Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 23
Era uma manhã clara de verão e uma criancinha barulhenta brincava, correndo pelos corredores de uma grande mansão.
Essa criancinha tinha cabelos castanhos e lisos, cortados em forma de tigelinha. E estava muito agitada.
— Ei, Pedrinho, volte já aqui! — gritou uma mulher com roupas de empregada.
Ela correu bem rápido, mas mesmo assim não conseguiu alcançar o rapazinho. Isso pois ele era muito arisco, desviando e pulando por entre os móveis sofisticados e caros da mansão.
Talvez esse último também fosse o motivo da hesitação da mulher. Afinal, mesmo as cortinas daquela casa valiam uma fortuna. Tapeçaria persa era muito cara.
E assim, falhando na captura, só restou a ela gritar de longe, como boa adulta que era.
— Pedrinho, seu professor de inglês está esperando! — choramingou a mulher.
Mas o jovenzinho não parecia se importar muito com os sentimentos ou pedidos da mulher. Não, ele com certeza não se importava.
Naquele momento, Pedrinho já havia conseguido se esgueirar com sucesso para fora da mansão. Ele fugiu pela janela.
Quando a empregada viu aquela corda improvisada com lençóis, os lençóis que havia acabado de lavar, uma lágrima de consternação desceu de seus olhos. Uma veia saltou de sua testa.
Pensando na idade do rapaz e no trabalho que ainda teria com ele, ela suspira.
— Esse menino só tem cinco anos! Ahrr… o que sera de mim quando tiver quinze?!
Foi apenas por um breve momento, mas a moça ficou presa em seus pensamentos, quando de repente foi surpreendida por uma voz ao fundo.
O tom era grave. De um homem, possivelmente.
— Ora, com quinze anos, eu espero que ele tenha uma namorada, minha cara Natalie. Haha! — Ele disse.
Ouvindo aquela voz suave e ao mesmo tempo impositiva, a empregada sentiu um arrepio repentino na nuca.
— Se-senhor Rios! Me-me desculpa! Não sabia que o senhor vinha hoje e… ehr…
Ela já estava se preparando para abaixar levemente a cintura e cumprimentá-lo com uma saudação típica de empregada, quando o dono daquela voz macia e impetrante a interrompe sem aviso.
— Ah, não se preocupe muito comigo. — Ele disse, levantando a mão para indicar que o gesto não era necessário.
Em seguida, se aproximou de Natalie, que estava perto da janela. A empregada nem tentou esconder o que o rapazinho havia feito.
— Eu só vim aqui hoje para ver o meu neto. Aliás, essa obra de arte foi de autoria dele? — perguntou.
— Sim… — respondeu Natalie, um tanto envergonhada.
Aquele senhor aparentava ter uns cinquenta e poucos de idade, mas ainda assim era muito belo. Ele era um homem alto, com rosto sério e barba aparada. Seus óculos e terno sofisticados apenas contribuíam para incrementar seu visual, dando a quem o olhasse uma impressão de frieza, majestade e mistério.
Era um tipo único de beleza.
Mas Natalie sabia quem era o dono daquela boa aparência. E não era outro senão Clark Rios, empresário de sucesso e CEO da multinacional Corporação Rios.
Nas horas vagas ele também era avô.
— Dessa vez ele deu uma bela volta do fiel. Olha só esse nó! — disse, analisando aquela corda improvisada como se fosse um tipo de tesouro — Ele melhorou muito desde a última vez!
Ao olhar a empolgação do avô, analisando a “arte” de seu neto, Natalie não soube se ria ou se chorava. Em parte, isso era devido ao fato de que seria ela quem deveria desfazer a bagunça e lavar novamente o lençol.
— Bom, eu vou atrás dele — disse Clark, correndo até a porta.
A empregada lhe deu um aceno em reposta. Mas ele interrompeu a caminhada.
Havia se esquecido de dizer algo.
— Ah, eu quase me esqueci! Natalie, por favor, tire uma foto. Ficou realmente muito bom dessa vez! Haha! — completa.
Ela concordou, ainda que suspirando um pouco.
Se o suspiro era pela bagunça ou pela aparência do homem, bem… provavelmente uma mistura dos dois.
— Tudo bem, senhor Rios. Eu faço… Ahrr…
Ao sair, Clark presumiu que não demoraria muito para achar Pedro. Em parte porque aquela mansão um dia foi a sua própria casa e ele já a conhecia bem.
Mas o maior motivo disso era um sentimento, uma espécie de conexão que Clark sentia com o garoto. Coisa de avô e neto.
Desse modo, caminhando um pouco pela área verde do pátio da mansão, Clark rapidamente encontrou Pedro.
A criança estava correndo desenfreadamente pela grama, carregando algo que parecia ser uma latinha. Tinha um rolo de linha enrolado nela.
Na ponta dessa linha estava um pedaço quadrado de papel. Era uma espécie de pipa, só que bem rudimentar. Certamente não voava bem.
— Ei, Pedrinho! O que você tá fazendo? — perguntou Clark.
Vendo aquela figura familiar, o jovem Pedro rapidamente largou a lata e foi correndo ao seu encontro.
— Vovô! — gritou, antes de agarrá-lo.
O senhor então passou a mão por entre os cabelos do rapaz, fazendo-lhe um cafuné.
— Ei, o que foi aquilo? Uma pipa? — Ele perguntou.
— Sim! O vovô sabe! — respondeu o rapaz, eufórico.
Entretanto, ele acabou por se lembrar dos vários fracassos em fazer o pedaço de papel voar e isso repentinamente o deixou com uma cara de desânimo.
Crianças são muito sinceras, isso era verdade. Por causa disso, não foi difícil para Clark ler a situação.
Ele caminhou vagarosamente até a pipa largada no chão e a agarrou com as mãos, analisando-a calmamente.
— Ela não voa né? — perguntou.
— Eh… não voa… — respondeu um Pedrinho desanimado.
Mas o senhor continuou olhando para aquilo por um tempo, até falar com ele:
— Não me admira. Afinal, essa pipa não tem nenhuma sustentação! — Ele pausa por uns segundos, só para ver seu netinho atento e lhe encarando profundamente — Deixa que o vovô resolve isso, Pedrinho.
Quando ouviu aquilo, o garotinho ficou muito feliz. Seu super-avô iria ajudar.
Todavia, essa alegria toda durou pouco, pois o senhor no final da meia-idade ainda não havia terminado sua fala.
— Vamos fazer assim, eu vou ir pra cidade comprar os materiais pra pipa. Enquanto isso, você vai pra sua aula de inglês. Okay? Temos um trato?
Pedro fez beicinho quando escutou aquilo, mas estava muito curioso em como seu avô lhe ajudaria com a pipa. Dessa forma, ele relutou um pouco mas acabou aceitando.
O restante daquela manhã se passou assim, com um Pedrinho cabisbaixo em sua aula de inglês. Mas em compensação a tarde dele foi muito divertida, com seu avô lhe ensinando a fazer e empinar pipas.
Era uma das boas lembranças da infância de Pedro.
…
— Uuuaaahrr! Que sonho mais gostoso! — comentou o rapaz, que acaba de acordar.
— Bom dia, amor! — respondeu Rebecca.
Olhando um para ela, Pedro percebe que a garota também havia acabado de acordar. Afinal, seus cabelos estavam bagunçados e ela estava com o rosto levemente inchado, o que por sinal não diminuía em nada sua beleza.
Seus olhos eram de um lilás profundo que tocava até a alma. Pedro já havia reparado, mas ao olhá-la de perto assim ainda foi sugado por aquele brilho profundo e encantador.
— Sobre o que você sonhou? — Ela perguntou.
Sendo forçado a sair de seu transe pela voz da garota, Pedro responde sem titubear.
— Ah, acabei me lembrando do dia em que meu avô me ensinou a empinar pipas. Eu era péssimo nisso. Haha!
Reparando no sorriso radiante do rapaz, a garota também entra em um transe momentâneo. Afinal, ele era muito bonito. Mais bonito do que qualquer homem que ela já viu até agora.
Os olhos castanhos-claros e as pequenas sardas dele combinavam perfeitamente com o estilo de penteado que ele adotou recentemente.
Ou melhor, com o estilo “despenteado” que a natureza adotou para ele. Afinal, desde que chegou a Ark, Pedro ainda não cortou os cabelos.
A essa altura eles já tinham atingido a altura dos ombros. Mas isso também não alterava em nada sua beleza. Na verdade lhe dava um estilo rebelde que combinava com sua personalidade explosiva.
Os dois eram um casal de tirar o fôlego, sem dúvidas.
— Hum? O que é uma “pipa”? — Ela perguntou.
O fato de Rebecca não saber o que era uma pipa pareceu ter abalado Pedro profundamente. O rapaz fica estático, repentinamente.
— O quê?! Você não sabe o que é uma pipa? — questionou.
Vendo que ela apenas balançou a cabeça para os lados em negação, mas que ainda manteve sua expressão abestada, o rapaz não foi capaz de resistir e soltou um longo suspiro.
Ele tinha certeza que existiam pipas nesse mundo. Mas talvez não fosse o caso, vide a expressão curiosa da garota.
— Venha! Eu mesmo vou te mostrar o que é uma pipa! — gritou o rapaz, eufórico, enquanto puxava a garota pela mão.
Entretanto, naquele momento, ele sentiu uma leve resistência por parte dela. Isso o fez parar por alguns momentos para ver o que tinha acontecido.
— Você não quer? — perguntou.
— Na-não é isso! — respondeu a garota, embaraçosamente.
Reparando o tom constrangido de Rebecca, Pedro questionou:
— Ué, então o que foi?
Ela então olha para ele, desviando levemente o olhar, enquanto ela mesma se cobria com um dos lençóis da cama.
— É que… nós dois estamos… er… pelados…
Ao escutar a sentença envergonhada da garota, que neste momento estava escondida em meio às cobertas da cama, Pedro repara em suas próprias partes e vê que ela tem razão. Que vexame.
— Ah, sim. Claro! Erro meu. Hehe…
Apesar disso, Pedro não aparentou estar envergonhado e também não fez questão nenhuma de cobrir suas partes.
Vendo o tom e atitude completamente desavergonhados do rapaz, Rebecca cora repentinamente.
E percebendo isso, Pedro a questiona novamente, enquanto vestia alguma roupa:
— O que houve agora?
— Nada! É só que eu reparei uma coisa… ehr… deixa pra lá! — Ela responde.
E com isso, a curiosidade de Pedro foi despertada.
— Vamos, o que foi? — Ele perguntou.
Rebecca cora ainda mais, antes de deixar alguns murmúrios escaparem de seus lábios.
— É só que… eu andei percebendo e… bem… vo-você… você é um…
— Eu sou um… — Interrompe Pedro — Pera, eu sou “um” o quê? Rebecca!
— Vo-você é um…
Naquele momento, ela reduziu muito o tom de sua voz, que nesse momento parecia um pequeno sussurro.
— Você é um… voyeur…
Infelizmente para ela, o rapaz tinha boa audição.
— O QUÊ?! UM VOYEUR?! REBECCA!
— EU NÃO SOU VOYEUR! — Ele completa, gritando muito alto.
Talvez ter se deixado levar pela emoção não tenha sido uma boa ideia. Pois, por conta do que ocorreu, um pequeno tumulto tomou Vilazinha.
Os cidadãos ficaram curiosos e foram atrás de informações a respeito. Acabou que logo eles descobririam o que era.
E bom, quanto a como eles conseguiriam tal informação, isso não importa. O que importa é que, depois daquele outono, Vilazinha passaria a ser conhecida como “a Cidade dos Voyeurs”.
Mas isso é uma história para outro dia.
…
Enquanto isso, em Jamor…
— Lorde Edward, esse é o último relatório, com isso nós acabamos. — comentou um homem loiro, alto e barbudo.
Ao escutar aquilo, Edward não resistiu e soltou um pequeno grito de alegria.
— Ótimo! — comemorou, se recostando sobre a escrivaninha — Tomem o dia de hoje como folga e vão ver suas famílias! Ahr… Sei que os mantive aqui por muito tempo, mas peço pela compreensão de vocês. Afinal, o Oeste precisa de nós.
Neste momento estavam ele e o visconde John, junto de outros nobres locais e mais uma dúzia de auxiliares e ajudantes. Todos eles estavam reunidos em uma grande sala no prédio da prefeitura, que agora servia de base para Edward.
— Nós entendemos, Lorde Edward! Tudo por Mea e pelo Oeste! — responderam em uníssono.
Eles fizeram como Edward ordenou e, em poucos minutos, toda a grande sala estava vazia. Só sobraram Edward e John, acompanhados por dúzias e dúzias de documentos empilhados, além de uma dezena de escrivaninhas.
Olhando bem, aquele ambiente se assemelhava muito a um escritório da Terra.
— E então, notícias do Leste? — perguntou John.
Edward, que ainda estava assentado sobre sua escrivaninha, o encara lentamente enquanto responde:
— Ah, sim. Mandei alguns homens da primeira divisão disfarçados para lá, ontem pela noite recebi seus relatórios.
Neste momento, John passou a encarar Edward profundamente. Ele estava atento, esperando as próximas palavras do jovem grão-duque.
— Nada mudou. Simel continua fingindo que não teve nada haver com o incidente. Age como se não soubesse de nada e inclusive mandou uma carta, me parabenizando pelo sucesso em reprimir a rebelião local. Como pode ver, é um comportamento completamente contraditório.
— Sim… — concordou John, pensativo.
Percebendo aquilo, o jovem Edward questiona:
— O que foi? Ainda perplexo por eu ter exonerado Pedro do Conselho?
Aquela sentença pegou John de surpresa. Ele até gaguejou um pouco.
— Na-não! Não é isso! É só que… ehr…
— Diga logo o que quer dizer! Você é meu novo conselheiro, não precisa de rodeios para falar comigo. — interrompeu o lorde.
Desta vez foi John a soltar um longo suspiro. Parece que ele ainda não entendia como tudo isso veio a acontecer.
— Por que você me escolheu? Lorde Pedro não é muito melhor nisso do que eu? — perguntou o homem.
Ao escutar o questionamento, Edward deixou de lado o documento que estava analisando e olhou fixamente para John.
E então, se levantando vagarosamente de seu assento, ele caminha até a janela.
Chegando ao local pretendido, o jovem lorde cessa seu silêncio.
— Sabe John, se você me perguntasse isso há seis meses atrás, eu responderia que você está certo.
O visconde aparentemente não entendeu o que Edward quis dizer com isso.
— Seis meses atrás foi quando vocês se conheceram, certo? — Ele pergunta
— Sim. — responde Edward, ainda com o olhar fixo nas janelas — Fomos repentinamente invadidos por várias centenas de mercenários e eu francamente não sabia o que fazer…
Ele fez uma breve pausa, antes de continuar.
— Foi aí que ele apareceu com Beto e então os dois praticamente sozinhos derrotaram todos os mercenários inimigos.
Era nítida a nostalgia com a qual Edward explicava o ocorrido.
— Mas isso não eram só boatos? — questionou John.
— Não. — o jovem grão-duque se apressa em negar — Quando vi Beto destruindo aquelas catapultados sozinho, rodeado de inimigos, achei que estava em um sonho. “O que eles ensinam no Leste?” ou, “como um humano pode ser tão forte?!” foram algumas das coisas que pensei naquele dia.
John ficou em choque por alguns momentos após escutar aquilo. Contudo, para a infelicidade de seu coração, Edward ainda não havia acabado.
— Mas o que mais me impressionou foi a frieza e capacidade de decisão rápida de Pedro. Ele nem piscou quando arrancou o coração do líder inimigo!
— Hum?! Ah, você fala de como ele o enganou para conseguir informações, da execução repentina?
— Sim. — confirma Edward — Também foi ele quem organizou o plano para a tomada de poder do Oeste. A criação do novo exército e a destruição de Gloomer, símbolo da alta-aristocracia local, também foram planos dele. E eu suspeito que até levantar Jamor como capital do Oeste também foi plano dele, afinal, Jamor é o símbolo da aristocracia rural, o novo poder que agora governa.
Naquele momento, a mente do visconde pareceu se abrir. Descobrir isso tudo foi muito repentino.
De uma hora para outra, eles perceberam que estavam sempre dançando na palma da mão de Pedro. “Ele realmente tem só 25 anos?!” — era algo que questionavam.
Assustador. Essa era a única palavra que John achou para descrevê-lo.
— Me-meu lorde, isso significa que…
— Exato! — interrompe Edward — Ele é muito perigoso!
— Entendo… então foi por isso que me escolheu…
John percebeu algo. Todavia, para sua surpresa, Edward comentou:
— Em parte sim. Eu ainda era um tanto inocente na época e não percebi isso. Mas a verdade é que nós não sabemos nada sobre ele e nem sobre suas reais intenções. E isso não é tudo…
— Como assim? — questionou John.
Edward havia recolhido suas mãos da janela, se virando pela primeira vez para a direção de John.
Ele disse com uma voz firme:
— Conversando comigo, Pedro disse que não pretende passar o resto da vida em Mea. Eu o questionei outro dia e ele acabou confessando pra mim que pertence a um clã muito poderoso e misterioso, e que eles o mandaram em uma missão. Além disso, ele e Beto só estavam aqui de passagem quando aquilo aconteceu…
— Isso significa que…
— Sim, — interrompe Edward — nós não podemos continuar a depender assim de Pedro! Uma hora ele vai embora e então, se alguma coisa grande acontecer, estaremos perdidos!
Olhando para aqueles olhos profundos de cor violeta, John sentiu que algo havia mudado. Na verdade, talvez Edward não era mesmo tão inocente como ele pensava.
Não, era algo diferente nesse caso. Comparando o Edward de agora com o de antes, é possível de se perceber que ele havia mudado. Aquele jovem de barba aparada e a atitude altiva de antes ganhou algumas rugas de estresse no rosto.
Elas vieram de brinde, junto com um sombrio par de olheiras e alguma experiência em governar.
Parece que assumir tamanho peso nas costas, suportando a responsabilidade por todas as vidas do Oeste, fez com que ele amadurecesse. O menino estava começando a se tornar um homem.
— Além disso, nós fizemos um acordo…
Aquela última sentença surpreendeu John.