Renascidos - Capítulo 3
Eu estava perdido em pensamentos.
Como aquilo tudo podia ter acontecido comigo?
Por que?
Já não sabia discernir motivos, mas por sorte, o carro estacionou antes de pensamentos ainda mais negativos me cercarem. Eu encarei por um momento o guarda que me escoltava. Seu nome era Nicolas e ele tinha tentado conversar comigo algumas vezes, mas eu estava aturdido demais para manter uma conversa digna.
Nicolas era mais velho do que eu, talvez mais de dez anos. Ele sorriu por um momento, porém seu rosto era de alguém triste que provavelmente tinha visto histórias parecidas com a minha antes.
Ele apontou para o posto de gasolina e quebrou o silêncio.
— Vamos comer algo, você não pode chegar na cidade de barriga vazia.
A porta dele foi aberta e ele caminhou despreocupado para o posto, sem medo que eu fosse fugir. Agora eu possuia certeza de que não teria qualquer futuro fora da cidade, já que meu rosto está nos bancos de dados governamentais. No fim das contas, não parecia que ele fosse me tratar ruim por eu ser diferente dele. Eu decidi o seguir.
Assim que entrei no posto junto dele, uma atendente se aproximou com um olhar desconfiado. Percebi que era por causa da faixa que tinha em meu braço, indicando que sou um Renascido. Eu ignoro a atitude ruim dela e apenas sorrio, ainda que desconfortável com toda a situação.
Nicolas comprou um cachorro quente para cada um e uns refrigerantes, depois voltamos ao carro. Ao entrarmos, ele olhou para o celular dele.
— Já encontraram um emprego para você, pelo visto, seu registro será feito hoje assim que chegarmos lá. — ele disse — É algo muito bom, você poderá viver uma vida normal.
— É, eu acho… — respondi, desanimado — Não dá pra ser normal em uma cidade que todos tem superpoderes.
— Nem todos — Nicolas falou, o que captou minha atenção — Muitos dos familiares solicitam por trabalho em Alfa para que possam ver seus entes queridos, como é no meu caso.
— Sério? — não consegui esconder minha surpresa — Se não importa em dizer, quem é o seu parente Renascido?
— Meu pai — disse — Ele enfartou há alguns anos durante um ano novo. Ele acordou antes mesmo de levarmos ele ao hospital.
— Foi bem rápido…
— O que não é muito comum, garoto — ele coçou a barba ruiva depois de terminar a refeição — Mas o seu caso é ainda mais peculiar, já que demorou muito mais tempo que o normal.
— Não me sinto peculiar… Quer dizer, mais do que a situação já indica.
— Não faço ideia se isso é bom ou ruim, mas pode ser que signifique algo.
Fomos interrompidos por um chamado no rádio.
— Aqui é a viatura 43 de Alfa. Estamos perseguindo um sujeito perigoso conhecido como Lâmina. O encontramos no Centro da Cidade. Ele matou um indivíduo. Solicitamos reforços — o chamado se encerrou.
— Mais um desses lunáticos… — ele percebeu que eu parecia assustado — Não tenha medo, nós do Serviço Especial Alfa, estamos ali para ajudar caso algo aconteça. Você receberá um telefone com o meu número registrado assim que chegar, pode me contatar se precisar de algo.
— Me sinto um pouco melhor assim.
O silêncio inundou o ambiente logo que ele deu a partida no veículo e voltamos ao nosso trajeto. Demoramos mais uma hora e meia até que chegássemos próximo da ponte que leva até a Cidade dos Renascidos desse país. Alfa era como uma ilha no meio de várias cidades, separada por uma enorme porção de água nomeada como Rio Guardião. Seria praticamente impossível para um ser humano nadar até lá e caso alguém tentasse sair, do lado humano do rio havia uma enorme quantidade de guardas para garantir que não fosse possível.
Nicolas parou em uma guarita e entregou documentos para um dos funcionários. Esperei pacientemente enquanto me davam permissão para seguir caminho. Assim que passamos pela fiscalização, eu pude ver toda a amplitude de Alfa. Uma cidade completamente evoluída em sua arquitetura central, porém havia algo no ar que me deixava profundamente incomodado.
Foram trinta minutos desde que passamos a ponte para que chegássemos no prédio de registros. Nicolas estacionou em frente ao edifício, em um parque lateral ao local. Havia muito mais gente do que eu estava esperando e uma grande variedade delas, de diferentes idades, origens e gêneros. Era como se fosse um lugar normal em que as pessoas vivem vidas comuns, porém eu sabia da verdade.
Entramos na Central de Registros e Nicolas parou ao meu lado.
— Foi um prazer te conhecer e boa sorte — ele esticou a mão para mim, a qual eu apertei prontamente — Se precisar de algo, pode me chamar.
— Farei isso.
Ele saiu pela porta da frente e eu dei as costas para que pudesse seguir com os processos de registro. Fui atendido pelas recepcionistas que não demoraram nada para me explicar onde eu iria morar pelos próximos anos. Eu ficaria em um apartamento na Zona Norte da Cidade. Meu trabalho seria em uma lanchonete próxima da minha casa chamada Short Co. Hamburgueria.
Precisei tirar diversas fotos para os meus documentos e um recepcionista me explicou sobre o meu Rank. Ele deixou claro que eu estava na base da cadeia alimentar daquele lugar e não poderia trabalhar com base em meus poderes, mas poderia entrar em alguma academia especializada em melhorar minhas habilidades e até mesmo trabalhar em missões externas ao sistema comum para aprimorar meus conhecimentos e ganhar alguma grana por fora.
No fim, eles me deram o endereço mais uma vez e um aparelho celular de última geração com todos os dados que eu iria precisar para viver naquela sociedade. Algo interessante que eu reparei é que nenhum dos funcionários era Renascido. Isso aqueceu o meu coração por um momento e eu percebi que não perguntei para Nicolas se ele sabia se meus pais ou namorada tentaram solicitar a vinda para cá.
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Foi uma baita caminhada até o local em que eu poderia pegar um transporte para a minha nova casa. Eu demorei uma hora para fazer todo o percurso e notei que ninguém se importava com o fato de eu ser um Renascido ali, mesmo que a maior parte das pessoas que eu vi não pareciam ser anormais.
Chegando na minha rua, eu notei o restaurante de esquina o qual eu trabalharia. Era um edifício de dois andares com uma fachada cheia de grafites muito bonitos de comida. Havia uma varanda extremamente enfeitada com um telhado de metal pintado de laranja com detalhes verdes, como se fossem folhas.
Decidi deixar as surpresas para o dia seguinte, que seria minha estreia como funcionário do lugar. Chegando no prédio, vi que havia uma caixa de correio com o meu nome escrito nela. Lá na Central, a organização havia me entregue um cartão de acesso à mim, que seria como uma chave mestra para tudo que fosse meu. Soube de cara que não valeria a pena perder tempo abrindo a caixa naquele momento e subi para o quarto andar, onde meu apartamento, o 47, ficava.
Andei pelos corredores e passei por diversas escadas já que o elevador estava quebrado. Não encontrei com ninguém e avistei a minha porta. A tranca era específica para cartões e inseri o meu para liberar acesso, que aconteceu rapidamente.
O apartamento era antigo, porém muito bonito e arrumado. As mobílias estavam cobertas com plástico de preservação. O piso era de madeira e mal fazia barulho quando eu pisava, embora fosse por conta de meu pouco peso. O local estava limpo, o que indicava uma limpeza bem recente.
A minha nova casa tinha exatamente quatro cômodos. A sala, um quarto simples, com uma cama e um criado mudo, uma cozinha e um depósito/lavanderia com uma máquina de lavar nova. A cozinha tinha sido equipada com uma geladeira nova, um fogão com coifa em cima, uma mesa com duas cadeiras e um microondas fixo na parede com a ajuda de algumas hastes.
Na lavanderia, um armário foi colocado para que eu guardasse materiais de limpeza e coisas que eu não usaria sempre. No quarto também colocaram um armário para que eu pudesse guardar meus pertences e isso me agradou bastante. A cama tinha lençóis limpos e eu retirei o plástico para que eu pudesse deitar um pouco. Fechei os olhos para pensar em tudo que tinha acontecido nos últimos dias, porém meus pensamentos foram cortados por uma estranha sensação.
Eu estiquei as mãos e notei que meu celular flutuava em torno delas. Em choque, eu retraí os braços, o que puxou o celular junto. Por um momento, eu consegui fazer com que o aparelho girasse em seu eixo e até mesmo desse a volta no meu corpo, mas o controle acabou em instantes. Eu não fazia ideia ainda de como eu usaria aquele poder ou como ele poderia ser melhorado.
Decidi afastar quaisquer pensamentos relacionados ao uso dos meus poderes, já que iria tentar viver uma vida normal naquele lugar, ou melhor, o mais próximo de uma. Senti um desconforto, mas decidi apenas descansar um pouco depois da longa viagem antes de arrumar meus pertences. O sono veio depressa assim que começou a anoitecer e eu apaguei como uma criança.
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Acordei cedo na manhã seguinte, desesperado para arrumar tudo o que precisava. Eu só entraria no trabalho às 11h, o que me dava umas cinco horas de intervalo para colocar tudo em ordem no apartamento. Passei a manhã inteira organizando os meus pertences no armário, ligando os aparelhos da casa e até mesmo encontrando uma televisão que deixaram na parte de trás da porta do depósito. Por algum motivo, eu tive vontade de me exercitar e o fiz por um curto período de tempo, logo que deu nove horas.
O meu quarto era uma suíte e por isso possuía um banheiro ali. Tomei um banho demorado logo após os meus exercícios acabarem. Chequei o celular, esperando encontrar alguma notícia local relevante, mas não encontrei nada. Descobri também que a rede não acessava as redes sociais comuns e haviam específicas para a Cidade Alfa e também outras. Para ser claro, seria impossível conversar com pessoas nas cidades normais.
Eu me preparei para o trabalho com roupas simples que me deram, um uniforme com a camisa vermelha e a calça preta, com o logo da loja em ambas as peças. Recebi também um boné e uma rede para cabelo que eu vesti rapidamente, pois estava com um pouco de pressa. Saí de casa mais cedo para chegar com tempo de sobra e conhecer os outros funcionários com mais calma.
Assim que passei pelos corredores para pegar a escada, notei alguns dos vizinhos conversando tranquilamente em frente à uma das portas. Era uma senhora de idade e uma jovem bem bonita de cabelo preto longo amarrado em um coque. Ela usava o mesmo uniforme que eu estava usando e assim que passei por ela, a jovem parou a conversa que estava tendo.
— Você é o novato? — ela disse, cortando meu movimento.
— Sim — os olhos azuis dela me fizeram vidrar por um momento, mas eu desviei o olhar para não parecer um maníaco — Desculpa perguntar, mas qual seu nome?
— Angela, prazer — a senhora ao lado dela voltou para o apartamento — E o seu?
— Lucas, é um prazer — ela estendeu a mão para me cumprimentar, gesto que eu respondi de prontidão.
— Quer companhia até o trabalho?
— Pode ser — respondi um pouco envergonhado.
Descemos as escadas juntos enquanto ela me explicava as dinâmicas do trabalho que eu teria de fazer pelos próximos meses. O trabalho seria na cozinha, montando os ingredientes para que o chef cozinhasse. Chegamos juntos no local de trabalho onde eu conheci os outros membros da equipe. O chef se chamava Alfredo, as garçonetes eram Amélia e Kiara. O outro cozinheiro se chamava Matias, que automaticamente interagiu comigo e foi um cara legal.
O dia de trabalho foi bem tranquilo, com pouca interação com clientes e poucos erros. Alfredo vinha conversar comigo ocasionalmente para saber minhas impressões e acabei sabendo que todos os membros da equipe eram Renascidos com poderes pouco significantes e que precisavam de um lugar para trabalhar sem se sentirem ameaçados.
Também descobri que a Zona Norte da Cidade era a mais pacífica e poucos crimes ou descontroles aconteciam. Eu poderia ter uma vida mais próxima da comum por aqui e até mesmo receber meus familiares caso viessem morar comigo.
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Acabamos tarde de arrumar as coisas para ir embora. Ficaram no restaurante apenas eu, a gerente Angela, que rapidamente se tornou uma amiga muito positiva para minha rotina, e Matias. Organizamos as caixas para o dia seguinte, uma quinta-feira, e Matias deu a ideia de comermos em algum lugar vinte e quatro horas já que não deu tempo de fazermos a janta.
Ao checar o relógio, vi que era dez da noite e entrariamos cedo no dia seguinte, mas decidi não recusar. Eu e Matias esperamos Angela terminar de trancar tudo e fomos juntos pelas ruas até um fast-food da região, que ficava há pelo menos dez minutos a pé. O local vendia bata frita e sanduíches de peixe e seu nome era Fish Market. Matias conversava sobre tudo e era bem falante, não gostando do silêncio que ficava após o fim de um assunto.
Foi então que, após comer nossos sanduíches, Ângela quebrou o silêncio com um assunto diferente.
— Você namora? — ela me destruiu com essa pergunta.
— Antes daqui, sim… Mas como vim para cá, provavelmente não mais.
—- Não seja tão desesperançoso — disse Matias — Ela pode querer vir para cá.
O silêncio reinou por segundos.
— Foi mal pela pergunta— continuou Ângela — Bem, e sobre seus poderes?
Eu pensei por uns instantes e fiz um dos canudos flutuar ao redor dos meus dedos.
— Parece ser bem útil, daria para levantar caixas?
— Não, só funciona com objetos pequenos, que cabem na minha mão. E os de vocês?
Matias sorriu.
— Eu consigo cuspir fogo por um curto período de tempo, mas nada muito grande — ele pareceu orgulhoso da própria habilidade.
— E eu sou capaz de atravessar superfícies e fortalecer um pouco o meu corpo.
— Dois poderes?
— Não, são só duas faces da mesma habilidade — Matias respondeu pela jovem — Imagine que ela é capaz de mudar a base do corpo dela para ser insignificante e também para ser mais resistente.
— Entendi, parece ser legal.
— Não muito, ainda não controlo direito e tenho que tomar remédios pra ele.
— Que tipo de remédios?
— Antimutagênicos básicos, para que eu não saia atravessando as coisas.
A conversa durou mais um tempo e todos decidimos ir embora. Acompanhei Ângela até o apartamento 52, no andar superior, onde ela morava. Mal conversamos durante o caminho e eu percebi que ela estava cansada demais para ficar gastando energia com papinho furado. Ela abriu a porta da casa dela e sorriu para mim.
— Foi um prazer te conhecer, nos vemos amanhã.
— O mesmo.
Ela fechou a porta e voltei para o meu apartamento. Logo que me deitei, fiquei feliz por não estar completamente sozinho e peguei no sono sem saber que em poucos dias minha vida viraria de cabeça para baixo mais uma vez, e para sempre.