Purificação - Capítulo 12
Capitulo 12 – Escuridão:
Charlie sonhou que estava na cama, sentindo o toque gentil da esposa depois de fazerem amor, os cachos escuros do cabelo dela em seu peito nu, o sorriso de canto de boca, a pele macia, os seios que descansavam suavemente em seu braço. Nada poderia acabar com esse momento, pensou. Até os primeiros choros de Sophia chegarem.
Ele também não se importava de levantar aproximadamente vinte e quatro vezes todas as noites para ver o que ela queria. Insistia para que Rebecca ficasse descansando, já fazia coisas demais na escola para ter que se preocupar com a fome que a filha tinha de madrugada, e a criaturinha tinha fome.
Inclusive, não era incomum serem perturbados no meio de uma transa, simplesmente tinham que interromper o ato ali mesmo, a Rebecca ria do jeito que só ela sabia fazer, e ele corria pelado para apaziguar a situação o quanto antes.
Estranhamente, a cada vez que via o rostinho meigo e gorducho da bebê, que dava aquele sorriso banguela toda vez que fungava sua barriga, brincando, era como uma oportunidade de ver uma estrela cadente. As mãozinhas pequenas em seu nariz, os olhos azuis como o mar de início de manhã, aqueles malditos olhos azuis, ele pensaria mais tarde.
Naquela época, era bem diferente, geralmente quando entrava no quarto cambaleando de sono e olhava para ela, era como se tomasse um susto. Caralho, eu tenho uma filha mesmo, e ela é a coisa mais linda do mundo. Charlie tinha poucas coisas na vida de que se orgulhava, mas uma delas era a de ter se casado com Rebecca, não por que ela era a mulher dos seus sonhos, não demorou muito para ambos descobrirem que não se amavam de verdade, ou pelo menos ele não a amava de verdade. O que Charlie tinha orgulho mesmo era que o casamento deles gerou a filha de que se orgulhava, até aquela noite.
Sua mente andava em uma linha tênue que transitava da realidade para o sonho, confundindo-se em duas dimensões que traziam memórias do passado e visões do presente, dançando de mãos dadas em sua alma uma balada de desespero, dor, tristeza, angústia. Fora do sonho, alguém dizia:
[– Vamos colocá-lo aqui, por enquanto…]
Outra voz o repreendeu:
[– É muito pequeno, porra, tá escuro pra caralho aqui.]
Estava escuro, disso ele tinha certeza, afinal, a noite depois dos relatórios de vendas de material para a escola e para o festival eram assim, todos enfurnados em seus escritórios sem saber ao certo como toda aquela papelada seria organizada antes do começo da manhã.
Charlie iria buscar a esposa mais cedo, desde a última briga deles por causa da bebedeira após a última vitória da escola, que conseguira a vaga para o campeonato estadual, eles se falavam pouco. Ela deve tá cansada, é o mínimo que posso fazer, mas ele sabia que era o máximo, na verdade.
[– Ele poderia ser menos pesado, e a tia Carla só sabe reclamar também.]
[– Elaaa sóóóó sabiii reeeclamar… HI, HI, HI!]
[– Pega uma chave que preste lá na cabana, ele vai ficar aqui até eles decidirem o que fazer com eles…]
A chave. Agora ele se lembrava, ela também pediu uma cópia das chaves do escritório, por causa da reserva que ficava lá e que continuamente fazia-a ser interrompida por outros funcionários que pediam a chave para conferir alguma coisa. Isso, ele ia entregá-la o quanto antes.
As luzes estavam quase todas apagadas, não parecia ter ninguém no escritório. Tu tá pegando pesado com ela, Charlie, é essa grana que tá indo pro plano de saúde da bebê. Charlie amava o beisebol, mas só passou a ganhar dinheiro com a ¨profissão de hora vaga¨ recentemente, e bom, um policial novato não ganha muito para sustentar uma família.
[– Praaaa ooondeee aaa mooçaa vaaaai?]
[– Caralho, você me assustou! Eu sei lá porra, a gente não lida com esse tipo de problema, somos os guardiões, lembra? Trouxe a maldita chave?]
[– Aaaquiii aaa chaaaveee.]
[– Isso!]
Isso, assim… oh, assim… Charlie se aproximou do escritório sem ao menos perceber o barulho que vinha do interior, as persianas estavam caídas e a porta, semiaberta. Tá gostando? Que boceta gostosa, assim, ah, vou gozar dentro…
Existe um misto de sensação que abala uma pessoa, onde turbilhões de sentimentos navegam através de calafrios, ânsia de vômito, nojo, raiva, remexendo as entranhas e fazendo a pele ficar quente. Se havia algum tipo de magia negra, era esse misto de sensação indescritível. Um estado mental tão intenso e introspectivo que beira à hipnose insana, como se por um momento o tempo parasse, e uma série de feixes de memória se distorcessem em um caldeirão de ódio.
[– Ele tá fedendo, essa purificação é a que tá dando mais trabalho até agora, puta que pariu. Coloque ele aí dentro logo e vamos sair, já vai começar.]
[– HI, HI, HI!]
Sentiu o corpo balançando…
[sendo jogado dentro de uma sala…]
Qualquer sentimento de lucidez se esvaindo…
[como um verdadeiro baque…]
A mão fechada voando em direção ao rosto de Brandon, o sangue borrifando-se em cima da papelada. Rebecca com sêmen escorrendo entre as pernas, os olhos marejados sem saber o que dizer.
[um novo empurrão, para confirmar…]
Que ela estava do outro lado da porta.
[o barulho da chave girando…]
O filho da puta implorando por perdão, os olhos em lágrimas, malditos olhos azuis.
…
Não soube quanto tempo dormiu, mas acordou em um susto, dando uma arfada profunda à procura de ar, o corpo dolorido dos pés à cabeça, como se o próprio velho Robbinson ¨versão invisível¨ andasse de lá para cá em cima dele. A garganta estava seca e áspera, a escuridão permitia enxergar apenas diferentes tons de negro. O braço direito estava não somente inchado, mas ardia a cada vez que tentava afrouxar a corda que prendia-o. Os pés não estavam atados, mas pareciam ter tirado sua farda e deixado-o seminu, apenas com uma camiseta e um short.
Além de um forte ardor na testa, pontadas que iam e vinham da sua cabeça, também começara a tremer por causa do frio, o chão estava gelado, e como estava. A sala ao seu redor era pequena, duas estantes com vários nadas. Produtos perfeitos para ele, que precisou se recostar para observar as marcas dos produtos.
A primeira prateleira possuía as promoções do dia: CHIFRES AMALDIÇOADOS: Só os verdadeiros cornos vão usá-lo (24 dólares); COVARDÔMETRO: Você nunca vai errar se nunca tentar! (45 dólares); CHAVEIRO MATEMEUSPAIS: Por que só roubar, quando pode espancar um senhor e estuprar sua mulher depois? (15 dólares); TESTE DNADA: Já que você é tão burro pra abrir os olhos, por quê não comprar? (Último do estoque! 28 dólares).
Charlie não pôde conter as risadas, elas simplesmente vieram, atravessaram o seu corpo como uma onda, um caixote, escapuliram, risadas frenéticas, até as cordas vocais fecharem de irritação e assobiarem, para depois vir o choro, o choro de alguém que em um momento tinha tudo, e logo depois não tinha nada…
— Eu sou o culpado.
Sussurrou. Sua mente parecia perguntar, como um narrador dos jogos da escola: atenção, telespectadores! temos uma virada de mesa incrível aqui, será que Charlie vai conseguir rebater essa? O que você disse, Charlie?
— A culpa é minha, não é da Rebecca, não é da Sophia, não é do Brandon nem dos meus pais ou dos meus conhecidos… sou eu…
A imagem que se formava em sua mente era de um estádio lotado, na arquibancada, todo mundo queria ver o que ele faria, quem arremessava a bola era o próprio, o veterano, o Mister Robbinson. O narrador não podia acreditar, a voz enérgica: essa vai ser uma tacada tensa, não é fácil até mesmo pra ele. Existe muita coisa em jogo, se ele perder essa, o time Dawnball perde a temporada inteira. Será que ele vai rebater?
Nem mesmo Charlie sabia se conseguiria, mas precisava tentar, era sua única chance, a última chance. A bola vinha de encontro a ele junto às memórias que faziam-no refletir se não poderia ter se esforçado mais quando pôde.
Ele rebateu (O narrador em sua mente gritava junto à arquibancada: lá vai ele, é agora ou nunca, senhoras e senhores!)
Charlie começou a se contorcer, não conseguiria se soltar sozinho, mas as vigas que sustentavam as prateleiras poderiam ajudá-lo pelo menos a afrouxar a corda. Primeiro ele se arrastou para perto da porta e tentou ouvir algo. Também colocou o ouvido no chão para ver se havia passos se aproximando. Nada.
Ótimo, ele tinha uma chance, e se agarraria a essa chance com unhas e dentes. Começou a se debruçar e usou as próprias costas e o ombro para levantar um pouco a estante, tentando encaixar uma de suas vigas no espaço entre o corpo e a corda propriamente dita, tudo isso enquanto sustentava o peso. Quando o fez, a estante estremeceu, por favor, não caia, por favor, não caia (a arquibancada enlouquecia: lá vai ele, será que vai conseguir, senhoras e senhores?).
Por sorte, a estante não caiu, somente um dos produtos da loja do nada espatifou-se no chão em milhares de pedaços, era o COVARDÔMETRO (a arquibancada foi à loucura com a sua ousadia). Charlie retorceu-se de cima para baixo até conseguir espaço suficiente para manobrar as mãos. Quando conseguiu pelo menos mover o braço esquerdo com certa liberdade, procurou empurrar a corda com força para baixo e retirou-se da viga da estante. O braço direito ardia e movê-lo nem que fosse por centímetros fazia-o sentir-se como se uma chapa de ferro quente deslizasse pela pele.
A qualquer momento alguém poderia entrar ali, meter um revólver na cabeça dele e atirar. E daí? Cansei, cansei de fugir. Charlie começou a enrolar a corda em volta de uma das prateleiras e aguardou, aguardou ansiosamente para saber se sairia vivo e daria um jeito na sua vida, ou se morreria tentando.
…
Sarah sonhou que estava na sua casa de infância de novo, era final do culto e a mãe iria para o clube de leitura no sul da cidade. Somente ela e seu pai ficariam em casa. Era o pior dia da semana.
O papai fazia um café com creme e assava pequenas torradas com geleia de morango, após isso, ficava vendo os jogos de beisebol sentado no sofá da sala e pedia para que Sarah o acompanhasse. Também abria algumas latas de cerveja, eles só participariam do culto da tarde, então tinham ¨muito tempo¨, como ele mesmo gostava de dizer.
Sarah brincava com suas bonecas, mas o que queria mesmo era ter um cachorrinho, ela sempre quis ter um mascote mas a mamãe não deixava. ¨Primeiro tem que aprender a arrumar seu quarto, depois a gente pensa nisso¨, a mãe costumava dizer, então ela pedia para o pai, e ele dizia que ¨somente se se comportar, mas não pode desobedecer¨.
Ela queria muito um mascote, então obedecia-o. Quando o jogo acabava, ele se aproximava dela e pegava-a pela mão (quatro vezes o tamanho da sua), dizendo: ¨agora o papai quer brincar com você, vamos lá pro quarto¨. No sonho, as coisas aconteciam rápido demais, o que era estranho, pois ela lembrava-se de que a subida até o segundo andar e a travessia pelo longo e escuro corredor era como uma eternidade, ela ouvia o barulho do cinto do pai se desprendendo da calça, o bafo de cerveja invadindo as suas narinas. Quando trancava a porta do quarto, a próxima coisa que fazia era sentar-se na cama dizer:
— Vai ficar tudo bem querida, senta aqui do ladinho do papai.
E ela o fazia, eu só queria um cachorrinho, papai. Eu não gosto disso, mas ela não podia contar nada, era o ¨segredinho deles¨. Sentia as mãos asquerosas subindo através da sua coxa, a voz de um bêbado, arrastada:
— Vai ficar tudo bem, tá me ouvindo? Vai ficar tudo bem… vai ficar tudo bem… tá me ouvindo? – de repente, ela acordou em um susto, com uma mão suave em seu rosto e o som de uma voz preocupada. – senhora? Tá me ouvindo? Tá tudo bem?
Demorou até Sarah recobrar a consciência, sentia uma forte dor no estômago e sua cabeça pendia de um lado para o outro. Ela ainda não entendia por que estava escuro ou ao menos quem aquela criança era, mas as entranhas que se reviravam por dentro eram a sua única fonte de atenção. Como um monstro saindo de uma caverna tenebrosa e abocanhando os curiosos que chegaram perto demais, Sarah sentiu o vômito subindo em um jato e pousando ao seu lado. O gosto de bile impregnou sua língua e suas narinas ardiam com o cheiro azedo. Foi quando disse alguma coisa, ainda desorientada:
— Onde… onde… a gente tá?
A menina tinha se assustado, uma coisa diminuta no outro canto da sala. Ela tentou se mover, mas o barulho de uma corrente anunciou até onde seus esforços a levariam; foi quando a menina respondeu:
— Não sei direito, mas o Lucas disse que era uma espécie de floresta.
Sarah olhou ao redor, a visão ainda embaçada pela dor que sentia em uma de suas pernas e pela náusea acompanhada de enxaqueca. Procurou tatear a perna para ver se tinham-na presa (ela ainda não acreditava totalmente que estava de fato presa), foi quando sentiu um corte no tecido de sua calça, e outro corte meio fibroso e molhado, que ao inconstar a mão, foi como se um pedaço de carvão aceso abraçasse sua panturrilha.
— Aaaa…
Os dentes cerraram-se e por pouco ela não conteve o grito de dor. O coração começou a bater mais depressa quando alguns feixes de memória vieram à sua mente. Lembrava-se de estar em um corredor, depois alguém a carregava, ela olhou para cima e viu Charlie. Charlie? O que deu errado? Depois disso um milharal, e tudo tinha ficado preto. Um fenômeno comum da desorientação se apossa de um humano quando pensamentos lógicos mediantes a uma situação de risco atuam tão depressa que a pessoa não sabe ao certo qual das vozes está de fato presente, a mente, ou o eu consciente. Com ela, não poderia ter sido de outra maneira. Charlie, cadê ele, a gente tava saindo da casa…
— Cadê ele?
A menina pareceu confusa:
— Ele quem?
O Charlie, porra, a gente…
— Tava saindo da casa…
— Moça, respira, a senhora não tá falando coisa com coisa.
Respira, Sarah, respira.
[– E então, como estou? – ela estava no auditório da escola de novo]
[– Tão feia que eu poderia beijá-la o dia todo. – era John]
Agora ela lembrava, Dawn City, o departamento, Charlie, a fazenda, as crianças…
— Ei, garota, qual é o seu nome?
— Sou Laura.
Não sabia ao certo o que sentir com aquela informação, mas foi quando a menina chegou próximo dela que observou o estado deprimente da garota. Jesus Cristo, o rosto dela tinha sido lanhado por tapas, o cabelo ruivo estava desmaranhado, sua perna estava suja de lama seca e em uma das pernas um torniquete improvisado estava agora empapado de sangue. Sarah tentou achar as outras crianças e viu duas silhuetas escuras repousando na parede à sua direita, separadas por uma mesa. Por fim, perguntou:
— Como você conseguiu sair e os outros ainda estão presos?
— Aqui, um alicate, – a voz da menina já estava fraca, Sarah também não se sentia bem, mas menina estava pior, o que fez com que sentisse um aperto de pena no coração. Ela não vai aguentar muito tempo, já está a beira de um colapso. Laura continuou: – eles não perceberam que nós conseguimos arrebentar uma das ligas, mas a gente coloca de novo quando eles dão uma olhada aqui. Agora vou te soltar…
— Calma – Sarah interrompeu-a. – cadê o Charlie?
— O tio Charlie tá com você?
Os olhos da menina estavam espantados em uma confusão de ansiedade e alegria. Coube a Sarah puxá-los para o fundo do poço de novo:
— Estava.
Por favor, não tenha morrido, não tenha morrido. Laura parecia ter dado um gemido, aquele de quando se tenta chorar mas as lágrimas já secaram por causa da desidratação emocional e fisiológica. Sarah disse enquanto Laura se aproximava com o alicate:
— Não acha que é muito perigoso?
— É, mas é mais perigoso se você estiver presa, eles são muito maus, tia.
Sarah refletiu enquanto ajudava Laura a apoiar-se bem para juntas exercerem uma força capaz de romper a liga (a corrente parecia a de um canil):
— E os meninos?
— O Lucas tá muito machucado, tia, e o Alex tava cuidando dele agora há pouco.
Clac, clac, clac. Estava quebrando, isso era bom.
— Só mais um pouco.
Quebrou. Estava livre, mas a dor na perna estava piorando. Ela precisou rasgar parte da jaqueta para fazer um torniquete improvisado. A garota tinha sido esperta, mas não poderiam continuar contando com a sorte se quisessem ter alguma chance de sair dali, Sarah disse:
— Olha, a tia Sarah vai precisar da sua ajuda com os meninos, mas eu preciso que você confie em mim, tá legal?
— Tá, tá legal.
Ótimo, ela realmente confia em mim. Agora, será que eu confio em mim?