Purificação - Capítulo 6
Capítulo 6 – Alex:
Várias horas depois do desaparecimento das crianças…
— Marley, volta aqui garoto! Não, pra esse lado, devolve!
O gramado fazia os pés descalços de Alex deslizarem, enquanto corria através do quintal florido atrás da bolinha que seu cachorro insistia em deter para si. O cachorrinho ziquezagueava divertidamente através das mangueiras que regavam as plantas, e Laura e Lucas tentavam encurralá-lo.
Quando finalmente conseguiu deslizar para o lado sem que o cachorro o percebesse, Laura atravessou rápida o gramado, escorregando ao tentar pegar o brinquedo enquanto Lucas ria:
— HA, HA, HA! Escorregou que nem jaca! Calma aí, Alex, desse jeito eu vou acabar morrendo de falta de ar…
E ali eles ficaram deitados. Alex pulou de encontro ao Marley, mas ele fugiu entre suas mãos e continuou a rodear o quintal. Laura parecia ter se machucado:
— Ai, por favor, ajuda aqui, Marley, não, não…
Alex não havia entendido o por quê dela estar tão assustada, tentou reconfortá-la:
— Calma, Laura, tá tudo bem…
Foi quando ele acordou.
A sala estava escura e sua garganta seca e arranhada. Demorou até se adaptar ao breu em que se encontrava, com apenas uma luz tênue próximo à porta servindo de referência. Sentia seu corpo dolorido, olhou para si por um instante e percebeu que suas roupas estavam amarrotadas e sujas.
Ainda sem saber ao certo como fora parar ali, procurou pelos seus amigos nos outros cantos das paredes. À esquerda, Laura estava deitada de lado, devido ao ferimento de bala em sua perna, o sangue seco cobria sua perna branca e seu rosto era puro suor e lágrimas, os olhos arregalados e catatônicos. Ela sussurrava algo:
— Por favor, não, aqui não, mamãe, por favor…
Sua voz estava rouca, provavelmente já devia estar daquele jeito há algum tempo. Alex tentou chamá-la:
— Laura, Laura, aqui…
Ela não parecia estar presa totalmente, porém não respondeu, e Alex logo descobriu que se sentia tão cansado como ela, como se alguém segurasse seu pulmão por dentro e o arranhasse a cada lufada de ar que dava naquele local abafado. Tentou com mais força, e dessa vez a voz saiu, falhada, mas saiu:
— Laura, aqui, Laura…
Os olhos dela, arregalados e hipnotizados por algo que via do outro lado da sala (e que Alex ainda não tinha visão clara), foram acompanhando roboticamente o som até encontrar os olhos semicerrados de Alex, ainda sem entender ao certo. Foi aí que ela despertou algum juízo:
— Alex, Alex…
E veio andando de quatro na sua direção, o ferimento da bala parecia ter piorado, pois a cada engatinhada ela gemia de dor, os barulhos de correntes se arrastando acompanhavam-na durante todo o percurso, como serpentes preparadas para atacar suas vítimas com presas de ferro.
Ela estava desesperada, e assim que chegou próximo o suficiente, ajudou Alex a se recostar na parede e abraçou-o, e desatou a chorar em seus ombros, e Alex abraçou-a de volta, também estava assustado… Laura é a garota mais corajosa que eu conheço, o que ela viu pra estar desse jeito?
E ali eles ficaram por algum tempo, ela, com o rosto desabado em seu ombro, ainda choramingava:
— Alex, eles são muito maus, eles são muito maus. A gente devia ter saído daquela fazenda, o quê fomos fazer lá?
— A gente foi salvar o Marley, lembra? O nosso mascote, o nosso mascote, Laura…
Alex levantou o rosto dela com suas mãos e olhou diretamente em seus olhos, a pele dela estava pelando, foi quando Laura respondeu:
— Ah, é, tinha esquecido… mas, mesmo assim…
E, ainda gemendo e choramingando, começou a se encaminhar para a outra parte escura da sala, apenas olhando para trás e dizendo:
— Vem cá, Alex, por favor.
Alex se esforçou para se mover, seu pulso esquerdo estava atado a uma corrente, e seu corpo doía a cada movimento de músculo. Ela ajudou-o a se recompor tão bem quanto podia, os barulhos das correntes confundiam-se com os sons agudos que vinham em intervalos curtos. Será que tem ratos aqui?
Alex chegou ao centro da sala junto com ela, observando melhor, parecia uma larga sala de ferramenta. Ele procurava qualquer coisa na escuridão, mas foi Laura quem apontou a direção correta, a voz tristonha:
— Ali, Alex…
De repente, sentiu um calafrio subindo a sua espinha, sua cabeça pendeu de um lado para o outro e o mundo começou a girar, a garganta que estava seca agora emanava o cheiro de bile, a ânsia de vômito confundindo-se com o suor frio que descia de seu rosto. Os intervalos agudos eram na verdade da respiração tênue e ofegante que Marley emitia com seu focinho, seu pelo estava praticamente empapado de lama e sangue, os olhos semiabertos e de desespero, uma coisinha fofa que mal chegara ao mundo e não entendia o que estava acontecendo, mas nada disso impedia de enxergar o medo que tinha em seus olhinhos castanhos.
As patas dianteiras de Marley estavam serradas brutalmente em cortes feios e tortos, a pele dilacerada de suas patas até a altura da barriga estavam praticamente arregaçadas, mostrando a carne branca e os ossos esmigalhados em meio às fibras que serviam de alimento para as moscas que o sobrevoava. Ao correr os olhos ao redor do filhote, Alex encontrou um serrote enferrujado jogado de qualquer jeito e as patinhas torcidas do cachorro, jazidas agora no chão gelado e contraídas, mostrando a dor que o cachorrinho deve ter tido ao ter seus membros amputados a sangue frio.
Tirando forças de deus sabe onde, Alex se levantou e tentou correr em direção ao cachorro, arfando e chorando a medida que se aproximava do amiguinho. Mas na primeira vez que levantou, sua cabeça pendeu novamente e acabou caindo, ainda assim começou a se arrastar enquanto ouvia o som de Laura choramingando atrás de si.
Foi quando percebeu que a corrente não dava até lá. Ele estava tão próximo, se esticasse mais um pouco o braço, e Marley também o tinha percebido, ele dava aquela bufada carinhosa quando estava perto de um conhecido, mas também não tinha forças para se levantar. Como se um bolo estivesse em sua garganta, Alex tentou reconfortar o mascote:
— Marley, aqui garoto… – as lágrimas desciam de seu rosto misturadas com raiva e medo, sentimentos tão próximos e que evidenciavam o fracasso e a impotência de alguém que quer conversar uma última vez com um ente querido, mas não conseguia ao menos tocá-lo – Marley, tá tudo bem garoto…
O cachorrinho choramingou de volta, tinha reconhecido a sua voz, o que fazia seu coração ficar ainda mais apertado.
— Marley, garoto, eu não queria que fosse assim, você foi a coisa mais feliz que aconteceu com a gente nesse tempo. Depois do David ter partido, eu não achei que poderia se sentir irmão de alguém, foi quado o papai trouxe você pra gente, pra mim e pra mamãe, lembra?
As lágrimas simplesmente não paravam de descer, mas o cachorrinho gemia concordando, ou estava apenas em delírio pela dor.
— Você veio naquela caixa bonita que o papai insistia em levar todos os presentes, eu sabia que você tinha chegado por que nunca vi uma caixa de presente tão amassada, ha… – também não soube de onde tirou forças para lembrar aquele momento feliz, mas isso só o deixou mais triste. – mas eu não me importei, eu não achava que poderia me sentir como irmão caçula de novo, mas com você eu entendi um pouco do que o David sentia comigo, desculpa, tá garoto? Eu queria que a gente tivesse mais tempo…
Não conseguiu mais continuar, o cachorro movia os cotocos de suas patas em desespero, e Alex não aguentou mais olhar para ele, correu de volta para o ombro de Laura e desatou a chorar com ela. Laura tentou reconfortá-lo:
— O Lucas tentou ajudar ele, mas o Alex o mordeu e ele desmaiou.
— E onde ele tá?
Quase havia se esquecido do amigo. Laura continuou:
— Tá ali, próximo da porta.
Agora tinha percebido, o amigo estava com metade do pulso mordido e parecia estar se contorcendo. Ambos tentaram chamá-lo:
— Lucas, Lucas, tá acordado? A gente precisa de você.
Ele acordou, desorientado também, mas pelo menos havia acordado, também estava com medo, mas as correntes não conseguiam alcançá-los.
— Gente, tá todo mundo aí?
— Sim, sim.
— A gente tem que sair daqui… o alicate, quando o moço tava cortando o Marley, ele deixou cair, a gente precisa achar, eu acho que tá debaixo do Marley, mas ele me atacou…
— Eu não consigo alcançar, Lucas, eu e a Laura conseguimos chegar só até o cerrote, é o máximo que dá.
Recobrando o juízo, Lucas soou mais compenetrado:
— Então passa ele pra cá, eu vou ter que usar pra tirar o Marley do caminho, ele não vai se mover. Ai…
O ferimento no braço de Lucas era de dar pena. Alex e Laura estavam com medo por ele também:
— Lucas, não mexe muito o braço, toma aqui… – Laura arrancou parte da manga da sua camisa e jogou para ele – amarra bem, tá?
Alex olhou para o cachorro de novo:
— Lucas, será que a gente vai ter que…
— Desculpa, Alex, eu acho que sim, você sabe que eu…
— Não, tá tudo bem, eu confio em você, só tente fazer rápido, tá bom?
— Tá, pode deixar…
Por fim, Alex jogou o serrote para Lucas, que por sua vez removeu a cerra do suporte e empunhou-a com as duas mãos, se aproximando devagar do cachorro que agora já delirava. Marley tinha começado a rosnar, e Alex e Laura viam que Lucas estava com medo, suas mãos tremiam, mas era isso, era assim que ia terminar.
Alex enterrou o rosto no ombro de Laura, mas ela continuou olhando, precisava ser forte. Tudo aconteceu muito rápido. Lucas pulou em riste em direção ao Marley, que rosnou e balançou-se, a cerra já estava meio cega, e atravessou o pescoço do cachorro, fazendo-o choramingar exausto, Lucas sentia o peso da mão indo de lá para cá, dilacerando o pescoço do coitado do mascote, cada fibra se desmantelando à medida que ele pressionava, puxava, empurrava, trespassava, e o filhote se contorcia, gemia como um animal que desesperadamente luta pela vida. Por fim, Marley parou de respirar.
Alex tornou a chorar, e Laura, ainda triste, reconfortou-o enquanto via se Lucas estava bem. Lucas tirou a cerra e abraçou o cachorrinho, chorando:
— Desculpa garoto, eu não podia arriscar, deus, por favor, me perdoe, me perdoe.
Afastando o corpo do mascote, ele achou bem debaixo dele o alicate. Após um longo tempo respirando e engolindo o choro, ele retomou:
— A minha corrente tá enferrujada, assim como a de vocês, eu só preciso de força, se vocês se juntarem vão conseguir arrombar pelo menos uma, aqui…
O alicate veio deslizando através do chão gelado. Laura e Alex se entreolharam:
— Tá, eu primeiro Laura. Me ajuda aqui…
Apoiaram o alicate entre a última liga e a algema, mesmo que já estivesse muito enferrujada, ainda teriam extrema dificuldade (na verdade, era quase impossível), mas precisavam tentar, precisavam.
— No três, um, dois, três!
E fizeram força, não tinha arrebentado. Alex retomou:
— De novo, no três, um dois, três! Força…
Arrebentou, a respiração de alívio tomou conta do ambiente, pois não sabiam o que iriam fazer se não tivesse arrebentado, então quase sentiram alegria pela sorte estar do seu lado. Após fazer isso mais uma vez, Laura estava solta.
— Agora é você, Lucas.
Laura interveio:
— Espera, dá uma olhada pela fechadura, veja se consegue ver ou escutar alguma coisa.
Com o aviso, Alex foi verificar. Colocou o olho semicerrado próximo da fechadura, mas só viu um breu e o que parecia ser uma plantação ao lado, ficou algum tempo ouvindo, mas não encontrou qualquer sinal de vida:
— Nada, vou te ajudar agora, Lucas…
E assim, junto eles conseguiram arrebentar as ligas também. Agora que estavam livres, finalmente se abraçaram, sentindo o calor um do outro e uma estranha felicidade daqueles que se sente ao reencontrar parentes depois de décadas. Lucas disse:
— Valeu, cara, desculpa pelo Marley, ele também era meu amigo.
— Não tem problema, o ferimento da Laura tá piorando.
— Você ajuda ela, vou tentar sair e ver a onde a gente tá…
Foi Laura quem objetou:
— É muito perigoso, Lucas, devem ter pelo menos três de vigia.
— Eu não quero fugir, sei que a gente não consegue. Mas um deles tinha um celular, eu preciso achar algum telefone pra chamar ajuda, e sozinho eu consigo ir mais rápido, eu lembro da gente vindo pra cá.
— Toma cuidado, por favor…
— Tá bom.
Milagrosamente, a porta estava aberta, mas o barulho de ranger que fizera quando abriu era perturbador. Alex começou a ajudar Laura a sair:
— Quando eu libertar você, fique com as algemas.
— Me dá o alicate…
— Mas a gente…
Quando terminou de libertá-la, ela pegou a alicate e escondeu debaixo da saia:
— Eles não vão procurar aqui.
…
Depois de um tempo que pareceu eras, ouviram o barulho de passos e o abrir da porta. Duas pessoas barbadas (não dava para ver direito por causa das lanternas que apontavam em sua direção, mesmo não estando totalmente escuro) carregavam Lucas, agora todo espancado e de rosto inchado. Alex e Laura só tiveram tempo para fingir estarem algemados e dormindo de novo, mas levaram um susto ao ver de relance o rosto do amigo ensanguentado e com marcas brutais de soco. Um deles disse, a voz grave e odiosa:
— Como esse filhote de preto conseguiu sair daqui? Vocês aí, viram alguma coisa…
— Eles ainda estão dormindo… – o outro disse: – o vagabundo ia fugir e deixar até os amiguinhos, coitado. Amarre ele e tranque a porta, não vão conseguir fugir nem se estiverem soltos, e mande aquela puta da Carla ficar na varanda de olho…
A sala de repente ficou escura de novo. O rosto do amigo pingava de suor e sangue, e duas grandes bolas roxas cobriam o lugar onde antes seus olhos estavam abertos, agora ele mal conseguia abrir os olhos. Alex e Laura foram silenciosamente de encontro a ele:
— Lucas, tá me ouvindo? Você tem que ficar acordado, a gente não liga pro que eles falam, tá tudo bem.
Alex também tentou reconfortá-lo:
— A gente vai dar um jeito, a polícia já deve estar procurando a gente…
O amigo, mesmo espancado, esboçou o rastro de um sorriso:
— Consegui, gente… con… segui…
E mostrou o Nokia que escondia na cueca, e fechou os olhos.