Renascidos - Capítulo 4
Foi mais uma manhã normal vivendo em Alfa. Acordei cedo, com o objetivo de me preparar para mais um dia cheio e descomplicado. Tomei meu banho matinal tranquilo e fui checar as correspondências. Tinha acabado de completar um mês nessa cidade e estava tudo caminhando muito bem. Nicolas criou uma boa amizade comigo e me visitava hora ou outra.
Em um dos nossos encontros, ele me contou que ninguém se registrou para vir até aqui, ou seja, meus pais optaram por não me ver. Muito menos minha namorada, bem, ex-namorada. Nicolas me ensinou algumas coisas sobre armas de fogo para auto-defesa caso fosse alvo de um ataque algum dia, mas eu realmente não me sinto bem pensando em precisar lutar pela minha vida.
Após o banho, me dediquei à prática com a minha habilidade de manipular pequenos objetos. É assim que eu nomeei esse poder simples, porém útil para algumas atividades, como puxar talheres e moedas. Também descobri que eu tenho um alcance de um metro e meio com essa habilidade, o que é curto para um poder telecinético. Nicolas me disse que esse tipo esconde sempre alguma característica interessante e que eu não deveria ter vergonha disso.
Arrumei meus cabelos castanhos que agora tinham uma mecha branca em um coque curto. Notei também que a marca em meu corpo com a numeração de registro tinha aparecido com mais destaque, mas não me importo muito com isso e volto às minhas atividades de sempre. Minha amizade com ângela e Matias só crescia a cada dia, já que eles são minhas âncoras nesse lugar.
Há alguns dias eu percebi que Ângela me olhava diferente, bem parecido com a forma a qual Livia me encarava. Decidi deixar esses pensamentos para lá e me arrumei para o trabalho. Peguei minha chave usando a atração do meu poder e destranquei a porta para sair. Senti um calafrio instantâneo, como se algo me dissesse para não sair de casa, mas ignorei a sensação e desci.
— Bom dia! — Ângela estava me esperando no portão do prédio, o que me fez sorrir — Pronto para seu aniversário de um mês aqui?
— E tem isso agora?
— Agora tem — ela estava bem animada.
Conversamos o caminho todo e chegamos juntos no restaurante. Estava tudo muito bem, um ótimo dia. Trabalhamos muito para que a noite chegasse mais rápido, sempre conversando entre si. Matias me puxou de canto em um momento para conversar, ele estava sorrindo.
— Hoje vamos sair para comemorar seu um mês aqui — ele disse — Mas antes eu preciso te perguntar…
— Desembucha.
— Como vão as coisas com a Ângela? Em que passo estão?
— Passo? Como assim?
A face dele foi coberta por decepção e ele riu.
— Então você nem percebeu, minha nossa.
— O que?
Ele riu ainda mais alto.
— Nada não, cara — ele olhou nos meus olhos e arrumou o próprio cabelo loiro para que as mechas não saíssem da redinha que usava — Você é muito lento, de verdade.
Eu não tinha entendido ainda, não estava muito atento aos meus arredores desde o momento em que cheguei.
— Agora eu quero saber.
— Uma hora você descobre.
Ele voltou ao trabalho e me deixou com aquela dúvida cruel na cabeça. Ri da minha próxima idiotice e voltei ao trabalho com calma. Durante uma das pausas, enquanto eu tirava o lixo para fora, Ângela me encontrou do lado de fora. Seu cabelo reluziu na luz que inundava o beco. Ela sorriu para mim e nunca pareceu tão linda como naquele momento. Ela veio me ajudar. Fizemos o trabalho de descartar os materiais separadamente em silêncio e quando acabamos, ela me chamou baixinho. Eu virei para ela.
— Sabe, você pode vir em casa hoje se quiser… Podemos, sei lá, assistir uma série.
Oh, entendi. Naquele momento eu finalmente saquei o que estava rolando.
— Claro, podemos sim — respondi de imediato. Como era uma sexta-feira, não trabalhamos amanhã — Te encontro depois?
— Pode apostar que sim — ela sorriu, corando.
Deixei ela entrar no estabelecimento primeiro e parei um momento para pensar no que fui forçado a deixar para trás quando me tornei um Renascido. A dor se tornou esperança e me deixei sorrir, vendo que ainda havia esperança para mim. Foi logo que ela entrou que escutei o grito.
Foi tão do nada que fui mergulhado em torpor. Corri para dentro e vi que um homem de preto usando uma máscara tradicional japonesa estava no meio da cozinha. Matias estava caído no chão com uma mancha de sangue em sua camisa branca. Meu coração disparou. Não, não, não. Mais uma vez não. Era a mesma sensação de quando tinha morrido.
Senti meu sangue subir quando o homem arrastou o meu amigo para a parte das mesas. De onde estava, atrás do balcão, consegui ver que Ângela, Matias, a equipe e os clientes estavam todos reunidos ali, sendo presos pelo homem de preto em conjunto com mais três capangas.
Consegui ouvir pouco do que eles falavam, mas meu coração quase parou quando entendi.
— Podemos começar o massacre em cinco minutos — o homem de preto disse, arrancando a máscara. Ele tinha uma cicatriz em cima do olho esquerdo e várias marcas de batalha pelo rosto e pelo pescoço. — Não sabemos quando as autoridades virão.
Massacre? Não! Não podia acontecer. Meu corpo se recusava a se mexer, mas queria fazer algo. Eu assisti um dos clientes ter a mão cortada na palma por um dos capangas que tinha o rosto coberto. Meus ouvidos zuniam muito. Sentia um formigamento estranho nas mãos.
— Então é melhor fazermos rápido.- disse um dos capangas, o mais baixo e com roupas menos discretas, já que usava correntes e um colete com espinhos.
Ângela se desvencilhou de um dos guardas e notei que seus músculos se fortaleceram um pouco, tanto que ela rompeu as amarras com toda a sua força. Ela olhou nos olhos do homem de preto e abriu as mãos. Ele apenas sorriu e abriu a mão esquerda, reunindo ar na palma dela.
Agora eu entendi por que não ouvi nenhum ataque antes, era por ter sido feito com ar. Mesmo atingindo Matias, não fez um estardalhaço. Rangi os dentes vendo Ângela ser atingida pelo baixinho com um soco tão poderoso que a deixou no chão.
Foi quando Ângela tentou se levantar e argumentar com os homens que toda a adrenalina veio. Sangue. Ver ela cair no chão, com dor, e sangue se formulando abaixo dela como uma poça, me trouxe algo que havia esquecido. Uma voz que se ocultou em meus pensamentos e se baniu de meus sonhos veio aos meus ouvidos.
“Deixe fluir”
Algum interruptor foi acionado dentro de mim. Uma sensação que havia esquecido. A raiva veio ininterrupta e eclodiu como um vulcão. Tive que controlar minha respiração que se tornou pesada. Vi os homens incomodados com algo e pude ouvir perfeitamente o que eles falavam.
— Tem alguém aqui — disse um dos capangas — provavelmente um dos descontrolados, chefe.
— É melhor fazermos logo e fugirmos — disse outro.
— Se acalmem, estamos em quatro, podemos lidar com todos eles.
Por algum motivo, meu olhar e o de Ângela se encontraram. Era como se ela pedisse por ajuda. Não sabia o que significava, mas eu deixei fluir. Como um rio, o meu poder se manifestou pela primeira vez como deveria.
“Mate eles agora”
Não pensei duas vezes e corri para dentro da zona principal do restaurante, me expondo. Os quatro não sabiam se eu era corajoso ou burro e vi que um deles estava armado. O homem de preto sorriu e disse algo que eu não conseguia mais compreender, como se minha mente estivesse muito longe, embora a minha consciência tivesse prevalecido.
Minha sede de sangue se manifestou e inconscientemente arranquei as moedas da caixa registradora. Um dos capangas começou a inchar os músculos e avançou em minha direção. Blecaute. Quando meus olhos voltaram, esse homem estava completamente varado, com vários buracos em seu peito.
Os clientes me olhavam com terror. Eu rugi e avancei sem pensar contra o armado. Ele disparou comigo sabendo que não teria como desviar, mas ao invés de ter medo, eu sorri, quase sem controle do meu corpo. Blecaute. Ouvi um grito e percebi que não me machuquei, pelo contrário, a mão do homem que segurava a arma estava aos pedaços e nenhum sinal da bala.
O outro capanga saltou contra mim usando uma faca e dessa vez minha visão não se nublou. A arma veio sozinha para minha mão e eu atirei em sua coxa, o obrigando a ir ao chão. Dei mais um tiro que furou o seu antebraço direito. Foi tudo tão rápido que o homem de preto não conseguiu reagir.
— Monstro! — o homem abriu as mãos e o ar se moldou em lâminas — Morra!
Ele disparou as lâminas em minha direção e meu corpo se moveu sozinho. Saltei pela lateral de uma das mesas e a usei de suporte. Atirei contra o homem como se fosse um profissional e ele cortou as balas assim que chegaram perto de sua pele. Caí no chão e executei um rolamento quando a mesa foi cortada ao meio junto com um dos clientes amarrados no chão com cordas.
A raiva só crescia e meu grito se tornou um rugido. Ele disse mais algo, mas não consegui entender. Senti que meu poder era meu desde o nascimento, tanto que manipulei as moedas do chão com balas ao meu redor. Elas voaram como se tivessem sido disparadas, coisa que nem eu entendi direito como fiz. O homem saltou por cima de uma mesa, deslizando no ar e me empurrou contra o balcão, o esmagando.
Cuspi sangue e me ergui, recebendo mais uma rajada de ar e atingindo um dos fogões. O óleo ainda quente caiu de uma das panelas e manchou meu antebraço direito. Gritei de dor, mas consegui puxar uma das gavetas com a outra mão para abri-la. Assim que ele veio andando, convencido da vitória, todas as facas da gaveta ao meu lado se ejetaram contra ele, rasgando os seus braços e pernas.
Sabendo que era viver ou morrer, peguei uma das colheres que caíram e a encarei com ódio no olhar. A arremessei contra ele e ampliei sua velocidade com o meu controle, criando um projétil perfeito direto em seu peito, algo inesperado e que ele tentou bloquear. Minhas energias começaram a ir embora, porém eu cedi quando vi que ele atravessou a parede após o impacto e caiu na rua.
Blecaute.
———
Quando voltei a consciência, estava de joelhos no chão. O homem de preto sumiu.
Havia manchas de sangue por tudo que é lado e apenas algumas pessoas ainda estavam conscientes. O sangue esquentava meus braços, já que por algum motivo eu fui cortado. Matias estava cortado no ombro e peito, mas estava socorrendo Ângela. Quando tentei me mexer, eu caí no chão.
Seu olhar para mim foi primeiro de medo, depois ele juntou sua confiança e veio me ajudar.
— Você foi…
— Um monstro? — por algum motivo, eu me lembrei do que fiz.
— Incrível, vocês nos salvou.
— E ela?
— Está viva, o corte não foi muito profundo e o poder dela se ativou no momento certo, ela conseguiu evitar os órgãos. Já chamei uma ambulância.
Suspirei aliviado e notei as sirenes de polícia. Quatro oficiais entraram com urgência e apontaram as armas para nós. Um deles era Nicolas. Ele veio de imediato me socorrer. Nunca fiquei tão feliz por vê-lo.
Um dos oficiais o fez recuar.
— Lucas, você deve nos acompanhar para a central.
— Eu? Por que?
— Ele está ferido, senhor! — retrucou Nicolas, preocupado.
O homem, que era muito grande de forte, encarou o seu subordinado por um momento e sacou um cigarro, prontamente o acendendo com um isqueiro.
— Não importa, os leitores não mentem — disse — Levem-no agora, resolverei esse problema sozinho.
Nicolas pareceu indignado, mas obedeceu afastando Matias de mim que estava tão aturdido quanto eu. Estiquei a mão para Ângela enquanto os outros dois policiais me carregavam para fora do restaurante. Ela olhou para mim, se apegando à consciência e vi lágrimas rolarem no seu rosto, enquanto tentava estender a mão para mim.
A última coisa que eu me lembro dessa noite antes de apagar, foi um sorriso avermelhado nas sombras atrás de Ângela, como se estivesse feliz pelo que eu fiz.
“Muito bem, agora vamos para o próximo passo, minha criança”.