Perseguidos Pelo Tempo - Capítulo 1
Se me lembro bem, foi há alguns anos. Eu estava na minha casa jogando com alguns amigos online e sem perceber já eram duas horas da madrugada.
“Merda, já ta tarde e eu nem jantei…”
Ok, morar sozinho é muito bom. Não preciso discutir com a minha família, posso comer a hora que eu quiser e o único problema são as contas. Mas para um universitário, dormir tarde deveria ser um luxo, ainda mais se eu estiver jogando ao invés de estudar.
Acho que eu ia à faculdade duas vezes por semana. Preferia ficar jogando online do que gastar minha energia com professores chatos falando sobre matérias que eu não fazia ideia de como entender.
Dinheiro não era um problema, trabalhava meio período em uma oficina mecânica e ganhava bastante dinheiro em campeonatos de jogos, então meio que extrapolei naquela noite. Era feriado e eu estava em uma dungeon muito importante para minha guilda. Mas se eu ficasse mais algumas horas sem comer nada, possivelmente iria desmaiar. Abri minha geladeira quase vazia e só tinha macarrão instantâneo. Achei melhor arranjar algo substancioso. Lanches e miojo vão me matar se continuar assim.
Peguei minha blusa e óculos e fui até a rua principal da cidade, mas é claro que tudo estava fechado. Cidade pequena não era o país das maravilhas, principalmente para coruja da noite que era, além de que tinha pegar um ônibus de duas horas para chegar na faculdade.
Até cogitei ir em uma casa noturna que estava aberta, só que convenhamos, iria gastar ali uma semana de mantimentos. Então, graças ao meu vício em jogos, voltei para os lanches e miojo. Fui até o mercado que ficava a alguns minutos de casa e comprei dois refrigerantes e um salgado. Mais saudável impossível, né? Peguei as compras e já estava para ir embora, mas o dono do mercado não tinha me cumprimentado.
Achei estranho, já que ele era um dos únicos da cidade que me conhecia, apesar de nunca sair de casa. Ele sempre me cumprimentava fazendo uma piadinha e mesmo sem nunca termos nos encontrado fora do mercado, ela era uma pessoa que eu poderia chamar de amigo.
Quando estava saindo, senti um arrepio estranho. O mercado tinha ficado gelado e soturno. Algo estava me incomodando então queria sair o mais rápido possível, mas não sem se despedir dele.
— Até mais tio, te vejo outro di…
— Boa sorte.
fiquei parado por um tempo, ele me cortou e isso em surpreendeu um pouco, mesmo com aquelas palavras estranhas, apenas se virou e continuou fazendo o trabalho com um sorriso de ponta a ponta. Balancei a cabeça e cheguei a conclusão que eu ou ele estávamos ficando birutas. Fome e cansaço realmente te fazem ficar louco.
Mesmo um pouco cabreiro, sem demora finalmente tinha chegado em casa. Meu porto seguro, onde poderia finalmente dormir ou entrar em mais uma dangeon com a guilda…
Fui pegar minhas chaves que estavam no bolso da blusa e as derrubei. Rolaram um pouco abaixo e quando fui pegá-las estavam perto de um senhor. O encarei por alguns minuto, pois sua aparência era um tanto estranha, abuso dizer que era igual uma classe de mortos vivos do RPG que jogava.
Ele estava usando um capuz preto e o colar em seu pescoço tinha me chamado atenção. Rubis e lápis-lazúli, duas pedras que apreciava muito. Pegando as chaves e já me levantando, sorriu: — Me desculpe, acabei derrubando minhas chaves.
Ignorando totalmente meu pedido de desculpas, exclamou: — Olha que achado! Você deve ser mais que o suficiente! — Ele abriu um sorriso de ponta a ponta no rosto, exatamente igual ao do tio do mercado.
— O que? O senhor está bem?
Ver novamente aquele sorriso me fez ficar alerta. Queria entrar dentro de casa o mais rápido possível, sentia que seria assaltado ou algo do tipo. Todos os meus instintos estavam me falando para correr o mais rápido possível e deveria eu tê-los ouvidos. Mas fiquei com tanto medo que derrubei minhas chaves novamente. E já era tarde demais. O senhor colocou suas mãos no colar e começou a falar palavras sinistras.
Seus olhos brilhavam como lâmpadas de natal. O colar emitia um som tão forte e agudo que os cachorros da vizinhança começaram a latir. Nuvens da noite tranquila se fecharam, o vento calmo se tornou uma ventania sem precedentes e o frio que fez até meus ossos tremerem. Quando finalmente percebi que tinha que fugir dali, tentei correr para longe, mas um círculo vermelho brilhante se materializou no chão. E quando tentei sair, meus pulsos e pernas ficaram presos por correntes que saiam do círculo.
A luz que emitia ficou tão forte e vermelha que me cegou. O som agudo não me deixava escutar minha própria voz. — Que merda foi essa? Que merda foi essa?! — Repetia aquelas palavras, mesmo sem escuta-las por completo.
Piscava sem parar meus olhos na esperança de recuperar a visão. Tentei me levantar, mas alguém me derrubou. Bati a cabeça na parede e senti algo quente em meus dedos. Quando finalmente minha visão se recuperou um pouco, percebi que estava e um beco escuro e frio. O homem que me derrubou olhou para trás e consegui ver um pouco de seus rosto, mas somente uma enorme cicatriz em seu olho esquerdo.
Tentei novamente me levantar e o peso das correntes em meus pulsos, agora cortadas, me puxou para baixo.
“Como essas drogas se prenderam em mim?”, pensei, agora em pé e com minha visão recuperada por completo. Procurei aquele velho maldito até onde minha visão chegava, mas sem sucesso por causa da escuridão. Até que escutei algo estranho, andei um pouco a frente e vi uma cena que quase me fez vomitar.
Uma linda garota de cabelos azuis, pele branca como a neve, bem vestida, olhos brancos brilhantes e um buraco em seu peito jorrando sangue. Ela se debatia no chão com a boca, braço e pernas amarrados. Quase paralisado, forcei meu corpo a ir ajudá-la.
— Meu Deus, o que eu faço?! Alguém me ajude! — gritava, mas ninguém apareceu.
Arranquei minha blusa e tentei parar o sangramento. Vi uma faca ensanguentada e cortei as cordas e essa foi a pior decisão da minha vida, qualquer um com pelo menos dois neurônios saberia que não se deve fazer isso.
— Por… favor… me… ajude — Ela tentava falar, só que o sangue já tinha entrado em seus pulmões.
— Eu vou te ajudar, socorro! Apenas aguente mais um pouco! Por favor!
Tentei ao máximo, a garota estava se sufocando. Queria correr para buscar ajuda, mas ela não me deixava ir, então em pouco minutos, ela morreu. Queria gritar, correr e chorar, mas me encostei na parede olhando para minhas mãos encharcadas de sangue. O cheiro forte se gravou na minha cabeça como ferro quente na pele.
Não conseguia acreditar naquilo, parecia um pesadelo que não acabava nunca, mas infelizmente era a coisa mais real do mundo e eu iria perceber isso da pior forma possível.
De repente, um homem surgiu das sombras, parecia um guarda, vestia uma armadura e empunhava uma grande lança que usou para me abater em segundos.
“Por que você apareceu só agora? Ela morreu por culpa sua. Se não tivesse demorado tanto essa garota podia estar viva”, não conseguia pensar em mais nada, só sentia raiva, uma raiva tão poderosa que podia mover montanhas, mas infelizmente era só um sentimento. Naquele momento tive um pesadelo que era meu castigo. Ver ela morrendo várias e várias vezes sem descanso, um pesadelo que teria por muito tempo.
Acordei bruscamente com um balde d’água em meu rosto. Um pouco tonto, novamente, meus membros estavam amarrados. A audição que tinha recuperado quase perdi novamente com gritos, xingamentos e insultos. Em volta da mim estava um grande publico. Pessoas bem vestidas e elegantes, com rostos de nojo que também ficaram marcados em meus pesadelos.
Exausto pela fome, cansaço e ainda a pancada que levei. Levantei meu rosto para o alto e por algum motivo, minha atenção se focou na enorme vidraça no teto.
Tão linda e colorida, deve ter custado uma fortuna. Só que o dono era mais imundo que estrume.
— Meu povo! Venho lhes trazer uma notícia trágica! A algumas horas, encontramos a filha de nosso general morta!
Um homem, gordo e com uma barba muito longa, exclamava perante um espelho.
— Sim eu sei, a tristeza é avassaladora, mas! Tem algo que posso fazer para tirar um pouco dessa dor dos ombros deste homem!
Ele apontou para um senhor forte e musculoso. Segurando uma mulher aos prantos nos braços.
— Graças ao maravilhoso serviço de nossos cavaleiros! Capturamos o culpado de tudo isso!
Um pouco atrasado, percebi que era eu de quem ele estava falando. Comecei a me arrastar para tentar explicar a situação. Só que dois guardas colocaram suas lanças em meu pescoço.
Os olhares de desprezo aumentaram com a minha tentativa de me defender. Como se eu fosse um verme imundo que deveria ser exterminado silenciosamente.
“Parem de me olhar assim, parem! Vocês não sabem o que aconteceu!”, exclamava mentalmente, mas em vão.
— Meus queridos súditos, o que vocês acham que esse homem merece? Ele deixou um buraco permanente na família de nosso general!
“Eu não fiz nada! Por que isso tá acontecendo comigo?!”
— Esse homem matou uma das pessoas mais queridas de todo esse reino!
“Eu tentei ajudá-la! Eu fiz tudo que podia!”
— Ele merece a morte!
— Matem-o! E jogue sua carne aos porcos!
— Se livrem dessa imundície!
“Não, não, não! Eu não sou o culpado aqui, por favor, me ajudem!”
— Pois eu não acho que este homem mereça a morte! Ele merece algo pior que a morte!
Não conseguia raciocinar, os gritos da multidão ensurdeciam meus ouvidos. Ficava me perguntando se deveria ter fugido, deixado ela morrer ou ter corrido o mais rápido que podia.
— Eu sentencio esse homem a ser escravizado. Receber todas as manhãs chicoteadas em suas costas e comer de três em três dias. No trabalho, quero que trabalhe na pedreira, se por acaso parar, os guardas devem matá-lo no mesmo instante. Qualquer um que sentir pena dele, terá o mesmo destino. — O rei deu a sentença e o público foi à loucura. Cada palavra doía em minha alma, agora sentiria um gostinho do inferno.
Tentava processar tudo, mas minha cabeça estava quebrada. As lágrimas escorriam sem esforço. Não tinha mais resistência, estava exausto. Fui levado para uma carruagem cheia de outros escravos. Me arrastei até o canto e chorei até pegar no sono. Então os malditos pesadelos vieram, um pior que o outro. Gritos, sangue, gargalhadas. Tudo ecoava em uma escuridão sem fim, medonha e arrepiante.
Algumas horas de viagem passaram e fui acordado aos gritos. Me levaram para dentro de uma masmorra junto com os outros. Um corredor escuro e sujo, cheio de fezes e sangue até uma cela separada.
— Seu pedaço de lixo! Teve muita sorte que nosso rei é benevolente!
Os guardas me lançaram para dentro e rolei alguns metros. Dentro da sala havia mais cinco “pessoas”, só que nem cheguei notar a presença.
”Então é isso? Onde diabos estou? Por que as pessoas aqui estão me tratando tão mal? Eu não fiz nada! Eu não mereço isso!”, tentava ligar os pontos, mas naquele momento era impossível, qualquer ser humano estaria quebrado.
— Mas olha que surpresa! Eu não sabia que jogavam humanos imundos junto a nós! Dizem ser superiores, mas quando somos jogados no lixo, todos somos iguais!
“An? Tem mais alguém aqu…?”
Quando olhei para trás, todos os meus instintos me disseram para fugir dali. Só que não tinha o que fazer. Percebi ali que não estava mais na minha cidade e todas as chances de uma seita ter me sequestrado foram ralo abaixo
Umas das entidades se aproximou. O brilho da tocha iluminou seu rosto. Era uma espécie de humano com rabos e orelhas. — Olha só, então você é o motivo da folga de hoje? — Seu sorriso brilhava na escuridão.
— M-mas que droga é você?!
— Isso não foi educado e convenhamos, você está bem mais acabado que eu.
Ele estica sua mão para me ajudar a levantar com esforço.
— Se parar de tremer igual um rato, irei te apresento ao pessoal aqui.
Estava receoso, mas me apresentei. — M-me chamo Kazuhiro.
— Kazuhiro, é? Um pouco diferente, talvez estrangeiro? Bom, sou Kitsu, espero que aproveite a estadia.
“Estrangeiro? Um pouco mais longe”
— Bom, vou te apresentar a esse pessoal aqui e o que eles fizeram. O grandão ali é o Hiroíto, ele é um ogro do fogo que odeia humanos, por isso aquela cara carrancuda. Se puder, fique longe dele. Soube que ele destruiu uma parte do mercado central então o rei o mandou para cá.
“Ogro de fogo…”
— Aquele ali que está recitando palavras sinistras é o Akuma. Ele diz ser um mago das sombras, mas talvez nunca saibamos, afinal sua magia foi tirada dele.
“Magia…?”
— Aquela que está dormindo e roncando como um cavalo doente é a Chieko. Você nunca meche com ela e nem fale com ela, na verdade, só a responda quando ela te perguntar alguma coisa. Não mencionou muita coisa, mas ela foi acusada de queimar um bosque de fadas que ajudam na proteção da capital e ela diz ser uma ex-fada.
— Porque ela queimaria um bosque de fadas?
— Primeira regra da prisão. Não pergunte o que ninguém fez aqui.
— Entendido…
Kitsu apontou para o outro lado da cela. — Aquele ali é o mais quieto. Disse poucas palavras desde que chegou aqui. Parece ser gente boa. Acho que ele é um elfo do vento por causa de seus cabelos brancos e olhos cinzas, mas não é cem por cento de certeza. E também não sei o que ele fez para estar aqui e muito menos o seu nome.
“Acho que devo manter distância dele. Ta me dando arrepios.”
— Por fim, eu, que sou um semi-humano raposa que roubou 100 moedas de ouro de uma nobre que estava passeando no mercado. O que não sabia era que a irmã do rei estaria por ali. E aqui estou, fui sentenciado a ficar aqui alguns anos, mas não pretendo ficar muito tempo.
Não sabia o que falar. Era muita informação para processar em tão pouco tempo.
— Porque tem poucos presos nesta cela? Quando vim pra cá vi presos aos montes nas outras.
— Nas outras celas estão presos que cometeram crimes pequenos, crimes que duram de seis meses a cinco anos.
— Então estou entre os mais perigosos do reino? Não poderia ser pior.
— Não se preocupe, sempre dá pra piorar. Alias, sei que vou quebrar a primeira regra, mas o que foi de tão grave que você fez para estar aqui?
— A história não é muito longa.
Contei em detalhes minha história para Kitsu. Censurando as parte que me desagradaram, mas deu para ver claramente o que aconteceu. Revelo sem pensar duas vezes sobre eu provavelmente ser de outro mundo. Não achei que seria ruim falar, mas pensando um pouco poderia ter problemas no futuro. Então só revelei o básico para Kitsu.
O rapaz raposo me contou em detalhes sobre esse mundo. Atualmente estou no reino de Mists. O reino conhecido pelo seu rei ganancioso, estupido e que odeia semi-humanos e monstros acima de tudo.
“Bom, a história desse mundo é igual a qualquer RPG de fantasia. Que belo dia pra ser acusado de um crime”
— Sangue, uma adaga e correntes nos pulsos. Não é difícil de imaginar que você é um assassino.
— É, minha sorte não é incrível?
— Invejável.
Algumas horas se passaram e a gente discutiu sobre o senhor que tinha me mandado para outro mundo. Chegamos a conclusão que ele era um caçador de almas. Caçadores de almas viajam entre dimensões à procura de almas únicas. Almas podem ser usadas para feitiços poderosos e até ressurreição dos mortos. O poder de uma alma única é avassalador
Depois de tudo isso, o dia voo, o brilho da pequena fenda cheia de grades ia sumindo pouco a pouco. Enquanto ainda pensamentos me questionam do porque de estar ali.