Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 27
Arredores de Gloomer, alguns dias após a batalha de Jamor…
Em um local afastado e verde, existia uma pequena mansão nobre. A residência tinha uma arquitetura gótica que a diferenciava das demais construções de Mea, mais rústicas e menos sofisticadas.
A atmosfera daquele lugar tinha um ar obscuro, por mais que ainda fosse de manhã e não houvesse nuvens no céu.
Na porta, estava um homem de estatura média e cabelos encaracolados. Seus olhos eram castanhos e seu rosto mais belo do que a maioria dos jovens daquela idade.
Era Beto, com seu habitual traje negro.
Ele batia no portão, esperando para ser recebido.
Desse modo, alguns segundos se passaram até que um homem com roupas de mordomo o atendesse.
— Sim? Propriedade da família Barcellos, o que deseja? — questionou.
Beto não tardou em responder: — Fui enviado pelo Lorde Conselheiro para acompanhar Rebecca, me chamo Alberto. Ela está?
O homem então lançou-lhe um olhar inquisitivo. E o analisou de ponta a ponta. Se Beto fosse um pouco mais tímido, com certeza se sentiria invadido.
— Ah, sim. Recebi instruções do tipo, por favor, entre! — disse o mordomo, convidando o rapaz para entrar.
A casa não tinha muros, o que era estranho. Afinal, nobres se importavam muito com a própria segurança. Assim, quando viviam fora das cidades, normalmente mandavam murar suas casas.
Beto o seguiu calmamente, enquanto observava o interior da propriedade.
Não havia muitos empregados. Esse fato deixou Beto um tanto receoso pois, por mais que o pai de Rebecca fosse um simples barão, ele ainda deveria ter posses o suficiente para manter ao menos algumas dúzias de empregados.
Já os móveis e a decoração seguiam o mesmo estilo do restante da casa. Se fosse Pedro ali, ele diria que estava na França da Idade Média. Infelizmente, Beto não só não fazia ideia do que era a “França” como também não entendia o conceito de periodização da história.
Desse modo, a única coisa que ele pensou foi: “Como eu suspeitava, tanto o exterior quanto o interior lembram aquele lugar”.
Enquanto chegava às próprias conclusões, Beto era levado até a sala de espera da mansão.
— Aguarde um momento, sim? — pediu o mordomo.
O rapaz concordou e se assentou em um dos sofás.
Em pouco tempo, um homem veio ao seu encontro. Ele tinha cabelos azuis e olhos de cor lilás, muito parecidos com os de Rebecca.
— Saudações, pentelh… digo, garoto. Saudações, garoto. — cumprimentou o homem, com um tom peculiarmente calmo.
Apesar do comprimento diferenciado, de certa forma até afrontoso, a expressão de Beto não mudou. Aparentemente, ele era imune a piadas (ou xingamentos) do tipo.
— Olá! — respondeu Beto.
— Então você é o safad… digo, o rapaz. Então você é o rapaz que namora a minha filha? — perguntou o homem, com a voz apática e o rosto sério.
Mas Beto rapidamente desfez o mal entendido.
— Não, esse é o meu senhor! É o meu senhor quem trans… quer dizer, namora. É ele quem namora Rebecca, não eu.
— Entendo.
Esse diálogo era estranho. Contudo, os dois pareciam ter se entendido bem.
Alguns segundos de silêncio constrangedor (ou não) se passaram, até que o homem de cabelos azuis decidisse quebrar o gelo.
— E como é esse seu senhor? — Ele perguntou.
Diante desse questionamento, Beto ficou alguns minutos estagnado. Certamente definindo as palavras que usaria para descrever Pedro.
— Ele é forte, bem forte mesmo! — explicou — Também é decidido, impetuoso, às vezes impulsivo e…
Ele hesitou um pouco nessa parte.
— E? — perguntou o homem.
— E imprevisível.
O semblante do homem mudou quando escutou isso. Mas rapidamente voltou ao normal.
— Entendo. — Ele respondeu.
Tendo recebido a deixa, Beto pensou em perguntar uma coisa ao homem de cabelos azuis. Todavia, algo o interrompeu.
Algo não! Digo, alguém.
Era Rebecca, que acabou de chegar.
— Oh, Alberto. Olá! — Ela saudou.
— Olá!
Olhando melhor para o lugar, a garota percebeu que seu pai também estava.
— Pai… não tinha visto você. Olá!
— Olá criatur… digo, Rebecca! Esse pirralho tava me contando como é o seu namorado. — respondeu o homem.
— Pirralho? — ela questionou.
Percebendo seu erro, ele rapidamente se corrigiu, dizendo: — Oh, eu disse isso? Perdão. Na verdade eu queria dizer rapaz. Esse rapaz me contou sobre seu namorado.
— Ah, sim. Eu te disse, não é? Vou passar um tempo com meu namorado, ele é senhor de Vilazinha agora. Alugamos uma casa pra morar enquanto eles terminam a mansão, fica no centro da vila. — explicou a garota.
O homem encarou com um olhar de aprovação, enquanto balançava a cabeça na vertical.
— Sim, sim. Entendo, você cresceu e agora está me trocando por um merdinh… quer dizer, por seu namorado. É isso, certo? — perguntou.
— Sim, é exatamente isso! — respondeu Rebecca.
O olhar apaixonado e tom alegre que ela usou quando o respondeu certamente teria quebrado o espírito de qualquer pai. Todavia, o homem em pé naquela sala era diferente dos outros.
Ele não só não demonstrou qualquer repulsa ou indignação como também parecia… feliz?
— Até que enfim! Eu disse pra sua mãe que um dia você ia sair, parece que eu estava certo.
Rebecca fez uma cara abobada naquele momento.
— Hum?
Beto olhava tudo aquilo calmamente. Sua poker face era incrível, parecia que ele não se importava com nada daquilo.
Entretanto, em sua mente: “Parece que meu senhor se enrolou com uma família problemática dessa vez. Não me envolverei. Não me envolverei. Não me envolverei…”
Pelo que parece, ele arranjou um novo mantra.
— Ah, pai. Não se preocupe. — disse a garota — Vou vim visitar vocês sempre! Hehe…
A alegria do homem se extinguiu ao escutar aquilo.
— Pois bem, venha sempre que quiser! Hump! — Ele respondeu.
Embora o tom de ameaça desse uma impressão equivocada da situação, em seu interior o homem estava muito feliz por sua filha. Talvez um pouco receoso também. Coisa de pai.
Antes que os dois saíssem (com Beto carregando muuuitas malas de Rebecca), os jovens foram parados pelo homem de cabelos azuis.
— Rebecca, traga seu namorado aqui quando vier nos visitar. Quero conhecê-lo.
Dessa vez seu tom era genuinamente sério. Era o seu real desejo conhecer o parceiro que a filha escolheu.
Rebecca assentiu.
Eles então se despediram uma última vez, saíram da mansão e caminharam até uma pequena carruagem. Beto serviu de cocheiro. Rebecca foi atrás com sua bagagem.
— Senhor Othon, eles já foram. — avisou o mordomo.
O homem assentiu, mas continuou olhando pela janela da mansão. Ainda apático, e quem sabe até um tanto triste, ele encarou o sul.
A carruagem ainda podia ser vista ao longe. Aquela era a direção de Vilazinha.
Ao ver sua filha deixando a intimidade do lar daquela forma, o homem não resistiu e soltou um longo suspiro.
— Ahr… Eu realmente espero que esse romance não seja outro de seus esquemas para salvar a amiga.
— Desculpe, mestre, mas não creio que Rebecca vá tão longe assim por algo tão bobo. — alertou o mordomo.
— Pois então acredite. — disse o homem — Eu conheço minha filha, ela é muito inteligente e capaz. Um filhote de falcão, sem dúvidas. Mas mesmo um filhote de falcão é isso ainda… um filhote.
Tinha um ditado que dizia que ninguém entendia melhor um filho do que seus pais. Esse ditado estava correto.
Mesmo sem demonstrar, Othon entendia perfeitamente o coração de sua filha. Ela era uma boa garota (de certa forma, ao menos); todavia, ainda era muito jovem e não conhecia ou ignorava os métodos mais sutis.
— De qualquer forma, em breve retornarei para a família. Sabe a carta de ontem? O patriarca me convocou, eu e Justine. — explicou.
O mordomo parecia se lembrar claramente do que o homem falava. Afinal, ele assentiu com a cabeça.
— Alfred, quando isso acontecer eu quero que você proteja Rebecca!
O homem fez um pedido sério e o mordomo não tardou em responder, como de praxe.
— Sim, mestre. Eu protegerei Rebecca enquanto o senhor e a senhora estiverem fora.
Naquela hora Othon ainda não sabia, mas o leal mordomo levou a promessa muito a sério. Ele a gravou firme e, como um escultor que talha o mármore, a esculpiu em seu coração.
…
Enquanto isso, Beto e Rebecca continuavam normalmente sua jornada até Vilazinha.
Eles passaram por uma ponte improvisada, que ligava duas partes da estrada de terra que foram cortadas por um rio.
Esse rio era muito importante para o Oeste. Sua nascente ficava um pouco antes de Gloomer e sua foz desaguava diretamente no mar ao sul.
A casa dos pais de Rebecca ficava perto dessa nascente.
“Não vi nenhum guarda aqui perto. Mesmo assim, também não tem bandidos. Que estranho…” pensou Beto, analisando a paisagem da floresta.
E aquele não era o único detalhe que chamou a atenção do rapaz. Afinal, ele também não percebeu nenhum guarda enquanto visitava os Barcellos. A casa também não tinha muros e nem guaritas. Sua segurança era péssima, para dizer o mínimo.
Isso deixou a guarda de Beto levantada.
“Talvez seja mesmo o que estava pensando” concluiu Beto, falando internamente consigo mesmo.
Ele então se virou para a janelinha da carruagem e olhou para a garota de cabelos roxos.
— Ei, Rebecca. — chamou.
— Hum? Do que você precisa? — retrucou a garota.
— Responda a próxima pergunta, por favor. — pediu Beto.
A voz do rapaz mudou naquele momento. Ao invés de calma e neutra, ela ficou mais ríspida e grave.
Diante do aceno positivo da garota, ele seguiu adiante.
— Seu sobrenome, “Barcellos”. Vocês são os Barcellos do Culto da Lua, estou certo? — perguntou.
Mas Rebecca não lhe deu uma resposta imediata. Na verdade, ela não lhe deu resposta nenhuma. A parte interior da carruagem continuava silenciosa.
Assim, sentindo um grande receio em suas costas, Beto virou-se para trás, para ver Rebecca.
Mas…
“Como eu suspeitava!” Ele pensou.
Sim, o receio de Beto era verídico. A garota sumiu!
Contudo, seu desaparecimento foi apenas momentâneo. Pois, dois segundos e meio depois, ela reapareceu. E com um par de adagas apontadas direto para a nuca de Beto!
Shiiiiin! Shiiiiiiin!
Mas o plano homicida dela foi ofuscado por um poderoso ato-reflexo do rapaz.
Shiiiiiiiin!
Duas adagas brancas contra uma adaga negra. Todas as três extremamente afiadas e letais.
Como estavam bem próximos um do outro, Beto olhou de relance a face da garota. O que ele viu o fascinou.
Não havia nenhuma expressão no rosto dela. Era vazio.
Aquela figura calma e sombria não se parecia em nada com a garota ingênua e dócil de outrora.
Shiiiiiiiin!
Com outro forte golpe, eles se afastaram.
Depois, ambos se posicionaram em lados opostos daquela estrada de terra, um pouco distantes da carruagem.
E o embate então continuou, com Rebecca atirando o que pareciam ser agulhas afiadas na direção de seu alvo.
Ziiiiiiiu! Pah! Pah!
Todavia, Beto superou facilmente o desafio com seus reflexos superiores.
Shiiiiin!
Mas a garota se aproveitou do momento de distração de seu oponente e atirou um pedaço de pano preto no chão.
Pah! Puuuuf!
Naquele momento, uma pequena nuvem de fumaça negra se espalhou.
Entretanto, mesmo com sua visão parcialmente ofuscada, Beto também fez seu movimento.
Shiiiiiiiiiin!
Um movimento vertical com a adaga. O alvo era a parte de trás da sua coxa.
Shiiiiiiiiin! Pah!
Ferro contra ferro. O rapaz acertou em cheio o próximo movimento de seu adversário.
Mas a luta não durou muito. Pois, logo após o último choque, os dois trocaram um breve aceno e encerraram seus movimentos.
Naquela hora, a expressão no rosto de Rebecca voltou ao normal. Mas seu ar ingênuo e bobo desapareceu completamente.
— Essas técnicas estranhas e a adaga negra… Você é da Irmandade das Sombras, certo? — Ela perguntou.
Beto não disse nada. Mas seu olhar assertivo deu a entender que sim.
Isso foi o suficiente para Rebecca, que continuou dizendo:
— Se esse é o caso, não vou mais lutar contra você. Uma família emergente como a minha não é capaz de resistir a um contragolpe da Irmandade das Sombras.
Beto simplesmente deu de ombros e disse:
— Eu não sou importante o suficiente para que a Irmandade lhe dê um contragolpe, de qualquer forma. E você não conseguiria me matar.
Ouvindo aquilo, Rebecca ficou curiosa.
— Você disse que não é importante, certo?! Mas e Pedro, ele é? — questionou a garota.
Naquele momento, o semblante de Beto ficou sério.
— Se vocês apenas tentassem feri-lo, então esqueça. Não só sua família, mas toda a Sociedade da Lua seria extinta.
Ele falou “seria”, como uma suposição. Entretanto, pelo tom forte de ameaça, ficou óbvio que ele na verdade disse “será”.
Ou seja, segundo ele, Pedro era importante o suficiente para que a Irmandade das Sombras, um grupo misterioso de assassinos, saísse das sombras e declarasse guerra contra metade do continente. E ele não deu a entender que eles perderiam muito com isso.
Sua revelação foi chocante para Rebecca, que ficou ainda mais admirada ao saber que Beto ainda não havia terminado de falar.
— E não acho que isso demoraria mais do que um dia….
“O quê!?” Ela ficou em choque.