualquer envolvimento externo. Sua mente desmembrou-se dos pensamentos terceiros, e via com clareza cada aspecto da sua força.
— Eu me sinto bem — disse para si. — Me sinto…
— Forte — Heivor sorriu. — Usar os ‘Braços de Ashura’ aumentou sua capacidade para se proteger de seis oponentes ao mesmo tempo. A gente tinha que ter começado com isso. — E riu. — Depois da ‘Aura Selvagem’ tem mais uma técnica importante, se chama ‘Presa Indomável’.
Libertando o ar preso e acalmando a mente, a aura se deformou e desapareceu sozinha. Wallace andou até ele.
— E como é?
— Ficar agarrado no chão e não se mover vai te matar. Mesmo que aguente uma imensidão de ataques, ainda sofrerá danos. Agora iremos para a defesa alternada, que inclui destroçar o inimigo deixando que se aproxime de você. Vou te mostrar, olhe bem.
Bem lá em cima, oculto dos olhares desatentos, Orion flutuava sentado. Observava o pátio de pedra e se surpreendia com a capacidade de seu amigo. Nunca tinha notado sua resistência anormal contra ataques mágicos. Na verdade, Tito também tinha uma estranha capacidade de assimilação para aprendizados com magia.
Era uma pena que eles não pudessem usar as magias convencionais das Escolas Mágicas.
Bem atrás, voando entre os círculos azuis, Cristina inclinava-se aumentando a velocidade e subindo mais e mais. Depois de quase meio minuto para cima, deixou-se cair. De costas, encarava o céu azulado. Acima das nuvens cinzentas, tudo era claro e bonito.
— Acabei, mestre. — A voz dela chegou a sua mente. — O que faço agora?
— Demorou dois segundos a mais do que da última vez. Repita até conseguir a média de 20 segundos.
Cristina bufou e estabilizou-se no ar.
— Até quando vou continuar flutuando entre esses círculos?
Orion olhou para trás e a viu com uma cara entediada.
— Quantas vezes ganhou de mim desde que começamos com esse jogo? — A cara de Cristina mudou para uma irritada. — Ah, bem. Quando me vencer, nós conversamos sobre seu próximo treinamento. Mas, pode descansar um pouco.
A jovem se aproximou lentamente e sentou-se no ar, como ele.
— Parece ser divertido — disse ela. — A mana corre mais rápido quando eles estão lutando. Consegue sentir também, mestre?
— Consigo. Fico impressionado que já esteja vendo tão bem. — Orion a empurrou para o lado. — Se usasse sua cabeça para treinar, não precisaria ficar correndo pelo céu igual uma maluca. Você pode muito bem terminar isso antes dos vinte segundos.
Ela fez uma careta e depois desviou o olhar.
— Algo está te incomodando, Cristina. O que é?
— Não é nada demais. Bom, é alguma coisa sim. — Encarou lá pra baixo. — Quando eu voltei pra cá, ser treinada de novo pelo senhor, eu não esperava que tanta gente viesse. E todos são mais velhos do que eu. É só que… — parou, dando uma leve respirada. — Não sei explicar, mestre. E ainda tem a Joia.
— Não precisa se preocupar com ela, está bem? — Orion a puxou para perto e tocou o topo de sua cabeça. — Daqui pra frente, eu vou proteger vocês. Não vão precisar ir para longe. Prometo.
Ela não aceitou o pedido.
— Como vai proteger nós duas se ela já foi levada? Eu fui fraca, mestre. Não consegui fazer nada da última vez. — Um pouco de remorso e culpa se instalaram em seus olhos afugentando um punhado de lágrimas para fora. — Não consegui fazer nada.
— Você lutou, lutou mais do que qualquer um. E está enganada quanto ela estar longe. — Orion esperou que ela o olhasse e piscou, sorrindo. — Tem muitos eventos ocorrendo no continente que nossos olhos não podem ver, precisamos dos ouvidos. E para termos ouvidos, precisamos de contato.
Cristina enxugou o nariz melequento e se prontificou no ar.
— Ela… está bem?
— A minha cidade ainda é minha prioridade, mas creio que dois Velhos Reis podem muito bem dar trabalho se chegarem no lugar certo. Agora, vamos voltar a treinar?
Ela concordou fortemente e olhou para os círculos.
— Farei em quinze segundos, mestre. E depois disso quero aprender a voar igual a você.
— Ótimo. Vamos apostar uma corrida então.
I
Matilda Defoul sentava na cadeira. Seu irmão, o Imperador Nevasca, lia um documento com tanta concentração que comentava sozinho sobre algumas linhas, depois voltava mirando a ponta do dedo e balançando a cabeça, as vezes pra cima e as vezes para o lado.
Qualquer que fosse, tinha feito ele parar uma carta para os Anciãos das famílias nobres do Império Nevasca. Depois da Queda de Vila Velha, um feito que se alastrou pelos três reinos independentes, muitos dos tratados comerciais se encerraram e houveram até mesmo posições contra esses reinados que não pagavam nada para a Ordem dos Magos.
Nero tinha que ter um punho mais firme do que seu pai nesse momento. E Matilda sabia bem como seu falecido pai era um homem difícil quando ameaçavam sua posição e também seu prestígio. Ela mesmo estava ali para tentar convencê-lo de um acordo apenas verbal, porém, dez minutos inteiros era apenas de uma simples leitura.
— O que está te deixando tão apreensivo? — Ousou perguntar. — Veio de Maverick?
— Não, não. — Nero coçou o nariz, pegou o óculos da mesa e leu mais algumas vezes a mesma frase. — É um acordo e estou tentando decifrar se está tudo realmente certo, sem segundas intenções. Mas, foi escrita tão abertamente que eu estou preocupado.
— Nosso pai chamaria os Justiceiros para validarem.
— A Justiça Mágica teria informações muito valiosas se vissem isso aqui — balançou o pedaço de papel. — Nem Jinx ou Artrax poderiam ver. É uma situação diferente, que remete uma parte da nossa terra.
Um acordo territorial? Matilda odiou essa junção de palavras.
— Irmão, mesmo que o reino esteja caindo em pedaços, essas terras pertenceram a nossa família por gerações. Dá-las a alguém…
— Dar? — Nero a encarou, pela primeira vez desde que entrou. — Está maluca? Ninguém mencionou nada de dar terras. Um acordo territorial vai além de dinheiro, é questão de poder. O que estou segurando aqui vale mais do que cinco reinos, talvez até dez. Keifor é uma cidade que aumentou nossa renda em cerca de vinte milhões de ouro por semana. Por semana. — Nero inclinou-se para trás e deixou a carta cair em cima de um dos livros abertos. — A ideia é deixar que ela se torne uma cidade-estado. Ainda serviria a nossa causa sempre que possível, e se tornaria a primeira em construção de exército e molde acadêmico.
Matilda não demonstrou emoção. Estava velha e sábia demais para deixar seu irmão incomodado com sua opinião rápida. Esperou alguns segundos para processar tudo e concordou levianamente.
— E o que ganharíamos com uma cidade-estado dentro de um Império comandado por um Imperador? — deixou bem claro para Nero voltar a realidade. — Temos soldados, temos Nayomi, temos Magos…
— Minha filha quase foi levada por Feiticeiros por causa desses soldados. — O Imperador não tinha raiva, mas tristeza. — E eu soube que muitas cidades estão sendo atacadas por Coletores. Keifor atraiu os Magos e Cavaleiros que sofreram com essas perdas, eles viram uma chance de serem fortes e se reunirem por uma causa. E Keifor pertence ao Império Nevasca.
— Por isso mesmo. Você controla essas terras, logo controla quem está dentro dela.
— Acha mesmo que as coisas funcionam desse jeito? Ninguém é dono de ninguém, irmã. — Apontou para os livros nas prateleiras. — A história já disse isso uma vez, centenas de anos, quando as Fadas foram escravizadas. Nós não podemos cometer o mesmo erro, e Orion não cometeria esse erro. Ele conhece bem mais dos registros do que meus Anciãos juntos. Ele escreveu essa carta, linha por linha, para me fazer entender uma única coisa.
— Que seria?
— Que temos a oportunidade de sermos diferentes daqueles que vieram antes de nós.
Havia uma chama no olhar de Nero que Matilda percebeu por leve. Uma chama de ascensão, não de ambição. Estranhamente, se diferenciava muito dos olhos de seu pai, o antigo Imperador, que vivia dizendo sobre guerrear para ganhar terras.
Nero queria repartir uma pequena parte, uma pequena parte para uma família mais antiga e mais poderosa do que a dele. Matilda não queria apelar, mas fez antes mesmo de perceber.
— Nayomi ama esse garoto. — A chama sumiu velozmente de Nero. — Se quer que esse acordo seja feito sem problemas, faça acontecer.
— Espera, espera. — Ele se exaltou. — Não posso fazer isso. É injusto.
— É o meu único pedido. Se ele aceitar, então eu irei conversar com os Mestres. Precisa do apoio dos Generais para que não haja motim. — Matilda se pôs de pé. — Então, faça.