Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 29
Na tradicional sala de reuniões do Conselho, dez anciãos debatiam sobre os últimos acontecimentos. Mais especificamente, sobre a ausência de um de seus principais membros.
— Marcus faltou de novo em…
— Sim — assentiu um outro ancião, olhando para a cadeira vazia.
Um terceiro homem se intrometeu na conversa deles.
— Um viajante tem que fazer jus a seu título, não é mesmo? Hohoho!
Ele era gordo e loiro e seu semblante brincalhão certamente combinava com a atitude descontraída.
Bap!
Os três foram interrompidos por um forte tapão na mesa, seguido de um ríspido e grosso berro.
— Muito bem, chega de conversas! Vamos retornar ao tema central dessa reunião.
— Sim, senhor presidente! — responderam em uníssono todos os anciãos.
Todavia, um deles interveio, interrompendo o andamento do evento.
— Ah, é! Antes de continuarmos, eu tenho uma outra pauta menor que tenho que discutir com vocês…
— O que foi, Kremer? — questionou Cássio, com seu semblante levemente alterado pela raiva.
Vendo a ruga que se formou na sobrancelha do homem, o ancião loiro e acima do peso engoliu a saliva à seco.
Não ousando enrolar mais, ele iniciou o assunto:
— O-o relatório do nosso agente. Vocês sabem, aquele que está com o Quarta Geração…
— Sim, o que tem ele? — interrompeu o presidente.
— É que… tem uma garota lá, “Rebecca”, se não me engano. E-eu não acho que deveríamos deixar o garoto se envolver demais com ela!
Aquela última sentença criou uma série de murmúrios entre os presentes. O que, por consequência, deixou Cássio furioso outra vez.
Pah!
— SILÊNCIO! — gritou o ancião.
Quando todos se acalmaram, ele fez um gesto com a mão, indicando a Kremer que continuasse.
E ele assim o fez.
— O problema é que Pedro ainda não tem uma esposa e nem um herdeiro. Então, se ele tiver um filho com erh… uma estrangeira… Bom, eu acho que nem preciso terminar de dizer né? Os senhores e senhoras colegas entendem aonde quero chegar.
E de fato ele não precisou explicar mais. Quase todos os anciãos começaram a assentir com suas cabeças.
Entretanto, “quase todos” não significam “todos”. E assim, um deles levantou uma objeção.
— Ora, ora. Esse foi um discurso digno do “Rei Mercante”! Com certeza, um orador digno do título!
O dono dessa voz jocosa e debochada era Roberto Hernandez, o homem com o rabo de cavalo na cabeça.
— Mas eu acho que nós dois vamos ter que discordar aqui, cabrón. — continuou o homem — Não acho que alguém deva ter o direito de se meter entre um jardineiro e sua flor.
Kremer arregalou os olhos ao escutar a forma como foi chamado por Hernandez. Aliás, ele não sabia qual foi pior, se o apelido ou se a metáfora.
E ele continuou outra vez, dizendo:
— Olhem para mim! Eu sou a prova viva dessa máxima! Um jardineiro pode sim cuidar de várias flores ao mesmo tempo e ainda observar os outros deveres. Haha!
Rúlia quase vomitou quando escutou aquilo. Kreimer rangeu os dentes em fúria. E Cássio… bom, ele teve uma atitude diferente.
— O que o Roberto falou faz sentido. — disse o presidente, para o espanto dos demais — Deixem o garoto ser feliz. Afinal, um dia ele vai ter que se casar e aí essas aventuras vão acabar.
Ele ia continuar a frase, mas então olhou para Hernandez e se sentiu na obrigação de corrigir o que disse: — Ou não…
— Cof! Cof! — continuou outra vez, ajeitando a gola de seu manto carmesim — De qualquer forma, deixem-no em paz por enquanto. Daqui quatro anos e meio ele volta e aí vocês podem apresentar pretendentes dignas para ele.
Os anciões assentiram rapidamente com aquilo e o assunto foi encerrado.
Todavia, Cássio ainda pensou consigo mesmo: “Se envolver em uma guerra de sucessão, armar uma guerra civil com os nobres locais, matar dois mil homens sozinho, se apaixonar por uma estrangeira e estabelecer seu próprio domínio como senhor feudal, reunindo aliados no processo. Tudo isso em apenas seis meses!”
O ancião soltou uma pequena risada de consternação, antes de continuar: “Esse garoto é muito intenso, agora eu vejo. Não foi à toa que o Marcus quis treiná-lo. Eles são muito parecidos! Hahaha!”
— Presidente, do que o senhor está rindo? — perguntou um dos presentes.
— Não é nada. Apenas relembrando o passado. Hahaha!
…
O inverno acabou de começar aqui em Vilazinha. Apesar disso, não tem nenhuma nuvem no céu hoje.
Sol e frio, me sinto em uma geladeira. E não gosto disso.
Não sei o porquê, mas de uns anos pra cá venho gostando cada vez mais do calor e odiando cada vez mais o frio. Deve ser esse negócio de “linhagem” que aqueles dinossauros tanto falam.
Mas não quero me importar com isso agora. Já tenho preocupações demais nesse exato momento.
O motivo? Existem vários!
O principal deles é aquilo ali, oh!
— Oh! O lorde está na vila hoje! Olhem!
— Saudações, lorde Pedro!
— Saudações ao lorde!
Os elogios são sinceros e eu adoro ouvi-los. O problema é quem tá pronunciando eles.
Ou melhor, o visual deles…
— Ei! Vão por logo uma roupa! Isso é uma ordem! — disse para eles.
Infelizmente, os safados não entenderam muito bem.
— Oh! Olhem! O lorde disse para pormos mais dessas roupas! — disse uma vendedora, com um decote MUITO curto.
Ao lado dela, um homem — provavelmente seu marido — gritou alegremente:
— Eu não te disse? Isso significa que ele aprova a nossa cultura! Haha!
— Como sempre, o lorde sabe o que diz. Obrigado, lorde Pedro! — falava um homem com um short curto. Ou era só uma cueca?
Além disso, eu… MEU DEUS! O QUE RAIOS AQUELA VELHINHA TÁ VESTINDO?!
— Olá, jovem lorde! — cumprimentou a velha, com a voz bem ranheta e uma saia curta — Se me permite, ouvi dizer que essa nova moda foi ideia do lorde…
“Não! Não continua! Ao invés disso, vá vestir uma saia de verdade, vovó!” — Eu juro, a vontade de dizer isso pra ela é muito grande agora!
Mas o que ela falou enquanto eu tampava os olhos despertou minha curiosidade.
— Obrigado!
Ela… me agradeceu?
— Sabe, — continua a velha — quando eu era mais jovem, viajei muito pelo país. E visitei muitas outras vilas iguais a essa aqui. Você sabe qual era a diferença entre Vilazinha e os demais vilarejos do país?
Eu respondo rapidamente:
— Não. Eu não sei, minha senhora.
Ela riu.
— Nenhuma. Haha! Por muito tempo, esse foi o problema…
Senti que a voz dela estava mais triste nesse momento. Será que os vilarejos daqui não têm cultura própria?
Que bizarro!
— A senhora tá dizendo que todos eles são iguais? Como assim? — perguntei a ela.
— Não exatamente. Vi umas diferenças aqui e ali mas… eh, no geral, todos eles têm uma coisa em comum: são pobres e mal desenvolvidos. Além disso, como não tem muitas estradas boas, também não tem muito comércio, então normalmente no inverno nós nos viramos como dá.
O que ela disse é verdade. Esse principado tá repleto de trilhas e estradas de terra esburacadas!
Agora no inverno é ainda pior. Chove muito e às vezes neva, ferrando com o nosso solo e deixando tudo enlameado. Os comerciantes também evitam vir pra cá nessa época do ano e isso tá me gerando muitos problemas.
Tsc! A vida de um senhor feudal é uma verdadeira merda!
— Mas tudo mudou depois que o lorde veio…
Hum?! Mudou?
Lendo minha cara de transtorno, a velha se explicou:
— Ah, não se subestime, jovem lorde! Olha só para aquelas muralhas fortes que o senhor mandou reformar.
Em seguida, ela apontou para o chão.
— O senhor também reformou as ruas, colocou pedras nelas. Agora nós não temos mais que nos preocupar com as chuvas. Embora os homens que o senhor mandou para fazer isso fossem um pouquinho barulhentos…
Tsc! Remulus idiotas!
— Mas eles são muito fortes! E fizeram o trabalho muito rápido também. Uma vez estive na Capital e por isso sei… nenhum operário de lá é tão habilidoso quanto os seus guardas pessoais!
É, até ela tem razão. Os remulus são bem fortes comparado às pessoas normais.
Vou dar um descanso pra eles.
— E também, — Ela disse — agora nós temos algo que nos diferencia dos demais. O leite com açúcar e sopa de galinha que o lorde ensinou são deliciosos e a maioria dos vilarejos não fazem isso. Além disso, nós temos essas roupas charmosas. Hehe…
Pelo que ela tá dizendo, o pessoal daqui tá mais feliz porque eu lhes dei… uma cultura?
Então leite com açúcar, guisado de galinha caipira, roupas curtas e… ehr… voyeurismo… cof! cof! Essas coisas são cultura para eles?! Tá tudo bem mesmo?
Pelo visto, a situação é bem mais grave do que eu pensei!
Tá certo, o guisado de galinha e o leite quente com açúcar eu estimulei mesmo.
Fiz um acordo com uns mercadores e donos de bar. Mas isso não é importante aqui.
Cof! Cof!
Agora, o resto…
— Oh! Saudações, lorde Pedro! — exclamava um transeunte que vestia uma… calça rasgada nos joelhos? Pera! Eles têm essa moda também?
É… parece que eu não vou conseguir fazer eles pararem com isso.
Droga! Tenho que tomar mais cuidado quando estiver perto de Rebecca. Sejam palavras ou ações, essa menina sabe como pegar as coisas que eu falo ou faço e usar elas pra me ferrar!
Mas voltando à velha…
Uma coisa me deixou curioso. Como ela sabe tanto?
— E o que a senhora fazia na sua juventude? — perguntei.
— Ah, eu fui dançarina em uma trupe de teatro. Nós fazíamos apresentações para muitos comerciantes e lordes menores. Era uma delícia! Haha!
Ela sorria, mas eu vi que aquele sorriso não era totalmente alegre. Ele escondia algo a mais.
— E por que a senhora voltou? — perguntei.
— Os tempos mudaram, jovem lorde. Hoje ninguém mais contrata trupes errantes. Então eu tive que parar e voltar para minha lojinha de roupas. Haha!
Sei…
Bom, de qualquer forma, não devo perder mais tempo aqui. Velho Mark chega hoje e eu ainda tenho que preparar muitas coisas pra recebê-lo.
Por isso, simplesmente me despeço da velha e vou embora.
— Até mais, jovem lorde! — Ela grita, acenando animadamente para mim.
Até que ela é fofa. Será que eu deveria perguntar seu nome?
Nha… ela já entrou. Deixa pra próxima vez.
…
Horas mais tarde…
— Ora, lorde Pedro. O senhor precisa urgentemente de mais guardas!
Na sala de reuniões, Mark me importunava.
— Já emiti uma ordem de convocação. — Eu disse — Infelizmente, depois do incidente com os mercenários, mais da metade dos guardas morreram ou ficaram incapacitados. E agora, os jovens com idade militar estão com medinho e não querem se alistar.
Tsc! Bando de covardes!
O velho estava sentado numa cadeira de madeira que tinha perto da minha escrivaninha. Seu semblante não era bom.
— Sabe, lorde Pedro. O senhor sozinho é muito poderoso. E seus guardas pessoais também o são, pelo que soube por aí. Contudo…
— Contudo…? — perguntei.
E ele foi muito direto.
— Para a nobreza, números falam mais alto. Sim, o senhor é vassalo de lorde Edward e por isso, mais a sua reputação pessoal como um homem erh… digamos… “maligno”, eu acredito que a maioria dos lordes vá deixá-lo em paz.
Pera, ele disse maligno?! Eu?!
— Mas o senhor disse que depois da sucessão vai sair de Mea por alguns anos, certo?
Assenti. E ele logo voltou a falar:
— Imagina o caos que seus domínios se tornarão sem uma guarda forte o suficiente para manter a paz. E não falo apenas de ameaças externas, alguém de dentro pode surgir e arruinar tudo!
Bom, isso é verdade. Tenho certeza que aquele barão safado só veio até aqui porque não conhece a minha força individual, ou acha que os boatos são mentira.
Pelo que ouvi, muita gente acha isso.
E, como ele não viu muitos homens na minha guarda, pensa que sou fraco. Aquele safado!
— Sobre a guarda, — eu expliquei — já tenho uma ideia de como conseguir mais homens e também já sei como treiná-los bem. Pode demorar um pouco, mas não se preocupe.
Mark relaxou quando escutou que eu tinha um plano. Contudo, eu aposto que a coluna dele enrijeceu quando terminou de ouvir o que eu ainda tinha pra dizer.
— É só pegar alguns garotos à força e socá-los até eles virarem guardas, ora!
— N-não! Lorde Pedro, isso é meio…
— Mas claro, — disse, interrompendo o velho — se não tivermos os números aqui, então é só ir e arrancar dos nobres vizinhos. Tenho certeza que isso resolveria tanto o problema dos guardas, como o problema financeiro que eu tenho.
Sim, meu dinheiro tá praticamente acabado depois de todas essas reformas. A mansão custou muito caro também.
Mas pela cara de surpresa do velho Mark tenho certeza que ele vai concordar com o plano. Ou seja, em dois dias os meus problemas estarão encerrados.
Ou foi o que eu pensei…