Passos Arcanos - Capítulo 256
— Eu entendo a posição da sua irmã, Nero. — Com o mesmo olhar vago de sempre, Orion respondeu com um suspiro. — Eu também amo sua sobrinha, mas um casamento arranjado logo agora atrairia muitos olhares para o que estamos construindo.
Nero não se opôs. A Grande Casa, chamada assim porque Orion dormia e tratava seus assuntos ali, era duas vezes maior do qualquer outra, perto do porto e também do território dos Trindade. A alocação era quase perfeita na visão de Nero, conseguindo unificar as partes da cidade de uma só vez.
— Creio que minha irmã tenha sido muito precipitada nesse caso.
— Conversaram com Nayomi sobre isso? Não gostaria que ela achasse que virou uma peça de tabuleiro por causa de um acordo territorial.
— Matilda tomou essa decisão para si — disse Nero. — Houve muitos casamentos que falharam e se tornaram uma tormenta na história. Não quero que aconteça nada parecido com o de vocês, mas estou bem contente que aceitou esse pedido com tanta facilidade.
— O senhor se casou e teve uma filha, Imperador. — Orion deu uma risada. — Sabe que não é nada fácil. Sua sobrinha é uma Mestre de Armas, tem uma reputação a zelar e um respeito pelo seu exército. Muitos podem achar que vai perder mais do que ganhar com o casamento e o acordo, ainda mais deixando claro que não poderá interferir no desenvolvimento da cidade.
— Já estive em contato com dois Justiceiros, eles revisaram tudo. Não quis que eles olhassem, mas são de minha confiança. — Colocar a Justiça Mágica no meio era atrair também Vila Velha para ali. — E os Nobres gostam de fofocar, deixe eles.
Orion tomou a concordar.
— Mudando de assunto — disse Orion. — Soube que estão anunciando a reconstrução das duas cidades portuárias que foram invadidas. Como está sendo?
— Ah, eu queria que fosse mais fácil falar do que fazer. — Nero acomodou o cotovelo no braço de sua poltrona. — Dentro de cada construção, tive que doar mais recursos da capital, o que deixou muita gente incomodada. Não quis aumentar a produção, mas os minérios são escassos.
Orion recostou a mão no queixo.
— Precisa de ajuda com dinheiro?
Nero negou com a mão.
— Precisamos apenas de tempo para ajustar os valores. Os vinte milhões que nos doam por semana já são bem mais do que podemos receber sem puxar a atenção do Banco Central.
— Ah. — Orion Baker fez uma pausa, olhou ao redor, pensativo, e voltou para fitá-lo. — O senhor já me ajudou com muita coisa desde que vim para cá, então tenho certeza que esse segredo posso revelar.
Mais um segredo? Esse rapaz não tem limite algum.
— Falando desse jeito, tenho até medo de ter algum ataque cardíaco. — Nero o fez rir. — Mesmo, não precisa doar seus recursos. Sua cidade ainda está evoluindo, existem muitos Cavaleiros e Magos chegando, e seu plano de criar uma Torre Mágica já vai gastar bastante. O Império Nevasca pode dar conta de reestruturar as duas cidades sozinho.
— A Torre Mágica já está pronta, Nero.
O Imperador foi pego de surpresa. Piscou algumas vezes, mas não precisou pedir uma explicação.
— Deve ter percebido que muitos Cavaleiros, Magos e Escolásticos vieram procurar os Baker depois de todos os problemas relacionados com Vila Velha. O ataque mostrou a fragilidade de um sistema mágico composto por Anciãos e Reis, não sou contra, mas é antiquado para a nova geração. E eu entendo perfeitamente os mais jovens. — Levou a mão ao peito e depois para a cabeça. — Nós pensamos diferente porque somos diferentes. Não vimos a guerra de perto, mas não queremos a guerra. Queremos paz. E por isso, Sinali foi criada.
O nome tinha um tom bem leve.
— E o que seria essa Sinali?
— Já que Carsseral precisava descansar por causa dos ferimentos, eu pensei numa estrutura que estava afastada de qualquer olho e surdo para qualquer ouvido. — A expressão do Baker mudou. Sempre que parecia ter descoberto ou criado único, via aquela feição. — Uma cidade em cima de outra cidade. Além do que pode se ver, acima de qualquer plano, eu criei Sinali.
Segurando um pouco o fôlego, pareceu não estar abismado.
— Uma cidade acima de Keifor?
— Lá, os Escolásticos possuem suas torres e papiros. Os Cavaleiros irão aprender com os veteranos, e os Magos serão testados sempre pelos Arche-Magos. Consegui trazer boa parte daqueles que viveram sobre pressão constante em Vila Velha para lá, mas estou negociando com os Nous do Deserto das Víboras e os Hughe.
Nero esticou o braço.
— Uma cidade em cima de outra cidade? Como faria isso?
— Ora, Imperador. — Orion abriu as mãos, como se fosse óbvio. — Magia, como sempre.
I
O som de passos ecoou por cima da neve. Mesmo estalidos e fagulhas elétricas no meio da floresta não puderam abafar a chegada daquele batalhão. Martin Crons deslizava entre os troncos, mirando e atirando suas magias com imensa precisão.
Kain usava um imenso manto azulado por cima dos ombros. Sua chegada no norte foi demorada. Esperou que o clima fosse menos complicado de se enfrentar, no entanto, sua barba e cabelo tomaram cristalizados ao longo do tempo marchando.
— Paremos aqui — anunciou aos vinte homens que o seguiam. Cada um deles possuí o manto grosso protegendo, mas suas faces sofriam. Névoa cinzenta escapava de suas bocas e alguns batiam os dentes. — Chegamos.
Martin passou cortando o espaço numa velocidade que olhos comuns não podiam acompanhar. Kain podia.
— Mestre Martin — elevou sua voz alta o suficiente para que o ambiente tomasse conta de sua presença. — Sou Kain Crons, lembra-se de mim?
Os estalidos morreram. Seus homens encararam a neve ao redor, o silêncio ganhou tanta vida que o som de suas respirações se tornaram tambores de guerra.
— Vim do Deserto das Víboras para vê-lo. Tenho uma mensagem de seus irmãos. É de extrema importância. Por favor, me escute.
— Meus irmãos?
A voz veio da direita e da esquerda. Ele aprendeu a se esconder mesmo com mana. Observar e achar pessoas virou uma missão de Kain, uma habilidade bem tomada pela família Crons. Não de um bom jeito, obviamente.
— O herdeiro do trono irá se casar com Mounise Hains Godoy.
— O Enrique irá se casar com aquela fedelha da família Godoy? — Olharam todos para cima. Martin sentava-se num dos galhos mais altos, com uma cara assustada. — Ele foi forçado? — Soltou uma risada e balançou a cabeça. — Eu sabia que o pai ia foder com o Enrique.
Ele estava ali esse tempo todo? Merda, como ele aprendeu a se ocultar dessa maneira?
— Sim, Martin. Tivemos muitos conflitos depois que Vila Velha foi atacada. A família Godoy apresentou essa proposta para fortificar os laços da família, e Enrique e seus outros cinco irmãos querem que você esteja presente no casamento.
— Ah, é só pra isso? — Ele se jogou para trás. Deu uma cambalhota no ar e caiu de pé. A roupa azulada ainda pertencia aos Crons, mas tinha uma estranha malha por baixo, vermelha e prateada que Kain não reconheceu. — Não pretendo voltar para o Deserto só por causa deles. Peço desculpas por virem tão longe, mas podem voltar. Tenho que continuar treinando.
Assim que deu de costas, Kain suspirou.
— Seu irmão disse que você faria isso, mas não há escolha aqui. Seu pai está decidido que todos seus filhos irão se casar, inclusive você.
Martin virou na hora.
— Não, não. Isso não. Eu, casando? Meu pai é louco. Eu assinei um termo para minha mãe anos atrás.
— Ele revogou esse acordo com a senhora sua mãe, Martin. Precisa voltar, pelo bem da família Crons. — É agora. — Ou pode fazer o favor que ele pediu.
Martin não se moveu.
— E qual seria?
— Seu pai alega que o acordo dos Baker com a Ordem dos Magos está inteiramente desequilibrado. A maior ameaça que temos hoje é de uma família que possuí terras, tesouro e influência nas famílias nobres que não sejam parte das famílias nobres.
Martin continuou olhando pra eles.
— E o que eu tenho a ver com isso?
— Existem… métodos, Martin. Queremos saber como os Baker estão trabalhando e como conseguiram se erguer. Se disser ao seu pai, o acordo ainda irá prevalecer.
— Vocês sabem o que acabaram de falar pra mim? — O rosto dele ainda era indiferente. — Os Baker me acolheram como um deles, sabiam? Sou um membro honorário de maior grau, estou em todas as reuniões, tomo conta de suas defesas, eu ajudo o Imperador Nero e o Rei Dragão. Querem que eu traia essa gente por causa de um acordo de casamento? Acham que sou tão burro assim?
Um dos homens se aproximou de Kain e sussurrou:
— Senhor, ele não é o mesmo. Temos que usar a outra tática.
— Certo. — Kain apontou para Martin e depois para a neve. — Moleque, seu pai mandou eu vir te buscar e não vou te dar outra oportunidade de vir sem ser a força. Esses homens são todos Grande Magos que se formaram recentemente e possuem poder para dizimar qualquer Mago de baixa classe que mora nessa cidade que chama de casa agora. Se não vier, nós vamos te prender e vamos fazer um caos lá. Quer isso mesmo?
Viu Martin virar a cabeça e soltar uma gargalhada. Ele colocou a mão no rosto, balançou a cabeça e permaneceu mais de dez segundos rindo.
— Ai, calma. — Arfou com a mão na barriga. — Essa foi boa. Desculpa. Eu nunca achei que iria ameaçar os Baker dentro do próprio território deles. E ainda mais a mim, Martin Crons, o próximo Rei Relâmpago. Isso foi incrível, a coragem dos Crons realmente correm na sua veia.
Houve um turbilhão. Kain não acompanhou. A mão de Martin surgiu diante seus olhos, uma garra perfuradora, prestes a arrancar sua vida. Mas não o fez.
Sua velocidade foi perturbadora. Os homens não reagiram a tempo, nem Kain teve tempo para se preparar. Foi muito mais rápido do que antes, quando ele se movia entre as árvores. E aquele curto momento que viu os dedos se aproximarem, não havia escapatória.
Martin recuou o braço e tocou a testa de Kain levemente, recuando dois passos.
— Viu? Eu poderia ter tirado sua vida em um único segundo. Grande Mago é um título bem merda quando se comparado a Rei Relâmpago. — Martin viu o rosto chocados e medrosos. — Da próxima vez, mandem meu irmão vir me buscar. Vai ser incrível lutar com ele agora. Espero que a vida da nobreza não tenha enfraquecido suas habilidades.
Teve que recuperar um pouco do ar para continuar.
— Ele não vai vir, e se você não for, vai ter um desastre.
— Desastres acontecem todos os dias. Mas, se ele vier querendo uma briga com os Baker, pode avisar que estarei do lado do Rei Dragão. E que venha pronto para morrer — liberou um sorriso macabro — porque Orion Baker e eu não entramos numa luta com misericórdia.
Kain voltou pelo mesmo caminho. Estava aflito. Aquele movimento de Martin lhe deixou bem ciente de que suas progressão tomou um rumo completamente diferente. Não só ele, mas seus homens também comentaram.
— Enrique disse que Martin Crons era bem lerdo comparado aos outros irmãos.
— Lerdo? Pelo blefe dele deu pra ver que a gente ia morrer em segundos. — Um dos guardas disse angustiado. — Se a família vier atrás de uma briga, vamos ter que mobilizar mais da metade das tropas.
— Os Baker não valem isso tudo.
— Valem. — Kain soltou ainda em frente. — Orion Baker detém três empresas mineradoras, dois contratos com o Banco Central, e duas novas formas de comércio marítimo por ervas, além de ter alguns boatos de que estão negociando com os Anões um minério raro que só é encontrado em algumas partes do continente. O saldo deles mensalmente pulou de cinquenta milhões para cem milhões, sendo a parte mais branda. Todas as famílias nobres estão com medo do que pode acontecer até o final desse ano, fomos superados em dinheiro e acabamos de ver que Martin evoluiu muito por causa dos Baker.
— Vila Velha não vai…
— Aquela cidade se afundou — interrompeu Kain, bem sério. — Os mais promissores Magos vieram para cá, em Keifor. E os Cavaleiros que foram mandados embora por não serem pagos também. A cidade se tornou um aglomerado bélico.
Eles assobiaram ao saber.
— Os Baker realmente tem um poder incrível agora.
Kain parou e olhou na direção da muralha cinzenta que protegia a cidade inteira.
— E duvido que eles sejam apenas isso.
Um rosto conhecido apareceu vindo do meio da floresta. Era Melkus Crons, um dos sentinelas que fazia reconhecimento em cidades. Ele retornou com uma face dura e olhos centrados.
— O que achou? — perguntou Kain.
— Enrique deve saber o mais rápido possível que não deve enfrentar os Baker. De maneira alguma, mesmo que a gente tenha que implorar.
Nunca tinham visto Melkus tão assustado e retraído.
— O que houve?
— A cidade inteira tem olhos e ouvidos, dá pra perceber quando se anda por lá. Os Cavaleiros e Magos estão vigorosos mesmo no frio e as pessoas andam como se fossem ricas mesmo não sendo. Até quem trabalha anda rindo. E pior, você não sente frio lá dentro.
Melkus esticou a mão, sua pele estava vermelha.
— Um sistema de aquecimento fino que nem dá pra se perceber direito. E tem terrenos grandes sendo usados para agricultura, maiores do que uma costa. E a tal família Trindade organizou eventos para os moradores ganharem ainda mais dinheiro. Eles não são normais. — Sua face se torceu mais ainda. — E tem outra coisa.
— O quê?
— Os Baker. Um deles passou por mim e me saudou, dizendo meu nome completo. — Melkus engoliu em seco. — Era Orion Baker, tenho certeza.
— Merda. — Kain olhou para a muralha novamente, dessa vez, ampliando seu sentido. Lá de cima, dava pra ver duas pessoas. Uma era Martin Crons, e o outro usava o manto vermelho com bordas douradas na manga. — Temos que voltar, agora.