Renascidos - Capítulo 2
Thump.
Meu coração.
Em uma rajada, senti o sangue bombear. As minhas sensações voltaram como um turbilhão e minha pele em contato com a mesa de metal estremeceu. Um calafrio? Tinha acabado de receber de volta a minha consciência e não sabia se era algo bom.
Liberei o mais profundo grito de horror que poderia dar e meu impulso foi tocar meu pescoço. Sem lesões? Mas que caralhos? Sentei-me naquela maca de aço e percebi que estava cercado de outros corpos. Só de respirar, eu sentia meus pulmões inflando com dificuldades, como quem pergunta: Ué, voltamos?
— Por que estou pelado? — disse. Tomei susto com minha própria voz, afinal não é todo dia que quebram o seu pescoço e você volta em um estado normal.
Levantei-me com calma, sentia o corpo latejando como se algo tivesse mudado dentro de mim, mas não sabia ao certo. Olhando em volta, ficou claro que eu estava em um necrotério, na sala de espera. É um lugar em que eles deixam os cadáveres por um período de 24 horas por causa do Renascimento, já que ocorre dentro desse período de tempo.
Espera. Renascimento? Isso quer dizer que…
Olhei fixamente para as minhas mãos. Fui correndo até o banheiro dos funcionários e abri a porta com fúria. Me vi no espelho, mas nada parecia ter mudado com exceção das minhas pupilas que atingiram uma tonalidade alaranjada. Meus cabelos continuavam castanhos e nenhum traço do meu rosto mudou.
Tudo isso quer dizer que eu me tornei um daqueles Renascidos, né? Não, isso só podia ser um pesadelo. Me belisquei com força, mas de fato não era um sonho. Praguejei enquanto lavava o meu rosto na pia e percebi algo estranho ao meu redor. Era uma espécie de película que flutuava ao redor de mim, mas não parecia tangível.
Passos começaram a ecoar de fora do corredor, estavam abafados pela porta da sala estar fechada, mas eu os escutei muito bem, a tempo de apagar a luz e usar uma toalha para cobrir minhas partes íntimas. Assim que saí do banheiro, dei de cara com um dos funcionários do local, mas que não aparentava ser qualquer um.
— Quem está… — escutei ele dizendo de longe, até me perceber — Oh, meu Deus.
Um dos agentes do estabelecimento acabou de entrar na sala. Estava vestido com um jaleco branco comprido e tinha luvas que cheiravam a álcool. Era um homem de pelo menos quarenta anos com pele escura e nenhum cabelo, fora os faciais, ele se espantou ao me ver de pé.
— Mas já se passou meia hora… — ele disse, coçando a barba — Bem, pouco importa.
Ele apertou um botão e um alarme soou uma única vez. Em seguida, olhou em meus olhos.
– Você vai me contar tudo que aconteceu.
E sorriu, me lembrando uma raposa. Eu já tinha ouvido falar dele, mas era uma lembrança muito distante agora. Eu decidi colaborar pelo menos por agora.
—
— Não vai nem me perguntar quem eu sou? — ele sorriu, entretido com minha face de confusão.
— Não precisa, sei que trabalha aqui — eu tinha outras coisas na cabeça — Pode me arranjar algo que eu possa vestir?
— Está preocupado com suas roupas? — ele suspirou — Tudo bem.
Ele buscou algumas vestes, mas tudo que achou foi uma muda de roupas de algum outro defunto que já não precisa delas. Bem, eu as vesti por causa do frio, já que o território Alfa esfria muito nessa época do ano. O homem que parecia mais um cientista do que um funcionário de necrotério me pediu para que eu sentasse e fez algumas perguntas básicas para testar a minha memória.
— Você sente alguma mudança?
— Não, qual o seu nome?
— Olha só, temos um curioso — ele pausou — Me chame de Doutor Hugo, sou o responsável por esse estabelecimento.
— Pelo necrotério?
— Não necessariamente, você vai entender melhor depois — ouvimos passos e as portas da sala se abriram novamente — Como você é um Renascido, precisamos te testar e levar para o registro na cidade Regular.
Era muita informação para minha cabeça naquele momento, mas uma coisa era certa: nunca mais poderia ver meus entes queridos enquanto não tivesse a autorização para sair da cidade especial. Decidi não lutar contra eles, mas sim aceitar o meu destino com calma. Fazer o quê? Logo depois dele terminar de falar, as portas que abriram revelaram quatro soldados e uma mulher também vestida como cientista. Já estava começando a duvidar que aquilo era realmente um necrotério.
— Qual o seu nome, jovem? – me perguntou sem parar de me olhar nos olhos.
— Lukas Hiro.
— Ah, o filho do policial – ele deu uma breve risada sem graça – Quem diria que seria vocês, alguém envolvido com a polícia, a renascer?
Não fiz questão de responder aquela tentativa de me provocar e apenas fiquei de frente para os quatro soldados. Eles usavam armaduras pretas com o logo do Governo Gênesis, dono do território Alfa. Fiquei surpreso já que em nenhum momento eles apontaram a arma para mim, o que significava que eu não era uma ameaça o suficiente.
Eles me instruíram a acompanhá-los e eu o fiz sem resistir em momento algum. Sabia que meu conhecimento como estudante universitário não faria nenhuma diferença, mesmo tendo crescido em uma casa que nos forçava a praticar artes marciais. Eu e meus irmãos sempre fomos bem humildes enquanto aprendíamos a lutar, mas eu ainda acho que não era o melhor dos três.
Eu fui parar em outra sala. Não era difícil de perceber que os cadáveres eram transportados para aquele lugar para permanecer na espera. De fato, era um lugar muito mais bem cuidado que um necrotério comum, com sistemas de refrigeramento vinte e quatro horas por dia e uma equipe de segurança muito bem treinada e distribuída pelo lugar.
A sala tinha apenas uma cama e uma cadeira quando entrei. Me pediram para sentar-me na cama e esperar até que trouxessem os equipamentos.
— Sente algum desconforto? – perguntou Hugo.
— Por enquanto nada.
Ninguém foi abertamente mal comigo até aquele momento, por isso eu colaborei com tudo. Exames de sangue, testes físicos e um exame psicológico curto que duraram cerca de duas horas para acontecer em sequência. Eu mal sabia o horário, já que não havia relógios e nenhum deles carregava celulares lá dentro.
Mas uma coisa é certa: o tempo foi passando, mesmo que devagar. Um dos seguranças até trouxe algo para eu comer, uma sopa de legumes que estava muito boa. E finalmente um momento importante chegou. A doutora Carlile, a responsável pelo departamento de testes, entrou sem nenhum acompanhante, ela me acordou de um cochilo que eu tirei.
— Iremos testar qual é o seu poder e a magnitude dele – Ela foi curta e grossa – Estenda o braço.
Obedeci, afinal a mulher tinha sido simpática comigo o tempo todo. Ela puxou de um dos bolsos do jaleco uma injeção e aplicou no meu braço direito sem demoras. Não senti nada a princípio, apenas um formigamento básico.
— Agora é esperar, boa sorte – disse, saindo da sala – Estaremos assistindo de fora, tome cuidado com o seu corpo.
Quando me deixaram sozinho na sala, eu ouvi outra vez o chiado.
O mundo ao redor começou aos poucos a se distorcer. Uma voz começou a soar dentro dos meus ouvidos, incompreensível a priori, mas eu a conhecia. Era a voz que me encontrou nas profundezas do abismo, eu sabia disso.
“Você controla”
A voz me pegou de supetão quando eu a compreendi. Meu coração bateu mais rápido, meus olhos dilataram um pouco e meus músculos tensionaram de leve. Finalmente eu decidi falar.
— Eu controlo? O que?
Assim que eu verbalizei, aquela película que me envolvia mais cedo se expandiu ao meu redor. Uma ardência tomou meus olhos e pude notar que eles brilhavam forte o bastante para que eu enxergasse a luz emitida por eles, como uma lanterna.
Não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas aquela sala parecia estimular aquele campo de força ao meu redor. Pequenos objetos como canetas e até mesmo os papéis flutuaram ao meu redor. O botão meio solto da camisa que eu vestia se soltou e foi acompanhar os outros no ar.
— Que porra é essa?
Minha mente foi fundo na escuridão dos meus poderes. Eu lembrei do inesquecível e do inominável por instantes e logo voltei a esquecer. O campo de força se estendeu ao seu limite e isso doeu em mim. Era como se fosse parte do meu corpo.
Tentei mover os objetos para testar o que podia fazer e era possível movê-los com facilidade como se várias mãos invisíveis saíssem do meu corpo e manejassem o que eu queria segurar. E quando tentei deformar o campo que eu senti o desgaste total. Meus olhos pararam de brilhar.
Saindo do meu torpor, os objetos começaram a tremer e logo caíram. A porta se abriu e meu corpo fraquejou. Foi por causa do poder? Com certeza. Me sentei na cadeira e a minha pressão baixou tanto que escutei um dos cientistas gritar:
— Tragam medicações, ele teve uma reação! – a voz dele estava longe. Ah, era o Doutor Hugo.
Minha consciência passeou bastante até que eu abrisse os olhos no mesmo lugar. Um gosto amargo dominava o interior da minha boca. Eu me ajeitei na cadeira, sabia que algo bem ruim tinha acontecido dentro do meu corpo e as dores musculares que eu estava tendo não eram brincadeira. Do nada, pareceu que eu corri uma maratona sem parar.
— Você desmaiou – disse Carlile que estava do lado de fora assistindo – Parece que seu corpo realmente não tem afinidade com sua habilidade.
— Que azar.
Depois de rirmos, ela passou um tempo me explicando o que aconteceu e como eu fui avaliado. Ficou na cara que eu não teria uma qualificação alta, depois de alguns pequenos testes depois, sem me cansar. Eu não conseguiria manipular objetos com um peso acima de três quilos e que estivesse fora do campo de força que eu mantenho constantemente ao meu redor.
— Bem, é o suficiente para dizer que sua classificação é baixa, mas não se preocupe, descanse um pouco.
Decidi perguntar o que eu mais queria.
— Eu vou poder falar com os meus pais? E minha namorada? – soei um pouco desesperado, mas dá uma trégua, eu só tenho vinte anos.
— Sinto muito, mas não vai acontecer – isso me baqueou muito.
Ela me deixou sozinha mais uma vez depois de me dar um abraço. Só que agora a solidão se manteve por um bom tempo. Eu passei uma hora ali, nos meus pensamentos até que vieram me buscar.
—
Foi tudo muito rápido. Decidiram que eu seria enviado diretamente para a sede da Aliança na cidade Regular, onde eu passaria por mais alguns testes e aprenderia a me controlar da forma mais básica. Enquanto eu estava esperando para receber novas roupas, em uma sala apertada não muito longe de onde eu passei as últimas horas, o Doutor Hugo apareceu para conversar um pouco.
— Em resumo, você renasceu atrasado – ele disse, sem cerimônias.
Eu não sabia como interpretar aquela informação.
— Isso é ruim?
— Não de fato – pausou para pensar – Mas isso prejudica um pouco sua vitalidade, talvez por causa do esforço que você teve para sair do outro lado.
— Esforço? Eu só acordei – algo dentro de mim dizia o contrário, mas eu decidi não falar nada sobre essa sensação.
— Agora não importa tanto, por isso, apenas se concentre em você.
Eu iria começar no Rank F-, algo que me informaram depois de uma breve explicação sobre o ranqueamento da Aliança. Como meu poder é muito instável, eles deixaram bem claro que eu teria uma vida complicada e deveria primeiro pensar em fortalecer o meu corpo. A minha maior esperança foi quando eles explicaram que era sim possível eu rever meus pais no futuro, mas só se eu subisse o meu Rank o suficiente para ser um B neutro.
Seria uma longa estrada, mas não era hora de reclamar. Carlile veio me buscar sem atrasos. Ela bateu um papo furado comigo quando entramos em um hall cheio de funcionários tanto do necrotério quanto do laboratório especial em que estávamos. Ainda não tinha certeza sobre o local em si, mas era realmente bem confuso. Ela ficou na dela no resto do caminho.
Enquanto andávamos por um longo corredor de metal, eu decidi quebrar o silêncio.
— Mas e quanto a mim? Onde eu vou morar?
Carlile sorriu para mim. Ela parecia mais tranquila por algum motivo, porém ainda tinha um ar soturno ao seu redor.
— Todos os ranks recebem casas de acordo com sua posição e importância dentro da agência.
— E dinheiro?
— Fique tranquilo, você também será financiado por eles lá dentro, receberá uma mensalidade e poderá trabalhar no seu tempo fora de treinamento.
— Então eu vou viver em prol da agência? – perguntei, meio sem graça e temeroso pelo meu futuro.
— Infelizmente sim – ela suspirou e eu vi um brilho de tristeza e sinceridade no olhar dela – Quero te avisar que eu vou te tratar do jeito certo, por isso expliquei tudo com antecedência, mas não é o que acontece geralmente.
— Como assim?
— Há pessoas como eu, aqueles que são normais, vivendo em Regular – ela disse – Eles vão te tratar mal, te discriminar, isso porque você é diferente deles.
— Eu já esperava por isso, na verdade.
— Imagine que vai ser pior, vão te ignorar e querer sua morte só por você ser “especial” – ela parou de frente para a porta final do corredor – Você é novo e não parece ser ruim, espero que se dê bem por lá.
Ela abriu a porta para mim e assim que eu passei, ela a fechou sem se despedir. Me senti bem mal pelas últimas palavras ditas, mas não havia o que fazer. Eu fui escoltado por um dos guardas até um dos carros de transporte e fiquei no banco de trás, isolado. Durante a viagem toda eu me peguei pensativo sobre meu destino, mas por algum motivo não consegui derramar nenhuma lágrima pelos ocorridos.