Purificação - Prólogo
– MARLEY! Anda garoto, cadê você?
Alex começava a sentir calafrios, imaginando o companheiro preso em alguma cerca. O frio era palpável, e o vento balançava a longa plantação, a leste, fazendo as plantas dançarem como as ondas do mar. Por um momento imaginou–se afogando-se ali, tentando gritar em vão por ajuda, assim como gritava para seu companheiro.
– Alex, amanhã a gente procura. Tá ficando tarde e meu irmão não vai gostar se eu não chegar em casa antes das nove.
A voz de Lucas tampouco serviria de alguma coisa pelo visto, a pele negra do garoto estava coberta por uma película de suor, e, reparando melhor, ele também estava suando, o vento encontrando a camisa listrada, agora empapada, espancando-o com rajadas gélidas que subiam pela espinha. Mas não, poderiam procurar mais um pouco. Foi Laura quem acabou com o silêncio:
– Olha, ele pode tá voltando pra casa, quem sabe não seja ele quem esteja nos procurando?
Lucas aquiesceu, o olhar agradecido e aliviado pela tentativa dela de acabar com aquilo. Laura tinhas os cabelos tão loiros quanto o pelo de Marley, e até era bonita, mas às vezes era chata demais. A voz de Alex soou convicta enquanto parava de súbito sua bicicleta e encarava os dois:
– Droga, será que vocês se esqueceram? Marley tem seis meses, ainda é um filhote. Não precisam ficar aqui, eu procuro sozinho, Lucas, ainda tá com as lanternas? Então me dá logo, amanhã eu te devolvo…
– A gente não vai a lugar nenhum, Alex.
Lucas concordou com a Laura, mas Alex não podia acreditar.
– Então por que não me ajudam a encontrá–lo e depois a gente sai logo daqui? Ele só pode ter passado por essa estrada, é a única!
E realmente era, se tinha algo que Dawn City tinha de grande era o lago no norte da cidade, pois de resto, o que se via ao sair do centro eram mares de plantações. Duas estradas principais, ele não poderia ter ido tão longe, aquela era a mais próxima.
– Deve ter ouvido alguma coisa e se assustou. – Alex supôs, continuando: – minha mãe diz que cachorros conseguem ver espíritos, vocês acreditam?
As bicicletas que usavam tinham o guidom empinado, os pedais, já enferrujados, traçavam uma melodia cacofônica à medida que prosseguiam pela estrada deserta, em que até agora só havia passado uma caminhonete, mas eles sempre se mantinham adjacentes ao milharal. Laura riu, brincando:
– Ah, é? E mais o que, será que eles veem dragões também?
– Não sei se a professora Betty conta…
Todos caíram na gargalhada, por um momento Alex se esqueceu de que o cachorro estava perdido. O sol já se despedia no horizonte, e o lilás começava a percorrer o céu, como quem busca algo, assim como ele o fazia.
Foi então que ouviu.
Au, au, au! Pararam as bicicletas em um derrape, Alex quase pulou da sua, juntando as mãos e enchendo os pulmões com todo o ar que conseguiu encontrar. Laura e Lucas se juntaram ao chamado:
– MARLEY! Marley, garoto, aqui!
Lucas já aparentava ter perdido a paciência, a voz quase um resmungo:
– Nossa, Alex, tantos cachorros e você escolheu logo um surdo.
– Ele não é surdo!
Mas, realmente, havia algo estranho. Não deixavam ele preso, não batiam nele, Lucas e Laura tampouco o maltratavam, não, eles não fariam isso. Então, o que tinha acontecido? Por que ele estava indo ali? Para quem estava latindo? Vinha do milharal, não…
– Aqui é a fazenda dos Robbinson. – Alex deu por si pensando em voz alta, apreensivo.
Lucas e Laura concordaram, como se não houvesse nada de errado. Mas seu pai conhecia o senhor Robbinson, e ele também já o vira pessoalmente, talvez a coisa mais assustadora que vira durante muito tempo. O senhor Robbinson não gostava de crianças, muito menos de animais, e se…
– A gente tem que entrar lá! Se o senhor Robbinson ver o Marley, pode até dar um tiro nele…
– Por favor – Laura riu (mas no fundo ele sabia que ela percebera a gravidade da situação)… – o senhor Robbinson não faria isso.
– Cara, tu tá ficando maluco, isso sim…
– Vocês não viram ele! Nem meu pai gosta dele, e meu pai quase não gosta de ninguém.
– Tá bom – Lucas respondeu. – vamos fazer o seguinte, Laura, que tal você e eu irmos lá na casa e avisar pra senhora Robbinson?
– Pode ser – Laura concordou. – esqueceram, meninos? A Lúcia mora aqui, da sala do lado da nossa, é só avisarmos com antecedência antes que ele comece a bisbilhotar a casa, não vai acontecer –
Alex interrompeu de novo, perdendo a paciência:
– Lucas, você não pode ir também, e Laura, o que acha que sua mãe vai pensar se descobrir que a gente veio até quase fora da cidade? Vamos ficar de castigo uma eternidade…
– Meu pai e minha mãe não esquentam muito… – Lucas disse. – sempre saio com meu irmão pra fora da cidade de vez em quando e eles não reclamam, posso chegar lá sem problema…
– Lucas – Alex não soube ao certo como dizer aquilo, era desconcertante saber que pessoas podiam ser tão idiotas, mas, ainda assim, ele tinha que dizer: – o senhor Robbinson já é velho, e, não, você não pode ir, aquele velhote é muito racista.
Alex viu o rosto do amigo se enevoando, não podia sentir o que ele sentia, mas imaginava, e, mesmo sem dizer uma palavra, todos entenderam o que ele pretendia dizer com aquilo. Foi Laura quem retomou, após um silêncio que durou instantes, mas sepulcral:
– Escute, Lucas, a gente não é o idiota do senhor Robbinson, vamos achar o Marley e dar o fora daqui o quanto antes.
– Tá legal, então é melhor deixar as bicicletas prontas, viradas pra lá, – a mão de Lucas apontava para o sul, para o centro da cidade, que agora eram como verdadeiros blocos de montar no horizonte, tão pequenos que se colocassem um dos polegares à frente do rosto, não conseguiriam ver qualquer sinal de casas e lojas. – o Marley ainda cabe na cesta, né? Bom, as lanternas estão aqui na mochila, e a propósito, é melhor você ficar com ela, Alex, vai que o bicho se sinta atraído pelo cheiro dos brinquedos e petiscos.
– É mais fácil ele sair correndo de novo – Alex replicou. – a última vez que taquei um negócio pra ele não adiantou de nada.
– Simples! – Lucas jogou as mãos pro ar, e inclinou o corpo como os eleitores fazem quando um vizinho ou conhecido ofende seu político favorito. – é por que a porcaria da coisa que você arremessou era a minha bola de beisebol, que recebi após uma porrada de tardes de treino e a prova de que jogo bem. Ela não é pra brincar, agora guarda isso e vê se não confunde ela com a droga da bola de futebol dessa vez.
– Tá, que seja, não sei por que você traz essa bola só pra se gabar, mas a gente precisa ser rápido, tá quase de noite. Algum plano?
Lucas retomou o raciocínio antes da discussão:
– Vamos ter cautela e desligar as lanternas quando chegarmos perto, pra evitar chamar atenção. A gente tenta pegar o bicho cercando ele se diminuirmos distância, ou um de vocês atrai e bum! – fez um gesto de agarrar, assustando-os pela sua energia e continuou. – Lá vai o menino Lucas, ninguém é mais rápido que esse garoto! Pode crê… Laura, você fica aqui por que você é uma garota e eu e o Alex vamos na frente.
– Nem pensar! – o dedo dela veio em uma riste diabólica ao rosto de Lucas, fazendo–o se retrair com o susto. – é mais fácil vocês ficarem atrás, não conseguem nem diferenciar violeta do roxo, como vão saber o que é Marley e o que é milho?
Alex quase indignou–se:
– Mas é tudo a mesma cor, não dá pra entender vocês, meninas.
Mal havia terminado a frase, e Laura já estava se encaminhando para a cerca, pulando–a, e abrindo caminho através da plantação. Alex e Lucas se entreolharam, e Laura pestanejou:
– Vocês vêm ou não!?
…
A noite brilhava em uma confusão de estrelas, e a lua observava as crianças enquanto eles abriam caminho através da plantação. A sessão em que se encontravam era mais esparsa, mas, à frente, em outro campo, um longo e denso milharal assentava–se próximo a residência dos Robbinson, em cima de um pequeno morro.
Marley foi ouvido algumas vezes, eles tentaram chamá–lo, mas com o tempo, descobriram que o melhor a se fazer era pegá–lo pelo colo e dar o fora dali, o problema é chegar perto o suficiente.
– Que horas devem ser? – Alex perguntou. – minha mãe vai me matar…
– Não se preocupem, companheiros. Eu e meu irmão temos um código de conduta, eu já salvei ele de algumas encrencas, e ele tá me devendo uma. Talvez ele se irrite, mas tanto faz. Logo nossas mães vão começar a ligar umas pras outras, mas, como vocês sabem, minha mãe está em Minneapolis neste exato momento. Meu irmão vai quebrar esse galho pra gente, mas é melhor comprarmos uns lanches, na volta.
Laura e Alex expiraram o ar, deixando o peso da preocupação cair aos seus pés enquanto prosseguiam. Marley latiu mais uma vez, ele não tinha parado até então, mas, dessa vez eles tinham ouvido algo.
– Desliguem as lanternas. – Laura alertou, e eles o fizeram.
Uma, três, não, duas caminhonetes. O coração de Alex começou a acelerar. Se Marley pegasse bronca com algum dos visitantes, estava tudo acabado. Ao longe, a residência estava iluminada apenas em alguns cômodos, com feixes de luz que tremeluziam bizarramente.
As coisas começaram a piorar quando pararam por um momento, e Laura observou:
– O que é aquilo? Tem pessoas na casa?
Alex olhou com mais atenção, era uma noite clara, e ora e meia vultos passavam pelas salas mal iluminadas, quem são eles? Os padrões repetiam–se com relação à decorrência em que se movimentavam. A sala debaixo, o segundo andar, de novo o segundo dar, e novamente a sala debaixo.
Laura deu por si pensando alto:
– O que eles estão fazendo?
Foi Lucas quem respondeu:
– Tô pouco me lixando, mas uma coisa é certa, não temos muito tempo, e o Marley tá quase na casa.
A respiração deles foi ficando ofegante à medida que prosseguiam, o milharal, apesar de incômodo e extenso, servia para camuflá–los, e o cachorro também. Do jeito que Marley era, provavelmente faria xixi na roda de alguma caminhonete.
– Eles têm cachorros?
Laura perguntou como quem sabe a resposta mas espera confirmação. E Alex respondeu:
– Sim, uma São Bernardo, mas já é de idade e fica dentro de casa a maior parte do tempo, não vai ser um problema pra gente.
Quando o milharal foi ficando esparso novamente, Alex começou a se sentir mais apreensivo, a mão suando e alguns calafrios acompanhavam os pensamentos dele enquanto seguiam o cachorro, tentando ganhar tempo e diminuir a distância entre eles e o animal.
Ele (Marley) estava quase fora do milharal. Alex mostrou o biscoito que trazia consigo e tentou dar um grito abafado, para não chamar atenção desnecessária:
– Aqui! Marley, aqui!
O Golden Retriver olhou divertidamente para os biscoitos, virou o pescoço para o quintal, e depois de novo para Alex. Laura e Lucas tentaram ajudar:
– Aqui, garoto, isso, vem.
Lucas começou a fazer os barulhos estranhos e engraçados de sempre, fazendo o cachorro virar o focinho de um lado para o outro, tão intrigado quantos eles próprios:
– Hmm, que biscoito bom é esse aqui? Uau.
Lucas pegou um pedaço e mordeu, a careta de nojo quase fez os dois caírem na risada, mas ele disfarçou bem, a boca ainda cheia de farelos, a voz enfarofada:
– Nossa, que gostoso.
Marley finalmente começava a se aproximar, Alex agarraria ele pela coleira assim que pegasse o biscoito e dariam o fora dali, assim ele poderia comer um hambúrguer na volta, tomar um banho na casa de Lucas e jogar videogame.
Então a porta da casa se abriu.
Alex e Laura observavam, incrédulos, o cachorro desistindo de tudo o que eles haviam oferecido e indo para o celeiro, em campo aberto e tudo. Um arrepio percorreu os braços e pescoço de Alex, será que ainda haviam pessoas próximas a caminhonete? Ele instintivamente começou a sair do milharal para pegar o cachorro, que se dane se eles me verem, mas Lucas o puxou.
– Tá maluco?
– O que foi? – Alex não conseguia acreditar, era agora ou nunca, e ele estava perdendo tempo.
– Não tá vendo? – Lucas segurou seu queixo e o virou na direção da casa, Laura também havia percebido.
Por um momento, os braços de todos perderam as forças e o único som que podiam ouvir era o da própria respiração confundindo–se com a brisa que balançava a plantação.
Afinal, o que era aquilo?
Silhuetas escuras saíam da casa, as caminhonetes estavam paradas, mas isso não os surpreendeu. Todos eles estavam com longas túnicas e encapuzados, trazendo consigo velas que tremeluziam junto às passadas deformadas que davam, como bebês em seus primeiros passos, mas que de algum modo, soava estranhamente harmônico. Marley encaminhava–se para o celeiro, de encontro a fileira de pessoas que andavam.
O celeiro. Agora que havia reparado, ao redor dele haviam tochas e um longo caminho branco descia do morro onde a passeata macabra começava, terminando ali, onde não sabiam o que estava a espreita. Será que era verdade? Cachorros realmente veem espíritos? Não, aquilo era pior, era real.
– Eu preciso pegar o Marley, olha só pra eles.
A voz de Laura pela primeira vez soou como uma criança:
– Olha, eu não sei o que tá acontecendo aqui, e não quero saber. É melhor a gente sair daqui o quanto antes.
Lucas e Alex concordaram, mas Alex acrescentou:
– Escutem, tô com vocês, vamos dar o fora daqui, mas eu preciso pegar o Marley. Fiquem preparados para…
– Ei! – Lucas advertiu: – se der ruim, pra onde vamos? Eles têm caminhonetes, já estamos aqui há meia hora. Não vai dar pra escapar.
Laura perguntou:
– Tá com as lanternas? Ótimo, eu tenho uma ideia, vamos nos separar e deixar as lanternas preparadas, caso aconteça alguma coisa, nós usamos elas como distração.
– Mas só temos três.
Alex havia entendido.
– Lucas, a ideia da Laura é boa, vou dobrar alguns milhos pra confundir eles, se eu precisar fugir, passo por um desses caminhos e deixo a lanterna dando sopa, ainda ligada, assim ganhamos algum tempo enquanto corremos no breu.
– Tá, tá, ai, droga, por que a gente tá fazendo isso?
Parece que ninguém ousou dar a resposta, afinal, tinham medo do que poderia vir em seguida. Mas não tinham alternativa, Alex ficou com a mochila enquanto a passeata descia o morro, formas magras e gordas, altas e baixas, atléticas, esqueléticas, mas todas em uma marcha estranhamente síncrona. Ele tinha que atravessar para outra parte do milharal, onde uma estrada de terra batida dava intervalo às seções de plantio.
A brisa bateu contra o peito enquanto ele investia para o outro lado, tentando fazer o menor barulho possível ao passar pela trilha aberta. Começou a dobrar os milhos em alguns caminhos desconexos e observou atentamente a passeata que chegava ao celeiro. Ótimo, Marley não havia latido, mas também foi para a lateral do enorme galpão.
Um frio percorreu sua espinha ao ouvir do lado de dentro uma voz sepulcral, que viajava através das paredes em um grito horrendo, machucando o ouvido de Alex e dando um nó em sua garganta, que ficou seca, como se por algum momento ela (a voz) estivesse se direcionando a ele. Marley também havia percebido, mas o cachorro não latia, ao invés disso, ele começou a choramingar.
O que Marley estava vendo e que o deixava desse jeito? Nem as máscaras de Halloween o assustavam, ainda assim, ele não se movia, apenas indo de um lado para o outro como se estivesse procurando algo que tem medo de encontrar. A passeata entoava um cântico que assemelhava–se a muitas coisas, menos a inglês, as vozes acentuadas e dissonantes. Marley ameaçou ir em direção ao grupo. Agora ou nunca.
Alex saiu às pressas do milharal, correndo quase agachado enquanto o cachorro começava a andar, mas quando ele se aproximou, o cão ficou novamente acuado, como se tivesse acabado de envelhecer, e continuou choramingando no colo dele. Alex tentou reconfortá-lo aos sussurros:
– Tá, tudo bem garoto, a gente vai pra casa agora.
As tábuas laterais possuíam frestas que permitiam observar o interior do celeiro. Um cheiro forte de fumaça e sal percorreu suas narinas, e, apesar de bem iluminado, as luzes amarelas só contrastavam ainda mais aquele ambiente desconfortável. Alex permitiu–se olhar através da fresta, sem se aproximar da parede, quase no milharal, apenas o pescoço virou para encarar o que acontecia ali dentro enquanto voltava para a plantação.
Durou um instante, apenas um segundo, mas para Alex, foi a eternidade mais nítida, e pela primeira vez, ele tremia de medo, perdendo o peso das pernas e das mãos, o frio da noite dando–lhe calafrios, um bolo prendendo sua garganta de uma forma que mesmo se gritasse por ajuda, não saberia dizer quem poderia ajudá–lo a esquecer aquilo.
Pessoas que ele nunca vira antes se reuniam em um círculo, ao centro dele, algumas outras, nuas, se reuniam, enfiando–se umas nas outras, gemendo em uma luxúria que estava longe de qualquer prazer, pois o que quer estivessem fazendo ali, era tudo, menos sensual. Seus corpos enfiavam–se uns nos outros e pareciam gostar, mas, ao mesmo tempo, choravam, lamuriando–se enquanto eram banhadas pelo sangue que escorria de uma carcaça de porco presa ao teto. O cântico feminino de uma velha caquética parecia agir como um maestro, e o coro que observava à orgia repulsiva também participava com voz arranhada e líquidos despejados, finalizando a conjectura lasciva e invertebrada do ambiente. E então, eles abriram espaço, e, não… não era possível… Lúcia?
Já tinha visto o bastante, começou a correr de volta ao milharal, as imagens ainda vivas em sua mente como um pesadelo que nunca poderia ser ao menos confrontado, aquilo não era um sonho, ele tinha visto.
Mas o que Marley queria ali? Sua mente estava muito confusa, como se imagens e ideias se misturassem apenas para deixar as coisas mais sombrias. Uma imensa quantidade de corvos estava pousada no telhado, agora ele percebia, como uma mortalha de moscas prestes a dilacerar as sobras do que faziam ali dentro.
Enquanto corria, conseguia ver Lucas e Laura espreitando do outro lado da trilha e apenas debandou em direção a eles. Precisava chegar o quanto antes, não só por que agora tinha medo de ficar sozinho, como temia pela vida deles, será que iriam acreditar? Mas, enquanto estava no meio da estrada, uma caminhonete parou na frente dele, não tinha ouvido o barulho do motor por conta do coro que ainda parecia vivo em sua mente, e os faróis estavam desligados. Antes que Alex pudesse reconhecer quem dirigia, uma voz de homem soou:
– Ei, garoto, pare aí.
Ele não parou, Marley ameaçou latir, mas Alex foi rápido, entrou no milharal e quando deu por perceber, Lucas e Laura já estavam na frente preparando o caminho. A voz do homem surgiu de trás, se prestasse atenção, ele conseguiria ouvir a respiração quase em seu pescoço, sentia dedos gordos tentando agarrar o pano de sua camisa, mas ele não pararia.
Após ganhar algum tempo, chegou perto do local de distração, ligou a lanterna que carregava e deixou ali. O homem ficou em silêncio durante um tempo, praguejando, até que tomou o caminho certo, parecia falar com um rádio alguma coisa, ele não ouviu direito, mas sabia que além de ter ganhado tempo, ganhara outra coisa. Mais deles…
A floresta, tinham que ir para o bosque oeste, era a única forma de escapar. As bicicletas não conseguiriam competir com os veículos. Alex usou a outra lanterna para ganhar tempo e aproximar–se deles com medo de que se distanciassem muito, o grito abafado:
– Laura, Lucas, pro outro lado, esqueçam as bicicletas!
– Tá maluco, e como vamos fugir?
– O cara falou no rádio.
Tiveram que parar para recuperar o fôlego, intercalando com frases curtas, cada respiração fazia o pulmão de Alex doer, e correr com Marley em seu colo não era nada fácil.
– Eles devem… usar as caminhonetes… não tem como competir… vamos pelos bosques…
Não entenderam ao certo o que tinha acontecido, mas enquanto falavam ouviram um som alto e estridente, Marley tomou um susto, debatendo–se no colo de Alex, e eles começaram a correr, mas…
– Ai, por favor, me ajudem. Mamãe…
Lucas e Alex pararam, Laura estava deitada no chão com a mão segurando a perna direita, as lágrimas descendo pelo rosto e os olhos pedindo por socorro enquanto o homem se aproximava. Como o desgraçado viu a gente no breu? Lucas e Alex se entreolharam, mas não podiam perder tempo.
Alex rapidamente pegou Marley e prendeu a última lanterna na coleira dele. Pegou a maldita bola de beisebol (foi a primeira coisa que viu) do Lucas da mochila e jogou em direção a estrada, dizendo:
– Pega, garoto!
E ele foi, como um verdadeiro farol ambulante em um mar de milhos. Alex e Lucas se apressaram em chegar perto de Laura.
– Rápido – Lucas disse. – vai pro lado, ele tá ali atrás…
E foram. Laura não conseguia parar de chorar, então Lucas abafou a boca dela com a mão. Alex pediu silêncio enquanto a sombra passava sobre eles, parando no exato ponto onde estavam escondidos, se o homem olhasse para baixo, estaria acabado. Ainda não conseguiam observá–lo com clareza, mas sentiam a ira em sua respiração, no modo como segurava a arma. O homem virou–se para o lado onde estavam. Eles se entreolharam, Alex segurou firme a mão do amigo, e Laura também, enquanto os olhos marejados observavam o homem. Então, ele achou a luz, passando despercebido, indo de encontro a Marley.
Alex e Lucas viram a perna de Laura, um tiro de raspão. Precisavam sair dali o quanto antes, mas, ao levantarem e andarem por pouco tempo, a voz retornou e o homem também. Laura estava apavorada.
– Por favor, não me deixem aqui.
Laura ainda chorava. O medo em sua voz dava pena. Lucas respondeu:
– A gente não vai te deixar.
Alex disse:
– Ele só viu a mim. Lucas, pega a Laura e se escondam, eu vou distraí–lo, vai direto pra delegacia e não pega o caminho mais óbvio.
Lucas e Laura já iam saindo quando o homem voltou ao seu encontro, era inevitável, Alex poderia se esconder, mas o homem alcançaria os amigos. Com o coração quase saltando da boca, o menino deu as caras:
– Por favor, não me machuque, eu só queria pegar o meu cachorro de volta.
A arma ainda estava apontada na direção dele, a voz soou como se rogasse uma praga:
– O meu pessoal encontrou as bicicletas, seus amigos, se eles não derem a cara agora eu estouro seus miolos.
Alex nunca tinha vivido isso, por que ele estava com tanta raiva° Apenas desatou a chorar e implorar.
– Por favor não, não moço, eu juro que não conto nada pro papai e pra mamãe, por favor…
A arma foi engatilhada, enquanto Alex soluçava sem esperanças. O cano gelado do revólver encostou em sua testa, mas antes que puxasse o gatilho, Lucas e Laura apareceram:
– Tudo bem, por favor, senhor, nossa amiga está ferida…
Alex, Laura e Lucas não se importariam se ficassem de castigo por anos, só queriam voltar para casa e abraçar seus parentes, eles começaram a choramingar, mas o homem os calou:
– Ótimo. Não precisam chorar, a gente cuida de vocês…