Purificação - Capítulo 10
Capítulo 10 – Carne:
Após tomarem uma distância segura da casa, mantendo o perfil discreto, Charlie começou o diálogo (apesar de ambos parecerem tensos):
— E então, consegui algumas coisas. E você?
— Nossa, também. Mas começa primeiro…
— Basicamente o velho me levou pra dar uma olhada nos estábulos, galinheiro, latrina, etc. Então a gente foi pro celeiro e quando eu chego lá tem a porra de um círculo do que parecia ser sal e no meio um banquinho com a foto da Lúcia. Perguntei ao senhor Robbinson o por quê da foto e daquilo e ele me disse que tratava-se de uma purificação, e mandou que a New Life Church sempre foi originalmente a igreja Mary Wood.
Sarah parecia intrigada:
— E você sabia disso?
— Então, tô aqui na cidade há uns bons quinze anos e nunca tinha ouvido falar, nem mesmo pelos meus pais e tios… como se não bastasse, o lugar tava fedendo a vinagre, e quando estávamos próximos da casa de novo, eu fui dar uma olhada no porão e ele hesitou, aí eu entro lá e de novo o cheiro de vinagre. Quando eu estava saindo, a Lessie chega e me traz isso…
Charlie mostrou discretamente a bola de beisebol que Lessie carregava. Sarah não entendeu:
— E o que tem de interessante nessa bola?
— Acontece que nas férias eu costumo dar aula de beisebol, e dá uma olhada aqui, tá vendo? É minha assinatura e a mensagem do fim de curso, e eu lembro de ter dado essa bola pro Lucas.
Ela pareceu mais surpresa do que o normal:
— Caralho… porra… será que foram eles mesmo? Espera só até você ouvir o que tenho a dizer…
Após algum tempo resumindo os acontecimentos no interior da casa, Charlie retomou, mais intrigado ainda:
— Chega, já tá na hora de chamar ajuda, eu vou ligar pro Jacob.
— Não é melhor alertar pelo rádio?
— Eu pensei em fazer isso, mas o xerife ainda pode estar envolvido e seria muito ruim chamar a atenção deles assim, se elas estiverem por aqui, a gente precisa ganhar mais informações e alarmar a delegacia sem necessidade vai deixar a gente longe das crianças. Escuta, essa tal de purificação, a gente não precisa ficar se você não quiser, Sarah, pode ajudar saindo daqui e servindo de testemunha caso algo dê errado. Eles podem se mostrar hostis a qualquer momento, e ainda falaram que tem visita pra chegar, já devem estar suspeitando da gente…
— Não, tá tudo bem, só liga pro Jacob e avisa sobre a gente. Eu sei me virar, a gente precisa de mais informação e é melhor do que contar com o xerife ou o pastor de gado.
Charlie passou algum tempo ligando. Do outro lado, o amigo respondeu:
— Alô, Charlie?
— Fala aí, parceiro, estamos na residência Robbinson e já temos forte suspeita deles, você tá aonde?
— Tô na delegacia, mas por que tu não chama mais pessoal daqui?
Charlie resumiu porcamente a história, até por que não tinham muito tempo, mas foi o suficiente para o Jacob entender:
— Saquei, então se der merda eu ativo um chamado daqui com outra premissa. E o galpão abandonado, também?
— Sim, por precaução, vou te passar o número do Jimmy, anota aí e avisa pra ele se acontecer alguma coisa.
— Cara, os Robbinson são meio sinistros, e eu nunca vi nem parente deles, tem certeza que não quer que eu envie uma viatura?
— Não, pelo menos não agora, tem um pessoal que tá pra chegar e podem servir de alguma coisa boa ou ruim, mas faz tudo que eu pedi, a gente tá num buraco maior agora.
— Beleza, valeu.
Quando Charlie desligou o telefone, voltou-se para a Sarah:
— Tu tá com o gravador? Bom, escuta, mantenha o perfil baixo, caso aconteça alguma coisa, pega a chave e vai pro carro, e na pior das hipóteses, tem um pequeno bosque a sul daqui, corre pra lá através do milharal.
Tinham tomado todas as precauções, mas o medo persistia com eles, as estrelas no céu como olhos antigos que observavam-nos, tão lógicos, ainda, tão impotentes. O que uma família do interior poderia ter de assustador? Charlie sabia o que era um bandido de verdade e… porra, tinha um .38 não mão… Sarah já cobriu outras instituições e ritos religiosos, o que poderia dar de tão errado?
Foi aí que pararam de se preocupar com a resposta, talvez o destino os tivesse unido não pelo propósito de suas buscas, mas de um medo, muito maior do que qualquer outro na espécie humana, o medo de não saber o que vai acontecer pelas próximas horas. Assim, eles voltaram para a casa, desejando ter feito a escolha certa.
…
Quando fecharam a porta atrás de si, já estavam todos sentados na mesa jantar, o senhor Robbinson esparramado na cadeira de costas para eles, como um rei em seu trono, a voz grave e escrachada:
— Demoraram, em? Tamô com fome aqui…
Sarah tentou se desculpar com um olhar, até ver o semblante de Margaret, as pernas estritamente juntas e a postura ergonômica, o oposto de tudo o que se encontrava do outro lado da mesa. E no meio deles, a pior de todas, pois nos olhos de uma criança há algo que assusta até mesmo os mais sábios, um olhar de quem ainda não se decidiu. Por quê tinham aceitado o jantar?
Sendo assim, lavaram as mãos e Charlie sentou-se lado a lado com Sarah em um dos cantos da mesa, ocupando cinco dos sete lugares. Antes de iniciarem a janta, Margaret anunciou:
— Está na hora de orar… vamos unir nossas mãos…
E cada mão unia uma personalidade oposta à outra, Charlie sentia a mão rude e calejada do senhor Robbinson com a pressão que exercia, e na mão esquerda, a de Sarah, suave, lisa e macia ao toque. Por um momento, o silêncio pairou ao ar, e Lúcia recitou:
— Porque hoje começamos a nossa jornada, para que antes do novo Sol aparecer, essa jornada termine, e quando a luz do dia chegar, transforme-se em evolução, em sabedoria e em avanço. Pai nosso que estás no céu, olhe-nos e veja teus filhos assumirem a sabedoria que permitiu, pois esses sim terão lugar ao verdadeiro céu.
E todos retornaram com um amém. Charlie não pareceu nem um pouco acuado em perguntar enquanto dava a primeira garfada no filé de porco e mergulhava-o no molho da salada de ervilha e milho:
— Nunca tinha visto uma oração como essa, suponho que seja uma oração da purificação.
Margaret respondeu, sombria:
— Tem muitas coisas que você ainda não sabe, Charlie.
— Bom, pelo menos me chamem para conhecer um dia.
— Nós chamamos, Charlie. Era verão de noventa e dois e você ainda era casado com a Rebeca, seria bom pra vocês e pra Sofia, bem como foi pra nós com a Lúcia.
Agora ele se lembrava, como aqueles objetos antigos e poeirentos de infância que se acham no baú de um sótão e trazem consigo uma nostalgia amarga, mas era tarde demais. Sarah perguntou:
— Quem é Sofia?
Não havia qualquer interesse real na voz dela, mas Charlie deu por si engolindo a carne seca como a voz daquela senhora, somente um gole do refresco de laranja poderia acalmar os nervos. Sem ao menos responder, Charlie continuou a comer, então coube a Margaret a resposta:
— Oh, ele não te contou? A filhinha dele, tão bonitinha, cabelos negros brilhante e olhos azuis…
Aqueles malditos olhos azuis, Charlie disse para si mesmo. Sarah olhava-o com surpresa, mas logo se recompôs:
— Então, nossos visitantes estão para chegar?
— Por que a pressa, senhorita Sarah? – era Lúcia quem falava. – daqui a pouco o tio Robb e o Bob vão estar aqui…
Passado algum tempo, ouviram o barulho de uma caminhonete se aproximando da casa, após isso, também ouviram largas passadas e dois sujeitos de cara europeia entraram pela porta, brutos, mas bem vestidos para o padrão rural.
— Boa noite, todo mundo, desculpa a demora.
Quando finalmente um deles chegou a cozinha, tomou um susto com a presença do policial e da jornalista, e olhando feio para os outros, disse:
— Já tem gente demais, por que eles tão aqui?
Charlie levantou-se cordialmente:
— Viemos verificar um pedido de averiguação, sou Charlie, essa é Sarah, viemos jantar e discutir um pouco mais sobre essa tal purificação, somos curiosos, afinal.
Ele se acalmou ao ver que a presença deles não era invasiva:
— Que seja, eu sou o Robb e esse é Bob…
Não demorou muito para perceber que Bob era mais alto que o próprio senhor Robbinson (apesar de mais magro) e possuía alguma condição mental diferente, pois quando cumprimentou-os, a voz era praticamente nasal e arrastada, as sílabas perdiam-se nas frases, para somente então completarem algo compreensivo:
— Bouuua nuuite, eu-eu-eu sszzoou o Bobiiiii…
Sarah já estava gravando a conversa, a chegada deles permitira que mais brechas pudessem ser abertas para descobrir informações. Esperarm eles comerem. Robb era a cortesia em pessoa, e Bob dava garfadas tortas, pegava comida com dificuldade e de tempos em tempos, ria alto, não por que sentisse graça, mas devia ser outro reflexo de sua condição mental. Margaret por fim anunciou:
— Aqui, mais refresco e bolo de cenoura.
Todos agradeceram, mas Bob bateu na mesa com a mãe direita e envesgou os olhos, gritando:
— Oba, oooooba, bôlo de ceeeeenoooura… HI, HI, HI, HI!
Lúcia achava divertida a risada dele, mas Sarah e Charlie cada vez mais cogitavam se aquilo tinha sido realmente uma boa ideia. Após algum tempo, Sarah sentiu o estômago pesado, e o refresco parecia revirar dentro de si; ela pediu licença para ir ao banheiro. Charlie continuou com os outros, mas parecia cansado de tudo aquilo, cansado de olhar para todos eles ali, parados, e por um momento desejou estar em casa.
— Bob, me dá esse morango.
Robb brigava com o garfo de Bob, que toda hora roubava algo de alguém e brincava:
— Não, não vô dááááá… HI, HI, HI!
O senhor Robbinson resmungava enquanto bebia um copo de cerveja e a senhora Margaret dava broncas em Bob, ¨devolve pra ele Bob, devolve¨. Mas Charlie estava com o olhar vazio para o rosto de todos, foi quando o seu olhar encontrou o de Lúcia, que o encarava como se ele fosse um livro… o que tem de errado com essa guria? Enquanto a briga continuava, ela apenas o olhava de volta, paciente em seu canto, e por um momento Charlie lembrou-se de Sofia de novo.
Lembrava-se de carregar ela no pescoço e correr através dos campos ao redor do lago da cidade, enquanto Rebeca lia algum daqueles livros de autoajuda e tomava Sol. A Sofia, com aqueles dentinhos de leite nascendo ia de lá pra cá, e Charlie ia, junto com ela.
Meu melhor amigo, o próprio chefe, como ela pôde? Mas voltou ao juízo quando o celular voltou a tocar. Era Rebecca. Por um momento, Charlie ficou encarando a tela do celular, pensando se queria mesmo saber a resposta daquilo que tinha indago da última vez que a visitara, outra hora, talvez. Desligou o celular.
Os outros pareciam encará-lo, será que era tanta falata de educação receber uma ligação no meio de uma refeição, ele tinha desligado. E o celular começou a tocar novamente, de novo? Ela não sabe esperar, porra?
— Perdão, só vou atender essa ligação e já volto.
Margaret interveio:
— Estamos no meio da sobre –
Charlie interrompeu sem se importar, só queria uma desculpa para tomar um ar fresco, estava ficando cada vez mais cansado. Saiu para a varanda e com raiva olhou para a tela do celular, foi quando a frustração foi substituída por um sentimento de curiosidade, pois o que viu foi: *telefone desconhecido*. Atendeu:
— Alô?
Primeiro, uma respiração ofegante do outro lado da linha, Charlie teve que prestar muita atenção para entender que não se tratava de uma interferência ou mais uma das malditas ligações de companhias telefônicas que ofereciam planos. Depois de um tempo, a voz de uma criança chorosa se sobressaiu:
— Alô, senhor Charlie? Por favor, senhor Charlie?
O coração de Charlie começou a bater mais rápido, ele desceu os degraus, tenso:
— Alô, alô, quem é que tá falando?
— Aqui é o Alex, senhor Charlie, o Lucas conseguiu um telefone, por favor, ajuda a gente!
Meus deus. Existem vezes em que pensar é uma das piores coisas que o cérebro humano pode fazer. Em uma fração de segundos, Charlie foi bombardeado com uma série de perguntas que não sabia se teria tempo de serem esclarecidas antes que a chamada caísse ou alguém desligasse: Onde vocês estão? Como conseguiram um telefone? Estão todos juntos? Quem raptou vocês? Estão machucados? Por quê ligaram pra mim e não pra delegacia ou emergência? Por quê não ligaram pra algum parente próximo? Tantas eram as perguntas, mas ele sabia (e isso era o que o deixava mais aflito) que se fizesse a pergunta errada, não só perderia tempo sem descobrir onde elas estavam como também poderia ser a última vez que falaria com elas.
Charlie redescobriu um instinto paternal e policial que estava adormecido há anos, por fim, perguntou:
— Fiquem calmos, a gente tá procurando por vocês, fiquem calmos. Preciso que vocês respondam: qual foi o último lugar que vocês se lembram de terem estado?
Uma voz de garota surgiu:
— Na residência dos Robbinson, por favor, tio Charlie, a gente tá muito machucado, eles são muito maus.
Charlie sentiu um aperto de pena no coração inimaginável, e a própria voz foi ficando desesperada à medida que ele decidia como prosseguir. Sarah ainda estava na casa e corria perigo, mas se Charlie fosse em sua direção deixaria de falar com as crianças, que poderiam perder a qualquer momento a chance de falar com ele. Poderia tentar sair dali agora e deixar a jornalista, seria um sacrifício para ganhar tempo e chamar ajuda pelo rádio sem ser percebido, mas não faria isso com uma companheira, e além do mais, será que teria tempo de descer o escampado e chamar alguém sem levantar suspeitas? A jornalista também tinha um rádio, mas tinha ido ao banheiro e que dificilmente levara o aparelho consigo (foi aí que lembrou que ela tinha uma faca), talvez ganhasse um pouco mais de tempo.
— Escuta com atenção gente, eu estou aqui na casa mas tem uma amiga que tá correndo perigo agora, tentaram ligar pro 911?
— Tentamos, mas o nove não funciona e parte da tela tá quebrada.
— Então como conseguiram ligar pra mim?
— A lista de contatos, o Lucas disse que conhecia você.
— Tá bom, mantenham a calma e escondam o –
De repente um estrondo do outro lado da linha e o barulho das crianças, principalmente o de Laura, chorando:
— Por favor, não moço, ele já tá machucado! NÃÃÃO!
Não dava pra ouvir com clareza, só uma voz grossa e rouca gritando:
— Seu preto filho da puta… – e o barulho do que parecia ser de batidas em sacos.
— NÃO, POR FAVOR! – Era Alex quem gritava.
— Me dá a PORRA do celular, garota! Olha isso aqui, ainda tá em ligação.
— Quem é? – Outra voz surgiu, afinal, quantos filhos da puta eram? A primeira voz respondeu de novo:
— Um tal de Charlie, conhece?
— Puta que pariu, a gente tem que chamar eles, agora! Prende essas crianças direito antes que dê m…
*ligação encerrada*