Passos Arcanos - Capítulo 269
— A senhora está andando a cavalo faz muito tempo. — Ferlax tentava tomar as rédeas do cavalo para si, mas Faltan Mideroni puxou o animal para o lado, se afastando dele. — Senhora, por favor. Me dê as rédeas.
Faltan negou com a cabeça. Ferlax sempre queria acabar com sua graça. Tinha seus quinze anos praticamente feitos, podia muito bem caminhar pela estrada a cavalo sem problema algum. E também, com toda a escolta de cem homens em suas costas, um bandido ou assaltante cagaria de medo.
Dando um tapinha no pescoço do cavalo, o fez andar um pouquinho mais rápido. Ferlax teve que acompanhá-la a pé.
— Por que está tão afobado? — Faltan perguntou sem olhar para seu conselheiro. — Os Baker já disseram que limparam as estradas. E meu pai disse que ninguém iria chegar perto se você viesse.
Ferlax não se sentiu agraciado. Tentou mais uma vez se aproximar, mas Faltan recuou.
— A senhora não pode chegar com suas roupas amarrotadas para a reunião. O que os Anciãos vão pensar de nós? Temos que manter nossa vestimenta perfeitamente limpa. A neve também vai começar a cair em breve, peço que entre na carruagem.
— Quanta besteira. Por que nós deveríamos pensar no que vão falar da gente? Eles são os Baker. Estamos vindo porque meu pai recebeu uma proposta.
— Seu pai teria aceitado o pedido de entrar na carruagem – apelou Ferlax. — A noção de vestimenta, postura e conduta sempre foram as características principais dele.
Maldino Mideroni tinha o respeito de todos os seus Cavaleiros, Magos e a nobreza. Sua família prosperou no Deserto das Viboras por anos, mas ultimamente, desde que ele adoeceu e esteve acamado, os acordos e tratados que demoraram anos para serem aceitos começaram a ceder.
A família Mideroni tinha menos da metade do poder e influência. Se não fossem os Hadini, Silker e os Garudos tentando tomar o controle do Deserto de Ataan, ela não precisaria se arrastar quase três meses em um locomotiva ampla.
Pelo menos, chegando em Archaboom, Anneton dos Doze mencionou a possibilidade de conjurar um portal para mais perto da cidade, encurtando a viagem pela metade do tempo. Entraram com o sol batendo em suas costas e saíram com a neve tocando suas cabeças. O frio os pegou de surpresa, mas Faltan nunca tinha visto neve em sua vida. No Deserto das Viboras, era impossível nevar.
Ficou abismada, mas Ferlax a proibia de tudo. Pela manhã, precisava ler os documentos e decorar cada nome dos líderes e comandantes da Ordem dos Magos. Decifrar a história com alguns dos seus professores sobre os embates políticos que se misturaram durante o século, e ainda ter que conhecer cada troca de Arcanista dentro da Ordem. A história do Clero, seus principais membros, o Círculo de Lumos, e claro, Arcanismo Comum em sua mais pura essência.
Apenas um dia da semana, quando ela podia andar de cavalo, Ferlax a importunava.
— Meu pai me deixaria cavalgar mais tempo. Não me amole.
Ela permaneceu andando com um Cavaleiro e um Mago em cada lado, apenas trotando pela estrada limpa recentemente. Os pássaros piavam sobre sua cabeça, nos galhos secos do inverno que parecia improvável de acabar.
Mais tarde, quando começou a escurecer, a ordem de montar um acampamento foi dado pelo Arche-Mago Wilson Mideroni, um velho de cinquenta anos, que vestia o marrom na túnica e proteções nos ombros.
Com as carroças alocadas contra o vento nortenho, eles montaram as barracas e acenderam diversas fogueiras. Se sentaram para que os cozinheiros começassem o preparo da carne. Faltan ficou com Wilson, abraçando as próprias pernas.
— De noite sempre piora – disse o Arche-Mago. Tirou um cobertor e entregou a ela. — A senhora deve se agasalhar quando esfria assim.
Faltan aceitou e se cobriu completamente, suspirando em conforto.
— Todo mundo deveria ter um cobertor – falou abertamente. — Não trouxeram por que?
— A situação não era das melhores. — Viu Wilson lançar um olhar preocupado para a fogueira. — Temos conflitos com três famílias nobres, e os acordos estão se apagando pouco a pouco, senhora. Comprar coisas desnecessárias agora só iria nublar nossos pensamentos. Lembre-se do porquê estamos indo encontrar com os Baker.
Ela concordou como se tivesse dito milhares de vezes.
— Um acordo pelas Flores de Cacto que estão pedindo para alquimia. — Mesmo não sabendo para o que precisavam tanto dessa flor, Wilson tinha dito que não precisavam saber do motivo, apenas saber que poderiam vender por um preço adequado.
E os Baker tinham dinheiro de sobra. O rumor que Ferlax recebeu e repassou foi que eles conseguiam acumular mais recursos e moedas de ouro do que todas as famílias de VilaVelha juntas.
— Impossível ser verdade – disse Wilson depois de ser questionado novamente diante da fogueira. — VilaVelha tem propriedades que valem milhões. Conheço os Baker, lutei com Mestre Cassiano e os Anciãos Dest e Langur. Não são fáceis de lidar, sempre estão discutindo e brigando.
— E o Mestre Baker? — Faltan perguntou recebendo um petisco de carne. — Conheceu ele também?
— Não. — Wilson fez uma pausa. — Mas, eu soube dos feitos dele. O Jornal Continental deixou bem claro que a influência dele beira o ridículo. Talvez, a gente nem mesmo seja apresentado a ele. Grandes famílias também vão vir, outras Academias e bastante Cavaleiros e Magos das cidades livres. A chance de algum Ancião ou Comandante fazer o acordo da Flor de Cacto é grande, senhora. Melhor não criar expectativa.
Faltan não criava. Desde que tinha sido excluída das reuniões entre os nobres, no Deserto das Viboras, ela não esperava muito dos líderes de casas. Até o título de Senhora Mideroni a incomodava um pouco.
— Estamos aqui a pedido do Mestre Maldino – corrigiu Ferlax, chato como sempre. — Temos que ser cordiais até mesmo com os mensageiros. Gostando ou não, precisamos desse acordo.
Wilson não o respondeu. Ela esperou que o Arche-Mago falasse algo, mas ele apenas manteve-se quieto esperando seu prato de carne.
— As maiores dívidas que temos são feitas dentro das paredes de nossas casas – disse Ferlax. — A Senhora Mideroni deve conhecer os Anciãos também. Se eles vierem, que tenhamos um bom relacionamento.
— Por que?
A pergunta pegou Ferlax surpreso.
— Por que o que, minha senhora?
— Por que temos que ser bons com todo mundo? Ninguém é bom com a gente, nem mesmo quem a gente ajudou por anos. Meu pai é o próprio exemplo disso. Está na cama faz quase seis meses, e nenhum Mestre foi vê-lo.
Ferlax pigarreou e concordou com um pouco de compreensão.
— Pode ser que eles estejam ocupados, minha senhora. Existem muitos deveres que uma…
— Ah, me poupe. — Ela o cortou na hora com a mão. — Ninguém se importa muito se a gente vai viver ou comer daqui pra frente. Nem temos remédios suficientes para os doentes na nossa casa. Só não sofremos mais porque o clima lá não precisa tanto de roupas.
Houve silêncio no acampamento inteiro. Faltan respirou fundo e mastigou a carne com raiva, quase não sentindo o gosto. Desde que tinham partido, a mesma história era contada. Tratar as pessoas como se fossem sua própria família – nada adiantava.
Ser bondoso demais o fazia fraco.
Ao anoitecer, Faltan deitou-se na carruagem, sendo vigiada por três Magos. Adormeceu tranquilamente, até ouvir um baque surdo numa das paredes de madeira. Em seguida, um grito de fora:
— São Feiticeiros. — Era Wilson.
Faltan rapidamente se jogou para uma das paredes e olhou para o lado de fora. Uma chama azulada cresceu velozmente na direção de um dos Magos, e sua mão criou uma imensa runa. A parede de água que se formou protegeu o impacto repentino, mas não expeliu completamente.
As chamas subiram por cima da magia, indo diretamente para a direção da carruagem. Outro Mago apareceu pulando. A placa de pedra segurou a onda de fogo. Era Galnion, o Mago Antigo. Ele encarou Faltan, apressado.
— Saía pela outra porta e encontre Wilson. Eles estão em um número muito grande.
Faltan não tinha percebido o tamanho do problema até observar ao redor. Os Feiticeiros pulavam pelos galhos, encobertos por alguma maldição de transparência. Os golpes elementares vinham do vazio, sem projeção de runas.
Eram assassinos treinados para emboscadas, notou velozmente.
Faltan escorregou no banco da porta e a abriu. Wilson, sozinho, acenava de um lado para o outro, desviando de ataques furtivos de água, fogo, vento e raios. Ela o gritou duas vezes, mas o Arche-Mago não estava muito perto.
Outros Cavaleiros estavam sendo pressionados por criaturas bestiais com armas pesadas e armaduras. A desvantagem no meio da floresta era nítida.
— Wilson – gritou mais uma vez. — Por favor, Wilson.
Faltan tentou sair, mas um brilho azulado percorreu as árvores muito longe e uma explosão soou num timbre que vibrou o chão inteiro. Ela se segurou na porta, e quando tentou voltar para dentro, um braço a puxou para fora com força.
A cara azulada do homem, seus brincos e suas tatuagens na testa. A figura estranha não sorria, mesmo assim tinha o assombro de divertimento que conheceu em líderes lascivos e perigosos.
— A Senhora Mideroni vale muito para meu mestre.
Foi nas palavras dele que a mente de Faltan se apagou. Seus olhos enxergavam, seus ouvidos escutavam, mas estava molenga como polenta feita na hora. Ela foi pega no colo e carregava as pressas para dentro da floresta.
A velocidade que o Feiticeiro saltava era extremamente veloz. Via as árvores passando, as nuvens correndo para o outro lado do céu, e o vento frio açoitando sua bochecha. Tinha medo, não sabia para onde estava partindo.
Queria gritar ajuda, mas sua garganta não funcionava. Nem engolir a saliva conseguia.
— Temos o pacote – ouviu o Feiticeiro Azul falar com outros ao redor. — Podemos ir. Destruam o acampamento deles.
— Certo.
Ouviu alguém rir do seu lado.
— Eles não tiveram chance. Como foi que conseguiram atravessar o caminho inteiro até aqui sem que os outros a seguissem?
— Usaram algum tipo de teleporte. Sorte que temos um contato nas outras cidades do norte. Mais um dia e chegariam na maldita Keifor.
Keifor, a cidade onde o Mestre Baker vivia. Estava tão perto e tão longe. Agora, não tinha mais volta.
— Sabia que falar mal da minha cidade é um pouco desrespeitoso?
O Feiticeiro girou ao escutar, mas seu rosto foi acertado por um punho limpo. Faltan sentiu os braços dele se desgrudarem das suas costas e pernas, mas viu que mesmo depois do golpe, ele tentou tomá-la de volta.
— Ei, essa jovenzinha não pode ser carregada assim. — A voz era leve e forte. — Ela é a Senhora Mideroni, primeira e única filha do Maldino Mideroni. Tem uma imensa reputação a zelar. E vocês acharam que vindo atrás dela, dentro da minha propriedade, teriam alguma vantagem no escuro? Que irônico.
Os braços que a segurava agora não eram grosseiros. Do outro lado, o Feiticeiro se reuniu com mais vinte ao redor. Suas armas sacadas, maldições agitavam-se sobre as peles, nas tatuagens. Prontos para um combate fatal.
— Devolva a garota – o Feiticeiro berrou com força. — Ela tem um dever a cumprir.
— Está frio e eu não gosto que meus convidados fiquem sendo atormentados por gente azul. Eu queria poder matar vocês, mas recebi mais de dois mil parentes ontem, estou cansado. Eles podem estar um pouco bêbados, fizemos um grande banquete, mas ainda são Baker.
A cara do Feiticeiro mudou na hora. Toda a raiva que tinha foi substituída por um olhar pavoroso.
— Vocês são os Cães Imortais?
Paralisada, Faltan observou pessoas usando túnicas vermelhas passarem por elas com suas espadas embainhadas. Uma visão perturbadora. Os Feiticeiros recuaram o primeiro passo, depois o segundo. Quando tentaram dar as costas para fugir, travaram também. Lá atrás tinha mais cinquenta, talvez cem desses andarilhos vermelhos.
— Claro que somos Baker. — O homem que a segurava deu uma risada. — Vocês trouxeram cerca de duzentos Feiticeiros atrás dessa jovem. Então, eu pensei que poderia trazer uns quinhentos para terem um noção de onde estão.
Um dos homens de vermelho se virou e encarou Faltan, depois para cima.
— Mestre Baker, volte em segurança. Nós vamos terminar isso para o senhor.
— Perfeito. Até mais breve.
Ele deu um passo para trás e a estrutura ao redor mudou completamente. Via a neve e a escuridão por um portal, o mesmo que chegou a usar em VilaVelha. Dessa vez, estava dentro de um imenso salão cheio de esferas luminosas afastadas. Quando o portal se fechou, todos os sentidos de Faltan voltaram imediatamente.
Ela mexeu os braços, as pernas e deu um tranco. Os dois braços a seguraram para não cair, pondo-a de pé. Faltan Mideroni encarou o jovem que a tirou do Feiticeiro. Os olhos abertos, procurando por algum problema, e atrás dele alguns velhos homens, a espreita.
— Está tudo bem, Senhora? — perguntou quem seria o Mestre Baker. — Ele não te machucou, certo?
— Não. — Ela demorou para responder. A luminosidade ao redor estava bem forte. — Mas… Wilson e os outros. Eles estavam lá, foram pegos de surpresa.
— Não se preocupe, eu mandei os meus melhores Cavaleiros pra lá. Eles dão conta.
Um velho chegou mais perto e a olhou de lado. Faltan reconhecia aquele rosto de algum lugar, mesmo sendo tão velho.
— É mais parecida com o pai do que aparenta – o velho sorriu. — Não deve se lembrar muito de mim. Visitei seu pai faz quase dez anos, Senhora Mideroni. Me chamo Cassiano Baker. Fui eu quem mandei a carta solicitando que seu pai viesse, peço perdão por não saber que ele estava doente.
— Mestre Cassiano. — O homem que viveu por lá durante seis meses, estudando a antiga Arte da Espada Viborana. Costumava vê-lo caminhando com seu pai. Faltan não aguentou, seu peito se encheu de saudade. Pulou para abraçá-lo na hora. — Meu pai está muito doente. Não quero que ele se vá. Todo mundo está tentando tomar o lugar dele no Deserto. Me ajude.
Não queria dizer tudo aquilo, mas saiu. Wilson e Ferlax eram seus amigos, mas não eram tão próximos de seu pai. Nem mesmo os antigos Anciãos tiveram tanto comprometimento com a saúde do antigo Mestre Mideroni.
Se Mestre Cassiano não pudesse fazer nada, apenas aceitaria o destino.
— Está tudo bem. — A mão dele percorreu sua cabeça. — Seu pai é forte. Consegue aguentar até que o Mestre Baker e os Mestre Rasgun desenvolvam um elixir. E sua família também está bem. Os Comandantes do Batalhão Rubro estão lá fora agora.
A porta se abriu e o jovem mensageiro se mostrou, preciso.
— Todos os Feiticeiros foram capturados. A caravana da família Mideroni tiveram apenas 10 feridos, nenhum morto. Estão sendo trazidos imediatamente pelos pergaminhos de transferência, Mestre Baker.
— Aloque todos e trate os feridos. — Ele começou a fazer seu caminho com outros Anciãos. — Mestre Cassiano, leve o tempo que precisar.
— Sim, Mestre Baker.
Faltan observou o atual Mestre da família Baker partir já ordenando patrulhas em todos os pontos de controle que tinham. Antes de sair pela porta, mandou alguém trazer informações precisas de quem tinha comandado um movimento dentro de seu território.
Cassiano se afastou um pouco dela, mostrando um sorriso tranquilo.
— Ele vai cuidar de tudo. Agora que chegou, pode ficar tranquila. Ninguém vai te encostar.