Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 102
Saindo de Gloomer e seguindo o rio Namoa pelo norte, chegava-se até uma floresta densa. Antes disso, ultrapassando os rochedos centrais, ficava o afluente do rio, que era onde a mata começava a ficar mais cheia e a natureza, mais rica. Era ali que a trilha começava a se tornar estrada.
Esse conjunto de pedregulhos e calcário levava até um conjunto de casas esparsas. Foi naquele pequeno vilarejo onde Edward estacionou a comitiva.
O grão-duque conversava com o líder local, enquanto Pedro “educava” sua égua mansa.
— Eu arrancaria sua pata, Dalila. Mas aí você ficaria inútil, mais do que já é — disse, encarando o pobre animal como uma criança encara o angu da janta. — Poderia te esfolar as costas, mas preciso montar nelas. Posso até arrancar seu rabo… e nada aconteceria. É, exatamente! Se arrancar seu rabo, acho que não acontece nada. Boa. Gostei!
A égua relinchou, como que ameaçando o mestre. Em contrapartida, Pedro sacou sua cimitarra. E se preparava para descê-la, quando foi surpreendido por trás.
— O que está fazendo?
A voz indignada parou o movimento de Pedro, que não se moveu para olhar para trás.
— Educando minha égua — disse, como quem não entendia a pergunta.
— Eu não te ensinei a fazer isso. Não se adestra um animal na base da ignorância. Muito menos um cavalo, lorde Pedro.
Ao virar-se, ele teve uma enorme surpresa. A voz firme, porém melódica, escondia aquela aparência escultural. Alta para uma mulher. Pernas longas e grossas. Aqueles dois belos montes de carne nos glúteos. Cabelos verdes.
— C-Celine? O que cê tá fazendo aqui? Como?
— Saudações, lorde Pedro. Estava voltando de uma viagem e vi o alvoroço, então decidi ver o que era. O senhor só se mete em empreitadas grandiosas, não é mesmo? É a caravana de lorde Edward?
Ele fez que sim, segurando-se para não manter o olhar naquele extravagante par de coxas. A garota usava um par de calças longas de couro, mas não era o suficiente para esconder a silhueta voluptuosa.
— Bom, isso sim é uma surpresa. Velha Marta disse que você tinha ido em outra de suas viagens à cavalo. Onde você tava?
— E-eu fui até o norte, lorde Pedro. Tenho parentes lá…
A garota fez uma careta de quem não falava muito de assuntos pessoais. Talvez a família fosse um tema sensível para ela. O rapaz respeitava isso, afinal, ele mesmo provinha de uma família dessas. Não insistiria com ela.
— Pois bem. As estradas pro sul tão bastante perigosas, Celine. Siga conosco. Vamos até a capital. Já sei! Você pode ser minha porta bandeiras, ou uma dama de honra. Sei lá se existe esse tipo de coisa aqui… Mas te levo comigo.
Ela corou, mas não deixou transparecer. Deu um tapinha no garanhão que a acompanhava em suas viagens. Um cavalo forte, realmente bonito. Era essa a forma de fazer carinho no animal. E se não era, ele ao menos fingia gostar.
— M-mas eu não sou nobre, lorde Pedro. Os outros podem não gostar da minha presença. E minha avó já está sozinha há algum tempo. E, além disso, lorde Edward pode não gostar de…
— O que tem eu? — surpreendeu a voz ao fundo, interrompendo Celine.
Pedro logo tratou de intervir.
— Não é nada, caro Ed. Aqui é Celine, minha dama de honra e porta-bandeira oficial. Ela tava numa viagem e por isso chegou tarde. Irá me acompanhar na ausência de Rebecca, sim?
Edward fez que sim, tratando de se apresentar, como mandava a etiqueta.
Ela fez uma cara de descontente para o sorriso gentilmente malicioso do baronete. Ele até mostrou a linguinha, o que a deixou um tanto desconcertada.
— Dona Marta tá muito bem, bobinha — sussurrou em seu ouvido, tirando o foco do discurso do grão-duque. — Pode apostar, ela ia te matar se soubesse que voltou pela estrada sozinha, logo após um ataque de bandidos-rinocerontes à comitiva do grão-duque. Estou fazendo um favor pra ela.
A aproximação súbita a pegou de susto. Como assim rinocerontes bandidos?, era o que sua face deixava transparecer.
Pedro fez um aceno de depois te explico e ela logo se aquietou. Celine então foi devidamente apresentada ao resto da comitiva como acompanhante do Baronete Perverso, o que fez com que quase todos a temessem sem a conhecer.
Dois dias e meio depois eles chegariam perto de seu destino.
…
Pedro não pôde deixar de reparar na agitação que se formara nas vilas mais próximas da grande cidade. Quando a floresta se tornou menos densa, e os povoados maiores, a agitação também cresceu.
Até então isso deveria ser normal. Mais gente, mais caos. Contudo alguma coisa ali estava diferente. Era uma sensação que ele tinha, que algo estava muito errado. Era como se estivesse na estrada e encontrasse uma tatu trepado em um toco.
Ele olhou para Edward, que também trotava em seu palafrém.
— Acha que o ataque tem a ver com isso?
— Não sei — respondeu Ed, sem esconder a ansiedade. — Talvez…
Pedro não falou mais nada. Apenas acenou e voltou onde Celine estava, deixando o grão-duque à frente da caravana.
Eles logo chegaram na frente de uma muralha de pedra muito alta que ficava na frente dos burgos. Na verdade, o correto seria dizer que os burgos é que estavam na frente da grande construção.
Haviam filas muito grandes nos portões principais. Para a felicidade geral, entretanto, Edward era o filho do dono e pretendia usar suas credenciais para evitá-la.
Eles se apresentaram ao capitão da guarda do muro, que saudou Edward e abriu passagem. Eles fizeram uma vistoria rápida na comitiva. Apenas para garantir a ordem pública. Mas nada demais. Eles até ignoraram os “artefatos misteriosos” que um certo baronete estrangeiro carregava em sua bagagem.
Ao entrar na cidade, Pedro ficou surpreso. As casas eram grandes, mesmo as mais próximas aos portões. Muitas lojas também. Pessoas andando para lá e para cá. Era uma confusão ordenada, daquelas de grandes centros.
— Um dia Vilazinha será assim — deixou escapar.
— Talvez, lorde Pedro. Isso deixaria a vovó feliz. Ela gosta de agitação.
Ele acenou e então voltaram-se para seguir os demais até o norte, onde ficava o castelo. Foi um desafio não entrar naqueles estabelecimentos luxuosos. Tinha uma lojinha de roupas em específico que chamou a atenção do rapaz. Um hortifrúti também. E uma loja de armas. Eram muitas.
E, claro, a beleza dele não passou desapercebida, o que era de costume. As damas mais próximas coravam ou faziam algum comentário alto, que deixava Celine desconcertada por ele, já que Pedro mesmo parecia imune a esse tipo de coisa.
Muitos homens de armadura caminhavam ou trotavam de cavalo por entre as ruas largas da cidade Willblood. Se Edward estava aflito por conta disso, não demonstrou. Porém acelerou o passo.
Ao chegar na beira do grande fosso, eles foram parados de novo. Dessa vez foram cavaleiros.
Aqueles homens de prata da cabeça aos pés deixavam exalar uma aura gutural. Era uma mistura de brutalidade e majestade. Era como se fossem leões em uma armadura. Seus dentes eram suas espadas; seu rugido, os escudos.
— Saúdem lorde Edward WillBlood, Grão-Duque do Oeste, filho de sua alteza, o príncipe Charles!
Os cavaleiros bateram os punhos no peitoral de aço, deixando ressoar o ardor de seus corações e de seu juramento para com a casa real.
“Estes homens são bem treinados”, comentou internamente Pedro, perguntando a si mesmo se não deveria ter ele mesmo seus próprios cavaleiros.
Enquanto se preparavam para entrar, eles repararam que um pequeno grupo saia pela grande ponte do grande castelo. Eram cinco ou seis. Usavam roupas que claramente não eram de Mea, de cores escuras e mais rústicas. Tinham expressões sombrias nos rostos também, o que Celine percebeu e comentou com Pedro.
Ele apenas acenou, encarando o grupo enquanto eram escoltados pelos cavaleiros para a muralha interior do castelo, a segunda, um pouco menor que a muralha da cidade.
Mal adentraram o local e logo Edward foi puxado pelo camareiro real. Ele fez um cumprimento cordial, perguntando ao grão-duque como estava após tanto tempo longe. Depois o arrastou para uma conversa mais particular.
Pedro, é claro, aproximou-se com fins de intervir e participar da fofoca.
— Quem eram aqueles homens? — perguntou Ed ao camareiro real.
O homem o encarou com um sorriso esquisito, como aqueles que se dá depois de engolir um caroço de limão.
— São emissários de Eburove, meu lorde. Eles acabaram de declarar guerra!
Se estivesse bebendo água naquele momento, Edward com certeza cuspiria tudo na cara do homem.
— O quê?!
Pedro adiantou o passo, resignado, mas com alegria estampada no rosto.
— Eu sabia que tinha alguma coisa errada! Tatú não sobre em toco.