Purificação - Capítulo 2
Capítulo 2 – Sarah:
Uma semana antes do desaparecimento das crianças…
O relógio marcava sete e quarenta e cinco quando Sarah acordou. Droga, estou atrasada! Levantou às pressas da cama, foi para o banheiro e nem reparou em sua aparência ao passar pelo espelho, o que quer que estivesse refletindo, não era nada apresentável.
Tirou a camisola e desceu a calcinha em um salto, quase tropeçando no vidro do box. Quando ligou a ducha, sentiu a água quente caindo na pele clara, o rosto ainda recebendo os primeiros raios de luz que atravessavam em diagonal a janela ao seu lado.
Ao sair do banho, Sarah ajeitou o disquete ao som de AC DC enquanto penteava o cabelo castanho e ondulado e escovava os dentes, nada como um rock pra começar o dia. Passou a toalha pelo corpo e ligou o secador, e, enquanto decidia que roupa vestir, o telefone tocou.
Desligando o secador, ela correu para a cabeceira e atendeu. A voz dela soou ansiosa e apreensiva, como se soubesse o que ouviria no outro lado da linha:
— Alô?
— Oi, Sarah. Onde você tá? Já tá todo mundo esperando…
Era John, com a voz típica de quem tenta se manter discreto, mas com preocupação. Como ela temia. Não teve tempo de responder direito, tentou abafar o som da música para soar mais convincente, o resultado, catastrófico:
— Oi, John. Já tô saindo de casa, ai! – tinha batido o dedo mindinho do pé na beirada da cama enquanto separava a calça jeans, John perguntou, confuso:
— Tá tudo bem aí?
— Tá, não é nada demais. Escuta, John, peça para eles aguardarem mais alguns minutinhos, eu já estou chegando!
— Vou ver o que posso fazer, mas o diretor tá aqui e não podemos perder essa matéria, nosso redator está contando com isso. – subitamente, a voz mudou, como que percebesse algo inusitado, – Espera, isso aí de fundo é AC DC? Sarah, você ainda tá em casa!?
Highway to Hell nunca fez tanto sentido na vida dela. Desligou o telefone, colocou as roupas íntimas, deslizou as pernas para dentro da calça e vestiu um blusão. Pegou a pasta ao passar pela cozinha do apartamento, as chaves do carro e partiu, mais um dia na vida de Sarah, pensou, enquanto trancava a porta, já no lado de fora…
…
— Escuta, por pouco não perdemos o horário da palestra. Tá com o script aí?
Mal tinha entrado e, como sempre, John já começava a se preocupar demais. Deu um beijo rápido em seus lábios e aquiesceu, fitando alegre o rosto pardo com o maxilar achatado e barba por fazer, os olhos firmes e castanhos, o cabelo curto e crespo. Parou subitamente, antes de entrar no palco, ainda no corredor estreito e perguntou para o namorado:
— E então, como estou?
— Tão feia que eu poderia beijá-la o dia todo.
Ela respondeu, brincalhona:
— Você e suas comparações.
Por fim, entrou no palco do auditório, recebida por aplausos de centenas de estudantes, o semblante contagiante, mas de certo modo, compenetrado, pois o assunto era delicado e acima de tudo, polêmico. Ao cessar dos aplausos, ela anunciou ao microfone, o telão atrás de si mostrando a seguinte frase: ¨Uma vida de superação: Os momentos podem ser difíceis, mas você não está sozinho(a)¨:
— Boa manhã a todos vocês, estudantes, que toparam participar dessa conversa e que ao menos têm curiosidade a respeito do tema. Muitas vezes nos deparamos com situações em que nos perguntamos: do que somos capazes de fazer? A maioria das reflexões relacionadas traz consigo otimismo e previsões prósperas. Ora, dominamos o fogo, aprendemos a nos comunicar em várias línguas, pensamos logicamente através da filosofia e da matemática, dominamos tudo que conseguimos ver na Terra, separados apenas por outros de nossa espécie, em conflitos armados que deram lugar a corridas espaciais e domínio de mercado. Caminhamos agora até mesmo para outros planetas. Mas, para muitos, as respostas para essas questões são sombrias, acima de tudo, por que são reais.
Fez uma pausa e mudou o slide, apresentando os casos de abuso sexual em crianças e adolescentes das últimas três décadas. Os gráficos incluíam diversos países da América do norte e sul: Canadá, EUA, Argentina, México, Brasil, além de alguns países da Ásia e da Europa. Não foi preciso uma palavra para fazê-los entender, mas ela reafirmou as informações de modo enigmático:
— Caros jovens, dadas as respectivas fontes e o período de tempo, além da popularização da internet, e consequentemente, um aumento no consumo de pornografia infantil, eu gostaria de perguntar a vocês de novo: do que somos capazes de fazer? Por muito tempo, essa era minha única perspectiva, pois, é simples olhar para um gráfico como esse e dizer que são números, é simples esquecer que milhares de crianças têm suas infâncias e adolescência arruinadas pelo abuso sexual, e, eu me incluo nessas estatísticas.
Tinha apresentado essa palestra dezenas de vezes, mas ainda assim sentia um frio na barriga quando começava o seu relato:
— A melhor hora do dia era quando meu pai não estava em casa, a minha esperança era que a qualquer momento eu acordaria como se tudo fosse um pesadelo, afinal, não podia ser verdade. Meu pai tinha um emprego bom, uma mulher linda e uma filha charmosa, ah, e claro, frequentavam a igreja. Eles? Não, eles são gente de confiança, eles são crentes, não fariam isso, fariam? E para muitos que assim como eu passaram por isso, eu gostaria de dizer que, pode ser muito difícil, mas não é o fim, e podemos fazer a diferença. Muitas meninas e meninos vieram até mim fazer denúncias através da iniciativa que tomei em parceria com a New Expres, e que finalmente puderam ser atendidas graças a uma coisa: empatia. Eles sabiam que podiam contar com a nossa ajuda pois não perguntaríamos com repulsa, ao invés disso, acreditaríamos e seguiríamos em frente até que toda investigação fosse concluída nos departamentos policiais. E com meu trabalho, espero ajudar essa causa a alcançar diversos setores para que menos crianças tenham que sofrer como eu sofri, pois, é o mínimo que posso fazer, e muitas das vezes precisamos apenas do mínimo para fazer a diferença.
E a apresentação se seguiu com informações sobre processos judiciais, relatos, superação, reinserção no meio social, vida pessoal, relação com parentes, trabalho, etc. Após os aplausos que anunciaram o fim da palestra, Sarah abriu espaço para perguntas. Como sempre, alguns embates e contra argumentos, decisões políticas e referências partidárias que logo perderam o rumo e foram cessadas. Um dos jovens, um garoto de cerca de dezesseis anos na plateia, perguntou carismaticamente a ela, após agradecer às informações:
— Senhora Sarah, um amigo meu pediu pra perguntar: você tem namorado?
Por um momento, as gargalhadas vieram à tona, quebrando o silêncio e tensão dos temas delicados discutidos anteriormente. Isso era bom, e o garoto tinha senso de humor, então ela respondeu com um sorriso no rosto:
— Pois tenho jovem, inclusive… – ela olhou para o lado, onde seu namorado estava, fazendo menção para que viesse. Ele começou nervosamente a gesticular, sussurrando vários não, não, não. Ela continuou, e então, ele apareceu no palco, com as mãos no bolso e o olhar meio caído de vergonha.
Alguns dos meninos riram, algumas meninas da plateia soltaram sonoros uaus. Por fim, a sessão de perguntas continuou, até que novamente outra dúvida fora da curva surgiu, bem no meio da plateia, onde uma garota (aparentava ter cerca de catorze anos) perguntou quando chegou a sua vez, de maneira tímida:
— Senhora Sarah, você acha que a igreja serviu de alguma ajuda para você?
De repente, um silêncio tomou conta do auditório e da própria mente de Sarah. Ela sorriu para disfarçar enquanto procurava a resposta, a primeira coisa que veio em sua mente foi: a igreja foi a pior coisa que aconteceu na minha vida, e na vida de muitas pessoas. Mas o que respondeu foi:
— Digamos que as coisas poderiam ter sido diferentes se pessoas como eu (autoridades locais e jornalistas), naquela época, tivessem a mesma preocupação que as pessoas de hoje têm, isso inclui as políticas da igreja também, mesmo estando quase no final dos anos 90, infelizmente ainda é algo que temos de prestar atenção.
Finalmente, a palestra havia terminado e as pessoas começaram a sair. Ela foi de encontro ao seu namorado, enquanto recolhia a papelada:
— Nossa, nem tomei café da manhã. Vamos dar uma passada em algum café na ida pro trabalho…
E assim foram. A conversa até lá tinha sido normal, como todo papo de casal. Trabalhar na New Express era como um descanso para ela, com exceção das viagens, e logo teria mais uma.
…
— Acho que você tá indo muito longe dessa vez.
A voz do redator da empresa sugeria neutralidade, mas ela também sabia dos riscos. Por fim, Sarah disse:
— Escuta, Vincent, mais de dez casos registrados em um raio muito curto, além disso, recebi denúncias anônimas vindas de lá. É a oportunidade perfeita…
— Sim, Sarah, mas não temos muitas provas, apenas relatos, vai fazer o quê? Esperar algum caso e exercer pressão nas autoridades, como foi da última vez? São cidades muito pequenas, é uma cidade muito pequena. O povo de lá é conservador em sua maior parte, você vai acabar virando motivo de chacota. – parou por um tempo, fitando a parede e depois a janela do escritório, onde os outros jornalistas trabalhavam nas matérias. Enfim, continuou: – Mas, que seja, te dou uma semana, o Jimmy vai estar por perto também para fazer alguns relatórios e trabalhos, espero que consiga alguma coisa.
John não gostaria de saber que teria de viajar novamente, mas era necessário. O resto do dia passou com Sarah sentada em seu escritório, revisando material e redigindo novos conteúdos para serem postados na próxima edição.
Sem dúvida um dia cansativo, mas ela e John pelo menos podiam sair juntos. Passaram a noite assistindo a um filme de terror, um tal de O Iluminado, e Sarah e John eram o tipo de pessoa que se envolviam na história a tal ponto que não conseguiam pensar em outra coisa antes de conversarem horas sobre. Quando a pipoca acabou, eles foram para cama.
O apartamento de John era como o dela, apenas com um quarto a mais e sua cama também era maior. Sempre gostava de ficar junto a ele, seu toque era gentil, carinhoso. Ali, na noite aconchegante, ela deslizou por cima dele, debaixo da coberta, sentindo-o duro enquanto sentava-se em seu colo, beijava-o, deslizava a calcinha e enfiava-o dentro de si. Apenas sentiam a respiração um do outro, o hálito quente no pescoço um do outro, afinal, pertenciam um ao outro.
Por muito tempo Sarah achava que não faria sexo durante toda a sua vida, qualquer toque era frio e fazia-a ter arrepios só de relembrar as mãos duras e rudes do pai passeando pelo seu corpo. Foi preciso muito tempo para ela se acostumar ao toque das pessoas, ainda mais de John, e ele não poderia ter sido melhor com ela, agora, sentia-se bem quando ele estava dentro de si, sentia-se de novo com vontade de amar, de viver. Quando o clímax chegou, Sarah debruçou-se sobre ele, sentindo-o quente ao toque. Aquele silêncio calmo depois de uma boa transa, o barulho do ventilador de teto, o sono relaxante que vinha logo depois, ela não sabia como começar:
— Semana que vem vou ter de viajar a trabalho de novo.
– …
— Eu sei o que está pensando, John, mas vai ser rápido dessa vez. Eu preciso…
— Já imaginava. – a voz soou meio decepcionada. – Vai ser a onde dessa vez?
— Dawn City, no sul. Mas prometo que quando voltar vamos terminar de falar sobre aquele final, ou melhor, vou ler o livro e provar pra você que ele…
— Sarah, relaxa, tá tudo bem. Não é como se você fosse para outro país ou fosse morrer, me viro até lá.
E assim, eles caíram no sono.
Horas antes do desaparecimento das crianças…
Era início de tarde quando Sarah chegou à igreja, alguns crentes se reuniam em frente ao salão onde eram dadas as palestras e os cultos, além de alguns funcionários que estavam em uma longa área externa destinada a eventos de caridade e da própria igreja.
Ela entrou quando o culto havia terminado, aguardando com uma cópia de O Iluminado até que o pastor viesse ao seu encontro, ainda sem saber o propósito de sua vinda. Sarah guardou o livro quando ele se aproximou, o sujeito já aparentava os sessenta anos de idade, mas o rosto era gentil, e a voz soou acolhedora:
— Com licença, senhora, é a primeira vez na nossa igreja?
— Ah, sim. Me chamo Sarah, prazer.
Um cumprimento de mãos rápido.
— O prazer é todo meu, sou Michael. O que te traz aqui, Sarah?
— Na verdade, sou uma jornalista de campo da New Express, você se importaria se eu fizesse algumas perguntas a você?
— Tudo depende do tipo de pergunta, vamos lá pra fora, um ar fresco seria bom.
E assim foram. Sarah tinha acabado de chegar na cidadezinha, mas não achou nada mal, o ar era fresco e a vista, agradável. Como sempre, ela separou o bloco de notas e a caneta enquanto o pastor trazia dois refrigerantes. Foi ele quem iniciou o diálogo:
— Então, Sarah, o que gostaria de me perguntar?
— Pastor Michael, sei que as perguntas que irei fazer são delicadas, mas como profissional busco apenas informações que possam ajudar os envolvidos.
— Os envolvidos, ou o seu jornal? – a sua voz soou cansada, como se soubesse o que ela perguntaria.
— Os envolvidos. – ela não deixaria se levar por farpas, não poderia perder quaisquer informações. – nos últimos dois meses, foram registrados dez casos envolvendo abusos sexuais em crianças nessa região, três deles sendo daqui, e todos tendo ocorrido no último feriado da cidade promovido pelas igrejas locais. Gostaria de saber o quão a par o senhor está dessas informações, pastor.
— O suficiente, senhorita. Me entristece saber que a primeira coisa que pensam sobre as igrejas americanas e de Dawn City hoje em dia é como um lugar de ideal retrógrado e repulsivo. Muitas pessoas boas trabalham conosco, não há qualquer organização desse tipo aqui, e vários colegas de igrejas próximas tiveram de fechar as portas devido aos escândalos.
— Você acha que isso se deve a tentativa de omitir informações com relação aos casos envolvendo empresas de produção industrial e transporte de material não fiscalizado?
Sarah sabia que existia uma linha tênue entre o jornalismo empático e o frio, onde as perguntas começavam a ficar incômodas demais para o entrevistado. Muitos jornalistas começavam a parar aí, mas depois de ver uma criança de oito anos relatando o abuso que sofria no intervalo da escola dominical, as coisas mudam rapidamente, não era algo que Sarah se importava mais. O pastou respondeu:
— Bom, sinceramente, não sei. Minnesota tem muitas fazendas, então é de se imaginar que a maior parte das empresas que doam para tais instituições sejam do meio. Infelizmente as duas saem no prejuízo, se é o que quer saber. Mas pelo visto você já tem a sua resposta.
Ela ignorou o argumento. Precisava de mais informações, a voz soou intrigada:
— Senhor Michael, você disse que igrejas fecharam devido aos escândalos de abuso nas últimas semanas, qual foi o caso mais discrepante?
— Certamente a que fica mais próxima de todos nós, quase ao centro da cidade. Você deve tê-la reconhecido pelo nome, New Life Church, mal fecharam e outra organização se apossou da localidade, uma tal de Saint Marry Wood. Mas o local ainda está fechado pois grande parte é cedido e financiado por iniciativa privada, deste modo, somente com um mandado está sendo permitido a entrada para análise de documentos, e com a reforma do departamento, as coisas andam paradas.
— Entendo, e onde posso encontrar tal departamento?
A New Life Church era do conhecimento dela, mas essa nova, isso era novidade. Ele indicou brevemente algumas instruções, e quando ela lhe agradeceu e começou a andar em direção ao seu carro, o pastor perguntou, de súbito, mas educado:
— Senhora Sarah, um momento.
Ela parou, curiosa.
— Pois não?
— A senhora acredita em deus?
Se ele tivesse feito essa pergunta há alguns anos, ela ainda teria pensado sobre a resposta que daria, mas agora, tão logo perguntavam ela respondia, assim como o fazia agora:
— Não, pastor. Já faz muito tempo desde que para mim, deus passou a ser motivo apenas para os infelizes que não tem mais nada poderem melhorar de vida. Não sou inimiga de deus, não quero que nenhum mau aconteça àqueles que acreditam nele e que morrem convictas de que estarão no céu um dia, tampouco me importo com ele, me importo é com o agora, e com as crianças que tiveram suas infâncias arruinadas por essa ocasião.
O pastor sorriu.
— Entendo, senhorita Sarah. Eu acredito que deus é muito mais do que eu posso saber, mesmo que o pouco que saiba seja motivo suficiente para muitos não acreditarem ou sequer especularem sua existência, mas também acho que ele pode nos enviar algumas pessoas boas e más, por motivos que também desconheço, e nesse momento, eu diria que você é uma das pessoas de bom coração. Por muito tempo eu acreditei que as coisas eram simples demais e que, talvez, quando minha fé renasceu, elas tornaram-se mais simples ainda.
— Não entendo, pastor. O que quer dizer com isso?
— O que quero dizer é que, por favor, enquanto prosseguir suas investigações, não pense que as coisas se resumem a um sim ou um não, a igreja não é inimiga das pessoas, as pessoas é que são inimigas de si mesmas.
— Acho que sim, pastor. – disse ela, enquanto entrava no carro, o pastor sorriu e acenou, e ela retribuiu o gesto, depois, engatou a primeira e começou a dirigir para o hotel onde estava hospedada. Seriam longos dias, mas talvez ela descobrisse alguma coisa além de discursos de autoajuda antes de sair dali.