Renascidos - Capítulo 1
Minha mãe, Amélia, veio me ver assim que minha terceira aula acabou. A minha faculdade, a Universidade Estrela, ficava bem na região alta da cidade principal, de nome Santa Cecília. Assim que eu saí por uma das maiores entradas para o edifício central, eu a vi ao longe, sentada em um banco na prala. Vestia roupas de frio por causa do clima bem ruim que se manteve pelos últimos dias. A mínima foi de apenas dois graus na última noite, espantando até a mim, um amante de frio.
— Hiro, nós vamos passar no mercado, tudo bem? – ela perguntou sorrindo depois de me dar um longo abraço, como sempre fazia. Ela sempre me chamou de Hiro, mesmo sendo ela que escolheu meu primeiro nome como Lukas.
— Sem problema nenhum, mãe – eu dei o braço para ela segurar. Nossa diferença de altura era um pouco grande, comigo tendo um metro e setenta e sete e ela tendo vinte centímetros a menos.
Minha família sempre foi muito feliz, mesmo em tempos caóticos. Meus pais se conheceram logo que os países se reformularam. Minha mãe é japonesa e meu pai é brasileiro, embora viesse de uma família ingrata aos costumes do país antes de sua dissolução.
Meu pai, Antônio, é um policial dedicado que sempre fez de tudo para bancar uma vida boa junto com minha mãe. Diferente dele, ela seguiu carreira como jornalista, mas se aproximou muito da área criminal quando conheceu meu pai. Juntos, eles me tiveram e depois mais duas meninas, gêmeas. Minhas irmãs são Hikari e Lucy e são três anos mais novas que eu, com dezessete anos cada.
Meu celular vibrou no bolso.
— Licença um segundinho – pesquei o aparelho e fui checar quem era. Abri um sorriso antes de responder à mensagem.
— É a Helena de novo, né? – minha mãe apontou – o namoro parece estar muito bom.
— Vou ver ela quando formos no mercado, sem problemas – disse sorrindo e guardei o celular, tinha o deixado no silencioso. Um detalhe importante é de ela ser filha dos donos do mercado local e por isso eu a via diariamente.
— Isso que é um bom namorado, hein? – disse rindo.
Fiquei envergonhado. Estava de fato muito legal. Eu conheço Helena desde pequeno, éramos amigos de infância, mas nos aproximamos muito nos últimos anos de colégio. Ela não mora longe de mim e sempre nos trombávamos em lugares aleatórios, como se alguém tivesse nos induzindo a ficar juntos.
Ela era divertida e empolgada, sempre me apoiando em tudo e me fazendo estar em movimento. Seus longos cabelos pretos e os olhos verdes chamam a atenção de qualquer um e me surpreendia ela ter se apaixonado por mim.
Mamãe e eu descemos a rua do centro da cidade e paramos no estacionamento onde ela tinha deixado o carro. Como era um costume de família, o filho que deveria pagar o estacionamento ou qualquer besteira que comêssemos no caminho. Como eu tinha um bom trabalho no museu da universidade, eu podia facilmente fazer esse tipo de coisa, mas queria ver como minhas irmãs iriam se virar no futuro.
O caminho de carro foi rápido. Paramos dentro do condomínio Estrela, lugar em que meu pai tem um terreno desde antes do meu nascimento, e onde moramos atualmente. Assim que minha mãe estacionou, fui ao porta-malas e peguei suas sacolas de compra, mas logo em seguida tive um arrepio na espinha.
— Ué…
— Aconteceu algo, filho?
Engoli em seco.
— Não, mãe, nada.
Ela desconfiou de algo, mas apenas suspirou. Meu pai não estava em casa e nem minhas irmãs, que ainda estavam na escola. Eu vi pelas luzes apagadas na casa.
Assim que saímos pela portaria e cumprimentamos o velho Zé, o porteiro do lugar, eu vi o mercadinho do Seu Jeferson aberto, mas estranhamente vazio, algo de se estranhar.
Em passos lentos, assim que entramos na loja, fui até o caixa para pegar uma cesta de compras, mas não tinha ninguém ali no momento. Eu achei ainda mais estranho e olhei para minha mãe.
— Liga pro pai, a polícia tem que vir pra cá – disse confiante de que algo estava fora do lugar ali.
Meu coração bateu forte e me lembrei do celular. Estava para voltar pra entrada quando eu decidi dar uma olhada nas mensagens. Meu coração congelou com uma única mensagem.
“Socorro, vão matar a gente”
Ouvimos um grito vindo lá do fundo, abafado, e eu não tive dúvidas. Atravessei um corredor do mercado, o de doces, e cheguei no acesso para o açougue. A sensação de que algo estava errado aumentou dentro de mim. Helena trabalhava na administração no fundo do mercado, junto com o seu pai.
Eu olhei para o açougue e vi a escada que levava para cima. As luzes estavam acesas. Minha mãe ainda estava visível quando o piso de lajota tremelicou. Passos pesados. Muito pesados. Eu automaticamente entrei atrás de uma das geladeiras baixas, daquelas que colocam pão de queijo e outros petiscos. Fiz sinal para que minha mãe saísse fora e ela o fez, chamando ajuda.
Dando a volta no refrigerador, um enorme homem caminhou. Ele era realmente enorme, mas não só de altura como de músculo. Seus braços eram quase a largura dos meus ombros. Seu rosto desfigurado por cicatrizes me assuntou um pouco, mas o que me intimidou de uma vez só foram os seus olhos. Eram afiados como os de uma besta.
Aquele cara não era um ser humano comum. Lembro de um dos programas favoritos do meu pai, que falava sobre a história desde a divisão do mundo. O nome do programa era Desvendando o Renascimento, apresentando por Rômulo Amêndoa, um especialista no assunto que está nos seus setenta anos de idade, mas segue na ativa. Era realmente como ele disse em um capítulo sobre os Renascidos.
O que difere um humano comum de um que renasceu são os seus olhos e suas habilidades inumanas. Meu coração bateu forte quando ele se moveu mais uma vez, se apoiando em uma das estantes de mercadorias, que era mais baixa que ele. Olhando daquele ângulo, ele deveria ter facilmente dois metros e meio de altura.
Ouvi pessoas discutindo lá dentro do escritório e tenho certeza que Helena estava falando, tentando negociar a saída dos funcionários. Tentei me acalmar e me esgueirei por dentro do açougue. Estava tudo certo até que eu acabei escorregando em algo. Meu corpo foi de encontro ao piso, mas eu me parei de bruços. Respirando fundo, eu fiquei pronto para disparar para a saída dos fundos, mas congelei quando vi no que eu escorreguei.
Era uma das funcionárias do mercado, Célia. Seu corpo estava praticamente esmagado, com a exceção da cabeça. O sangue ao seu redor se acumulou como uma poça e eu estava agora ensopado. Meu estado mental ficou instável em instantes e foi uma luta absurda para me manter são, porém não ocorreu a tempo. Quando olhei para trás, lá estava ele. Seu olhar afiado como os de um tigre, mas tão inertes como os de um tubarão.
Seu braço enorme foi projetado para dentro do açougue com o intuito de me pegar. Eu tinha certeza de que iria morrer se ele me alcançasse, por isso eu lutei o máximo possível para me afastar. Por sorte, ele pescou a perna de Célia com o polegar e o indicador, puxando-a com tudo e a golpeando na estante.
O monstro demorou um tempo para perceber que o corpo arremessado não era o meu.
Esse foi o tempo que eu precisei, decidi ir para os fundos. Querendo ou não, os Renascidos não deveriam existir fora da cidade deles e um estar tão longe era um mau sinal, além dele ter um cúmplice que provavelmente estava rendendo os reféns lá em cima. Assim que eu toquei a porta, ouvi um tiro.
Eu olhei para trás e percebi que o gigantão não pôde passar para dentro do açougue e ele me encarava. Não tive tempo para raciocinar, o tiro veio de cima, mas ele atraiu alguém que eu não queria. Minha mãe.
Eu a vi entrando correndo, o que chamou a atenção da monstruosidade que um dia foi um ser humano. Ele foi correndo na direção da minha mãe como se fosse um lobo buscando a sua presa, porém não foi uma qualquer. Sem sombra de dúvidas, ao ver minha mãe se escondendo entre as estantes, ele ficou ainda mais furioso e excitado com a situação de caça e tentou pegá-la ao empurrar as estantes.
Corri como um louco quando a vi em perigo. De alguma forma, meu esforço rendeu o suficiente para que a ajudasse antes que a sessão de cereais a esmagasse. Ela tinha só algumas escoriações quando eu a peguei nos braços.
— Me deixe – ela disse, mas isso só serviu de incentivo para que eu a tirasse dali.
A levei para trás da sessão de geladeiras e a aninhei atrás da parte dos sorvetes. Ela não conseguia aguentar a dor como eu, por isso preferi que eu enfrentasse o problema até que a ajuda aparecesse.
Sirenes. Eu sorri, já que estava tudo em ordem. Se eu ficasse no esconderijo, logo o renascido nos encontraria e faria algo pior conosco do que com a coitada da Célia. Por isso sai do refúgio e corri, chamando a atenção dele para o outro corredor. Ele veio com tudo pisando bem forte. Parecia estar em agonia constante por algum motivo e pensava como um animal, usando quase que totalmente os seus instintos para afugentar seu alvo. O pior era que seu alvo no caso era eu mesmo.
Eu pratiquei bastante com meu pai a arte da corrida e também sabia um pouco de parkour por causa do meu primo Victor, não que eu pudesse fazer algo absurdo ali, já que sou uma pessoa comum. Ele me seguiu empurrando a estantes e eu dei a volta mais rápido do que ele.
Quando completei o retorno, passei a empurrar a estante com toda a força que eu tinha. Ela foi para cima dele e o prensou. Nessa hora, escutei alguém gritar o meu nome. Olhei para cima e sorri quando vi Helena bem, lá em cima. Ela estava suja de sangue e me perguntei o porquê, mas esse deslize custaria caro.
Uma mão veio com tudo e me atingiu. Foi um empurrão que me arrancou do chão e me fez voar por instantes que pareceram um século. Até que eu caí.
Um chiado longo e incômodo começou.
O que tinha acontecido? Uma pancada?
Lembro do que comi no café da manhã, um omelete que meu pai, Antônio, fez antes de sair para patrulhar. É verdade, ele é um policial, né? Sempre foi muito ocupado, mas me amou muito.
Também me recordo que vi minha namorada, Helena, hoje mais cedo. Passamos um tempo juntos. Eu sempre a amei, desde pequeno e gostava muito de ficar perto dela apenas conversando e deixando as horas passarem.
Onde estou? Por que tá tudo escuro?
Comecei a cair vagarosamente… mais memórias.
Estive fazendo coisas para a faculdade? Sim, passei o dia entregando trabalhos para o meu professor de História da Arte. É verdade, faltou um.
E finalmente voltei com minha mãe, Amélia, a pé para casa, no condomínio Estrela. Paramos no mercado em frente de casa e saímos como sempre fazíamos todos os dias. Só que dessa vez. Lembro ainda, em meio ao torpor. Dois homens roubaram minha mãe e eu tentei impedir. Um deles tinha uma daquelas habilidades que vi na televisão.
Sim, um Renascido! Ele me atacou com as mãos nuas e fui empurrado para longe. Eles escaparam sem levar o que queriam já que a polícia veio rápido. O rosto do cara, o grandão que me empurrou, estava cheio de cicatrizes, não vou me esquecer dele nem a pau. Maldito.
Mas por que está tão frio? Meu pescoço… Ah, ele quebrou. Entendi. Foi na hora que caí no chão, o mundo girou por instantes e do nada estacou, faz sentido. Por que estou tão calmo?
Então quer dizer que morri? Não, ainda me sinto vivo… Mas é como se estivesse caindo em escuridão constantemente.
— Jovem — ouvi alguém me chamando lá de dentro da escuridão.
Desde a pancada, não conseguia ouvir nada além de um chiado. Vi de relance minha mãe tentando me socorrer sem poder me erguer.
Minha voz não saía, mas não por causa do pescoço, na verdade estava completamente mergulhado naquela treva sem fim.
— Está tudo bem, você tem um propósito…
Minha memória começou a se embaralhar e eu não entendi muito bem. Um objeto? Ah, sim. Não lembro o que escolhi, mas provavelmente foi algo que meu pai me deu. Essa lembrança se foi junto com o calor dos seres humanos, tendo o lugar tomado pelo abismo sem fim.
— Volte.
As memórias vieram em uma enxurrada e revi todo o meu percurso até os meus vinte anos de vida se completarem em uma morte terrível.
Thump.
Meu coração voltou a bater.