Purificação - Capítulo 1
Capítulo 1 – Charlie:
O café ainda estava quente quando entraram no carro. No rádio, a estação tocava Country Roads e os donuts do fim da tarde ainda estavam frescos, macios e cheirosos. Charlie acomodou-se e endireitou o cabelo castanho e ensebado para o lado, usando o retrovisor como espelho. Antes que pudesse tomar o expresso, Jacob entrou pelo banco de passageiro.
– Tô te devendo essa.
A pele negra do amigo estava oleosa, assim como a pele clara de Charlie. A temperatura estava amena hoje mas…
– Aquela velha não tem mais o que fazer, não? – a voz soava rabugenta. – a maldita gata não precisa de ajuda pra descer do terraço, e é a segunda vez que fica presa no departamento…
– Ah, não fala assim da Elizabeth. – Jacob disse, descontraído. – você sabe, né? Ela é uma boa secretária, o marido vive esquecendo de dar comida, então ela vem pra cá, é uma boa mascote, mas você fica concentrado naquele maldito jornal o tempo todo, sentirei saudades da Sweet Gloria.
– Sweet Gloria, pff, aquele bicho parece mais um botijão de gás. Que seja, desde que não fique miando no departamento… – Charlie não gostava de gatos, ainda mais o da senhora Elizabeth, mas resolveu mudar de assunto, enquanto sentia o açúcar explodindo em sua boca, a voz cheia: – E aí, tá bom o café?
– Excelente – disse Jacob, de boca cheia, limpando os farelos do doce da boca com a ajuda de um guardanapo. – Mas, quem sou eu pra discutir com a Molly?
Ele tinha razão. O Rose`s Coffe era o mais renomado e antigo café da cidade, e os pratos não eram menos saborosos. Charlie e Jacob não eram nem um pouco gordos mas se continuassem assim não demorariam em ter uma pança digna do xerife. Aquilo divertiu Charlie que, quando acabou o lanche, engatou a primeira marcha e desligou o rádio.
– Desculpe, Jacob, mas essa música é uma porcaria…
– O quê? Tudo tá uma porcaria pra você hoje em dia, em? Vamos lá, Charlie: To the place, I belooong, west Virginia!
Charlie manobrava de ré para a saída da delegacia:
– Tá legal, já deu pra saber que você canta bem. – endireitou o carro na avenida Louis II, até que era divertido ter a companhia de alguém com senso de humor. Por fim, Charlie perguntou: – E as coisas, como vão?
– Bem, até – a ronda deles consistia em basicamente seis quadras, duas voltas pela Dawn District, fechando o percurso na prefeitura depois da escola e do hospital, tudo isso em trinta minutos, ou seja, tinham tempo. Jacob continuou: – eu e a Anne vamos pra Califórnia no fim do ano, sabe como é, curtir uma praia, aqui só tem o lago.
Ali só tinha em muitas coisas. Charlie lembrava–se da primeira vez que se alistou para o departamento de polícia, seis anos atrás, e o mais próximo de um trabalho policial que teve foi quando pegou um menor infrator que transportava maconha consigo, de resto, aquilo era tudo que ele nunca havia sonhado.
Não que reclamasse, ele descobriu cedo demais que reclamar não adiantava em muita coisa. Com o tempo acabou gostando da cidade, e passou a se apegar a vida tranquila do interior. Por fim, respondeu:
– Pretendo ficar aqui no verão, curtir o lago mesmo.
– Ah, claro. Escuta, vai ter um evento da igreja semana que vem, o pastor Michael vai estar lá. Vou me voluntariar pra ajudar o pessoal da rua, topa irmos mais uma vez?
– Por que não? – Charlie tinha uma relação conturbada com deus, mas nunca objetou em fazer o bem, a igreja ajudava muita gente, e ele gostava de se sentir útil e solidário. – a Anne vai também?
– Ah, sim. Ela vai ficar com os preparativos, sabe como é, as coisas estão indo bem para os Smith…
Viraram na rua principal a caminho da prefeitura, todas as lojinhas e estabelecimentos estavam tranquilos, com os mesmos moradores de sempre. O hospital estava tranquilo, bem como a escola, com seu largo escampado e que trazia uma sensação de nostalgia para Charlie, vontade de voltar a dar aulas, talvez no próximo verão.
A ronda seguiu com a volta em alguns quarteirões até retornarem à rua principal novamente, do outro lado do quarteirão dessa vez.
Contornaram a avenida depois de algum tempo e aproveitaram o para parar um pouco antes do fim da ronda, já que Jacob precisava comprar alguns remédios. Viram um largo prédio com a estátua de Edward Phillips Dancan – fundador da cidade – próximo à entrada. Ao lado, a bandeira do município, do estado e do país, adjacentes umas às outras.
– E as coisas com a Rebeca, tão indo bem? As –
– Jacob, já falei sobre isso…
– Escuta, cara, eu entendo muito pouco de mulher, mas sei como os camaradas se sentem. Ela não é a única…
– Olha, as coisas estão bem, Jacob. Tô com um apartamento bacana, pesco de vez em quando, vejo um jornal, leio uns livros, mas a Rebeca está com a vida dela agora, e eu com a minha…
– Cara, eu sei que não deve ter sido fácil, mesmo que tivesse me pegado de surpresa na época, mas o divórcio não pode fazê–lo deixar de ver sua filha. A Anne comentou comigo, a Rebeca e a Sophia estão praticamente isoladas.
– Eu visito elas, de vez em quando.
– Ah, é? E qual foi a última vez?
Quatro meses atrás. Mas o que disse foi:
– O que uma coisa tem a ver com a outra?
Já estavam próximo do final da ronda. Jacob insistiu:
– Eu te conheço, cara, vai fazer dois anos e você insiste em ficar solteiro, mas não vai na casa da ex–mulher. É hora de seguir em frente, Charlie, mas não pode pensar que sua filha é sua ex-esposa Ela é apenas uma criança, e o que ela precisa é de um pai, aviso de amigo e de homem.
Ela não é a minha filha, seu imbecil. Se você fosse inteligente o suficiente também teria feito o divórcio, no meu lugar. Mas ele era o único que sabia, não contava a ninguém, e da última vez que tentou comentar sobre com a Rebeca, ela negou, mesmo com as provas que tinha. Charlie ligou o rádio, nada demais, mas a música não acalmou seus nervos.:
– Talvez eu passe lá na quinta–feira. As coisas estão bem corridas ultimamente, muita papelada vinda de fora da cidade, a reforma no departamento, e o xerife não é menos carrancudo.
– Nem me fale, as coisas na igreja não estão melhores. Essa cidade é pequena demais, ainda assim, quantas igrejas. Ficou sabendo que o New Life Church vai reinaugurar por uma nova organização religiosa, a Saint Marry Wood?
– Caralho, quem é Marry Wood?
– Não é? Pesquisei na Sociedade Cristã Americana e não achei nada sobre, nem mesmo artigos ou citações, talvez eu tenha que visitar pessoalmente o lugar.
– Te desejo sorte. Bora tomar uma depois?
– Foi mal, não vai dar, Charlie. Mas aí, já é um começo, por quê não janta com a gente essa noite?
– Bom, não tenho nenhum compromisso. Tá faltando alguma coisa e que eu possa levar?
– Bom, apenas queijo e legumes.
– Tá, dou uma passada no mercado.
Quando a conversa terminou, já estavam de volta no departamento. O prédio era modesto, dois andares, mas pouquíssimos funcionários de manutenção e policiais. Os escritórios não estavam nas melhores condições, e a única reforma era na ala leste, preparando o pessoal do Departamento de Investigação.
Jacob e Charlie saíram do carro, após estacionarem em frente ao prédio, e se dirigiram ao interior. Os tijolos amarelos que compunham a faixada do prédio já estavam enegrecidos, e boa parte do gramado já estava abandonado e sujo de lama, cada passo devia ser calculado, e aos forasteiros uma simples caminhada até a delegacia, principalmente em dias de chuva, poderia ser o gatilho para uma queda feia. O corredor principal levava à mesa da secretária Elizabeth, que cumprimentou-os gentilmente ao passarem pela bancada onde se encontrava.
O xerife encontrava-se em seu escritório, a barriga protuberante e ambos os braços robustos, bem como as pernas, só não era mais gordo pela sua altura, e o sujeito era alto. Quando Charlie foi pegar o café o xerife o cumprimentou e a seu amigo com um grunhido carrancudo, o chapéu sempre meio torto.
– Policial Charlie. Policial Jacob. Temos um problema…
– O que foi, xerife? – Charlie perguntou. – É o gato de novo?
Era para ser uma piada, mas o xerife não gostou nem um pouco.
– Não, não é o gato. Venham até aqui, a Susy, o Julian e a Vanessa vieram aqui há pouco, fizeram um depoimento e registraram uma ocorrência, os meninos não apareceram em casa na noite de ontem e sem sinal deles até agora.
– Não devem ter ido longe, – Charlie disse. – talvez acabaram indo pra algum lugar abandonado, já viu no ferro velho? Aquele lugar é um parque de diversão pra crianças.
– Perguntei ao velho Mike mas ele não deu sinal das criaturinhas. Disseram que eles iam pro lago, já mandei um pequeno contingente para fazer uma busca lá, também notifiquei a escola e a biblioteca municipal, bem como o departamento das cidades vizinhas. Talvez tenham que ficar com o turno da noite, temos voluntários na busca, mas precisamos de gente treinada envolvida.
– Sem problema, senhor. Assim que o turno acabar dou uma passada em casa, tomo um banho, troco de roupa e como alguma coisa na vinda.
Toda desculpa pra trabalhar é válida, quando se está no trabalho, você pode fazer o que faz de melhor, se esconder dos olhos fofoqueiros. Era irônico pensar que ele usava uma farda que tinha como símbolo principal a justiça, enfrentar perigos e conter o crime, quando na verdade agia como um verdadeiro criminoso em sua vida pessoal. Após Jacob concordar e dizer qualquer coisa, Charlie continuou:
– Já tem algum relatório de buscas? Senhor, por que não avisou pelo rádio?
– Muito estardalhaço, as crianças vão aparecer alguma hora. Mas o pessoal daqui… – o escárnio em sua voz era palpável. – vão começar a assimilar mentiras e rumores sem embasamento ao caso, isso só vai atrapalhar.
Charlie estava ciente dos rumores, mas não disse nada, eu também tenho os meus, afinal, puta que pariu, cidades pequenas são uma merda.
…
Já era tarde, quase às dez. Charlie chegou no prédio do apartamento modesto e cumprimentou os vizinhos enquanto subia o breve lance de escadas. Retirou a chave do bolso e abriu a porta, limpando os sapatos no tapete de entrada.
Dentro, uma sala diminuta, mas confortável, a cozinha adjacente e charmosa. Dois quartos e um banheiro, o que mais ele poderia querer? Ligou a luz, colocou no noticiário e foi tomar um banho. Ao passar pela estante da sala, Charlie parou por um momento, olhando o retrato de família em meio aos troféus e livros.
Na fotografia, a até então esposa, Rebeca, uma linda e alta mulher, olhos castanhos e de cabelos morenos e sorriso meigo. Ao lado, Charlie, ainda com o físico de quando jogava beisebol e dava ¨aula pra molecada¨, feliz como só um pai de primeira viagem poderia estar. No colo, Sophia, o rosto meigo, uma mexa de cabelos loiros e os olhos… os malditos olhos azuis…
Se perguntava se Rebeca brincava com seus sentimentos desde aquela época, quando se conheceram, mas aquilo era passado, e apesar do filho da puta do verdadeiro pai estar longe, era ele quem devia cumprir esse papel. Se ao menos ela reconhecesse o erro, mas a cada dia, sentia mais repulsa pelo olhar que a filha o dava, e Charlie tirou as forças de deus sabe onde para permanecer ali, cumprindo seu papel.
O banho quente e o trocar de roupa sucederam-se de modo mecânico, o transe da rotina monótona não o fez ao menos dar por perceber-se de volta no carro, perfumado, com a lanterna e o revólver, e ainda, um lanche que a ex-esposa fazia para ele e que era tão prático que adotou na sua vida de solteiro.
Ao chegar no departamento, Charlie cumprimentou Jacob e os demais colegas de trabalho. A noite de buscas seria cansativa, mas ultimamente, até mesmo na cama ele sentia-se cansado.