Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 31
Na casa do lorde, o senhor de Vilazinha conversava com o conselheiro do Grão-Duque.
— Desculpa, Mark! É que eu vi o contraste e não resisti. Haha!
— Tudo bem, jovem lorde. O erro foi meu também, devo lembrar de sempre limpar a boca depois das refeições.
Os dois estavam sentados em uns bancos de madeira, bem na entrada da sala do primeiro andar. O lugar era bem espaçoso e tinha uma lareira lateral, projetado por Pedro justamente para esse tipo de ocasião.
— Bom, só deixa isso pra lá — disse o rapaz, recostando-se sobre o assento enquanto assoprava sua xícara de chá — Nós somos o que somos e ninguém tem o direito de opinar sobre nossas vidas, não é mesmo?
— Sim… acho que o jovem lorde está correto! — assentiu Mark, também assoprando seu chá.
— Tudo bem, vamos ao que interessa então!
Em seguida, Pedro deu uma pequena golada e continuou a falar:
— Meu plano é fazer desses cachorrinhos verdadeiros “cães de caça”!
O tom de voz firme assustou Mark.
— Cães de caça? — Ele questionou.
— Sim! Como cães, eu quero que eles farejem o que há de errado em Vilazinha, que cassem os criminosos e os perturbadores da paz. Você vai entender melhor daqui umas semanas…
O velho ficou curioso com aquilo.
…
Vinte minutos depois eles estavam todos apostos na entrada da casa, como Pedro ordenou.
— Tudo Bem, vamos começar!
— Sim, lorde Pedro!
O rapaz segurava uma pranchetinha nas mãos e encarava os recrutas fixamente.
— Pastor, Maltês; — Ele disse, traçando uma linha na neve com um graveto — preciso dos dois na minha frente.
Os recrutas apontados se colocaram na frente daquela linha e Pedro prosseguiu com seu discurso.
— Vocês vão correr até aquelas duas árvores ali e voltar. Entenderam?
— Sim, lorde Pedro!
Em seguida, o rapaz fez um gesto de mão e gritou para eles começarem.
— À caça!
Os dois assentiram, antes de tirar os pés do chão. Seus rostos cheios de animação.
Infelizmente, o desempenho não foi condizente com seu entusiasmo.
— Ei! Por quê raios vocês tão andando? — questionou Pedro, furioso.
Pastor, o mais alto e parrudo dos recrutas, até tinha uma boa justificativa. A neve o afundava.
Todavia, Maltês era justamente o contrário — magra e baixinha — e mesmo assim tinha enorme dificuldade em tirar os pés do chão.
Mas Pedro sabia que o clima não era o problema. Isso porque a região onde eles estavam ficava bem na divisa da Zona Temperada, o que na Terra seria chamado de Trópico de Câncer. Ou seja, a neve que os cobria estava longe de ser espessa.
Os dois não sabiam como responder ao lorde. Eles se olharam, mas ficaram calados.
— Por que vocês pararam? Eu não mandei correr?! — Um grito furioso os despertou de seus sonhos.
Eles então continuaram a corrida e, usando a mesma filosofia das tartarugas, mantiveram um ritmo lento e constante. O resultado foi péssimo.
Quando eles chegaram, Pedro mandou outros dois recrutas partirem. A corrida deles não foi muito diferente dos outros, o que deixou o jovem lorde ainda mais desolado.
Foi desse jeito com todos os demais.
O resultado se manteve constante: todos péssimos. E agora os recrutas estavam ofegantes, preguiçosamente apoiados nas laterais de madeira da casa. Alguns até se esqueceram de onde estavam e começaram a brincar na neve.
— Querem ver quem consegue fazer o maior anjo? — perguntou um deles.
— Eu, eu! — responderam outros dois, uma menina normal e um garoto com bigode ralo.
Pedro se segurou para não esmurrar alguém. Aquela cena o deixou puto, analisando os pífios resultados na pranchetinha, enquanto pensava num castigo cruel para os recrutas.
Quando estava treinando os soldados de Edward, o outrora Sargento-Mor criou uma tropa que era ao menos capaz de se virar no campo de batalha.
Mas havia algumas diferenças cruciais entre aquela vez e esta. A primeira delas é que agora ele estava treinando guardas para proteger e manter a ordem na vila. Na outra vez ele treinou soldados para matar.
Pelo que já experienciou, o rapaz sabia que era bom em matar. Todavia, dessa vez ele percebeu que não sabia nada sobre “proteger” ou “manter a ordem”.
Sua especialidade era justamente fazer o contrário: derrubar governos e romper a paz.
Além disso, outra diferença crucial era que os soldados de Edward eram pobres camponeses de meia-idade, interessados em comida e abrigo para suas famílias. Esses caras (e mulheres), por outro lado…
— Lorde Pedro, lorde Pedro! — exclamou um grupo de recrutas — Olha só o anjão que fizemos! Pastor foi o modelo…
“O quê!” pensou Pedro.
— Eu tirei a camisa pra fazer um modelo mais perfeito — avisou o garoto, acenando para eles. A banha de seus braços e barriga balançavam com os movimentos.
Ao ver a cena deplorável do recruta seminu, o jovem lorde quase teve um troço. A veia de sua testa saltou, junto com seus glóbulos oculares e o último pedaço de calma que mantinha.
Grrrr….
Naquela mesma hora, uma pessoa apareceu atrás do rapaz e segurou um de seus ombros. Era Mark, que ficou ao lado de Pedro.
— Jovem lorde, essa é uma parte do treinamento que você falou?
— Não, — Pedro respondeu, contando até três para recuperar o controle de si mesmo — na verdade, eu só queria montar uma ficha com a média da capacidade física deles. Contudo…
— Contudo…? — perguntou o velho.
Antes de responder, Pedro deu uma olhada de relance para os recrutas. O que ele viu agora foi um boneco de neve, mas não um simples.
Aquele boneco de neve estava vestido com roupas estranhas, tinha um nariz feito com galhos de pinheiro e… uma peruca?
Mas o mais impressionante veio a seguir.
— Olha, lorde Pedro! Nós fizemos um boneco pra você. O nome dele é pitbull!
“Agora eles foram longe demais!” pensou Mark, inconscientemente dando alguns passos para trás. O objetivo era não se envolver.
Pedro foi até eles. Ele tinha um semblante sério e dava passos lentos. Mas o que o jovem fez foi…
— Nossa! Que gracinha!
Ele acariciou o boneco.
— Eu só não gostei dessas roupas — ele disse — Mas o resto até que é passável…
— Gostou, lorde? — perguntaram os recrutas.
Pedro assentiu.
Um deles, mais extrovertido, disse: — Olha pro pescoço dele, nós até fizemos o chupão…
“O quê?” — perguntou-se Pedro, ao se lembrar dos frutos da tarde (noite e madrugada) anterior.
Mesmo o refinado velho Mark não se conteve ao ver essa cena, soltou uma gargalhada.
…
Depois do pequeno intervalo, os testes continuaram.
Primeiro Pedro os fez correr novamente, dessa vez pelo interior da mansão. Depois, ele os mandou dar socos e pontapés em uma árvore acolchoada — um dos recrutas se machucou fazendo isso. Por fim, pediu que levantassem alguns halteres de pedra fabricados por ele — Pastor foi o que conseguiu o maior peso.
O resultado disso foi verificado por Pedro e Mark, no escritório da mansão.
— Entendo — disse velho Mark, devolvendo a prancheta a Pedro.
Vendo a expressão de curiosidade dele, o rapaz o questionou:
— Diga! Sei que você não entendeu alguma coisa.
Sem mais rodeios, o velho fez a pergunta:
— Por que a inteligência e a sabedoria estão vazios?
— Ah! Isso… Bom, como você sabe, a maioria dos recrutas não sabe ler ou escrever. Por causa disso não tem como eu aplicar o teste intelectual neles — elucidou.
A explicação satisfez Mark, ao menos parcialmente. Todavia, ele ainda mantinha uma questão importante em mente. Ele sabia que a chance era pequena, mas se o jovem à sua frente respondesse, então a ciência militar de Mea em breve faria um pequeno avanço.
Assim, ele se arriscou:
— Se me permite uma última pergunta, como o senhor fez para calcular esses números? Qual técnica usou?
Conforme o esperado, Pedro não revelou.
— É um segredo. Desculpa, mas não posso te contar — Ele disse, largando a pequena prancheta sobre a mesa.
Aproximando-se do objeto, era possível ver os seguintes resultados:
Atributos |
Força: 15 | Inteligência:(Não Avaliado) |
Destreza: 9 | Sabedoria:(Não avaliado) |
Constituição: 14 | Carisma: 14 |
Vida: 38/38 | Estamina: 29/29 |
“Não fiz uma ficha quando treinava os soldados de Ed, talvez por isso estou tão surpreso com isso. Agora vejo porque o mestre me falou aquelas coisas… Então esse é o padrão de um humano médio?!” Com as mãos sobre a mesa apoiando o queixo, Pedro fez suas reflexões. O rapaz estranhou o quão baixos são os atributos físicos de uma pessoa normal.
Como ele mesmo se lembrou, não foram feitas fichas para os soldados de Ed. Mas além disso, ainda tinha um outro fator: recursos. Recursos estes que ajudaram os soldados a atingir os mais altos patamares possíveis no menor tempo.
Ele já não dispunha mais do ouro roubado de Linn, ou dos ingredientes que trouxe consigo do laboratório de Marcus. O potencial bruto de um corpo humano foi tudo que lhe restou agora.
— É… não adianta. Só tem uma forma de fazer uma pessoa normal se tornar capaz de lutar contra criminosos e valentões com o dobro de sua força ou velocidade. Vou ter que fazer com eles o que vovô fez comigo… e o que o mestre levou a outro patamar quando me treinou.
Ouvindo aquilo atentamente, Mark não pôde deixar de questionar:
— Ao que o senhor se refere, jovem lorde?
Olhando para ele, Pedro devolveu um leve sorriso.
— Vou ensinar pros cães como se caça um lobo, Mark…
…
Depois de algumas horas, Pedro se encontrou novamente com os recrutas. O sol já estava prestes a se pôr, mas isso não o impediu de iniciar as primeiras lições deles.
— Lorde Pedro, por que tem essa pedra gigante aqui? E essas toras, são pra quê? — perguntou uma das recrutas.
— Isso é um tatame, minha cara Basset. — Pedro apontou para a plataforma de pedras. Em seguida, ele se virou para as toras de madeira e disse:
— E aquilo ali é um Mudjong, os novos sacos de pancada de vocês.
Os recrutas não entenderam bem o que ele pretendia. Por isso, ficaram se olhando com uma cara avoada.
— Tudo bem, chega de conversas. Todos em cima do tatame! — ordenou Pedro.
Quando eles subiram, Pedro os separou em fileiras quadrangulares, com quatro deles em cada linha. Tinham quatro colunas ao todo.
— Observem bem os meus movimentos, quero que vocês repitam o que eu fizer — esclareceu o lorde.
Os recrutas assentiram e ele começou.
— Primeiro vou ensiná-los as bases. Firmem os pés no chão, perna direita na frente e esquerda atrás — explicou.
O que ele os mostrou era uma posição clássica das artes-marciais orientais, mais especificamente do Taekwondo. Os recrutas conseguiram fazer parecido, embora meio desengonçados. Alguns tinham as pernas afastadas demais, enquanto outros as mantinham muito juntas. Pedro não se importou muito com aquilo.
Ele então lançou um soco reto, mirando a região do tórax de um adversário imaginário. Os recrutas fizeram igual.
Contudo, o próximo movimento os fez vacilar.
— Okay. Chute pelo alto agora! — exclamou o lorde, mudando um pouco a postura e tirando a perna do chão.
Pah!
O chute dele foi tão forte que criou uma pequena corrente de ar, mesmo ele tendo se contido.
Aquilo deixou os recrutas maravilhados.
— Wow! Eu também quero fazer isso! — exclamou Pastor.
— Sim, sim! Vamos!
— E-eu também! — disse Buldogue, tímida como sempre.
Percebendo o entusiasmo deles, o jovem mestre das artes-marciais ordenou a seus alunos que voltassem para suas posições e tentassem por si mesmos.
Era só um chute simples, não havia como falhar. Ao menos foi isso o que Pedro concluiu em seu íntimo. A realidade, contudo, mostrou que ele estava errado.
Paft! Paft!
— Aí! — choramingaram os recrutas, em sua maioria caídos no chão.
“Eles não escorregaram por causa da pedra, né?” pensou Pedro, inconformado.
Parece que eles não tinham a flexibilidade necessária para um chute daqueles e, por causa disso, acabaram caindo.
“É bem como eu suspeitava, não vou conseguir ensinar o Quinna pra eles assim. Tsc! Se já estão assim com algo tão básico, imagina quando eu os mandar acertar os pontos de chi…” refletiu o jovem lorde, com as mãos apoiando o queixo.
Em seguida ele olhou para o pôr do sol e, como se lembrasse de algo, voltou a seus pensamentos.
“Mas também não adianta nada ficar reclamando. Vamos apenas fazer o que dá.”
Com essa intenção em mente, Pedro agiu.
— Tá, esqueçam o treinamento marcial. Por hoje vocês podem só fazer umas cinquenta flexões e então ir se lavar. Me encontrem no refeitório quando acabarem.
Os recrutas assentiram, mas, antes que terminasse de se virar, um deles o interrompeu.
— Ehr… lorde Pedro.
— Diga! — Pedro dirigiu o olhar para ele.
— Nós não conseguimos fazer tantas flexões e…
— Como é?!