Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 32
Durante aquela semana de treinamento, Pedro se dedicou quase que exclusivamente a ensinar os fundamentos das artes-marciais aos recrutas.
O foco foi técnicas de imobilização, principalmente as do judô.
Alguns se destacaram mais do que outros em certos aspectos, como força ou aprendizado — Pastor foi o mais forte, Chihuahua a que melhor dominou os golpes. Todavia, todos eles conseguiram o básico dos fundamentos.
Assim, no sábado os recrutas voltaram para suas casas. O treinamento, contudo, ainda não terminou.
Esse foi o assunto de Pedro e Mark naquele dia, no escritório da mansão.
— Nossa, o que mais deu trabalho foi o Poodle. O espertinho explicava as técnicas muito bem, algumas até melhor do que eu. Mas quando tentava aplicá-las, por outro lado…
— Entendo — respondeu o velho, arrumando seu cavanhaque com as mãos.
Depois o rapaz seguiu para a próxima pauta.
— Mudando um pouco de assunto, preciso que me fale um pouco mais de Vilazinha, Mark.
— O que deseja saber, jovem lorde? — perguntou.
— Muitas coisas — ele disse, completando: — Primeiro, por que cargas d’água esse lugar tinha um muro? Mesmo sendo mal construído e feito de madeira, ainda assim, não vejo um motivo decente pra uma vila isolada como essa ter um muro… Vilazinha estava nos domínios daquele barão safado, certo? Foi ele que construiu?
Vendo que Pedro chegou precipitadamente às próprias conclusões, Mark decidiu corrigi-lo:
— Não. Na verdade, Vilazinha surgiu de um acampamento militar improvisado durante a Rebelião Republicana. Muitos deles foram atacados e destruídos, mas alguns resistiram à guerra e viraram vilas. Vilazinha é um exemplo disso.
A explicação do velho abriu a cabeça do rapaz. Pedro não sabia quase nada sobre Mea ou a Península.
A biblioteca pessoal de Marcus era rica, mas a maioria dos livros falava de piromancia, herbalismo, feitiços ou sobre as demais áreas da arcana, praticamente ignorando as obras de história ou antropologia.
Como o objetivo inicial de Pedro era a Confederação Arcana, um lugar inundado por livros, ele não trouxe muitos consigo. Nesse sentido, foi ótimo Mark ter ido ajudá-lo.
— Entendi — disse o rapaz.
Em seguida, Pedro retirou alguns documentos e os mostrou ao conhecido.
— O que é isso? — perguntou Mark.
— Um esboço. Juntei os últimos relatórios e coloquei nele os planos para o futuro de Vilazinha.
O título do documento já foi o suficiente para cair o queixo do velho. Ele se recusou a ficar quieto.
— Jovem lorde, i-isso não é um pouco…
— Louco? — interrompeu ele, espreguiçando-se sobre a cadeira, antes de continuar: — Eu sei.
— Mas por que “50 anos em 5”? — perguntou-o.
— Não gostou? Pode chamar de “Plano de Metas” também — disse o rapaz, balançando os ombros — Foi algo que vi lá na minha terra, talvez funcione aqui também…
O velho ainda estava incrédulo — e com razão. Afinal, qualquer um que visse o estado de Vilazinha pensaria a mesma coisa.
O lugar era ermo, cheio de árvores e centenas de metros afastado do rio mais próximo. O motivo disso foi estratégico, pois os inimigos nos barcos teriam que sair e marchar até a antiga base militar.
Além disso, a economia era frágil e, fora as melhorias de Pedro, a vila não tinha infraestrutura nenhuma. Os aldeões sobreviviam à base de culturas locais — como cevada, trigo e cebola —, complementando com a caça e, às vezes, pesca.
No inverno, contudo, os peixes desaguam. Caçar nessa estação era difícil também, por isso os aldeões e comerciantes mais experientes estocavam no outono.
Não sobravam muitos excedentes e Pedro não cobrava impostos deles. Afinal, o Príncipe já fazia isso.
Desse modo, o jovem lorde padecia do investimento necessário para o plano. Mark sabia daquilo, por isso não entendia a ousadia.
— A primeira meta: “Paz, Pão e Terra“; o que isso significa? — Ele perguntou.
— Ah… Isso é… cof! cof! É só uma coisa que aprendi com as aulas da Faculdade…
“Quem é essa Faculdade? Será algum intelectual do Leste?” perguntou-se Mark, que não entendia o conceito de ensino superior.
Pedro então explicou brevemente sobre o objetivo da primeira meta. Qual seja, treinar uma guarda forte para estabelecer a ordem e gerar a paz.
Feito isso ele passaria a expandir o leque de culturas agrícolas, abrindo novas áreas para plantação; o que abrange o pão e parte da terra. Dessas novas áreas, Pedro escolheria algumas para ampliar a cidade, com habitações e prédios públicos.
Era algo muito ousado para uma simples meta. Mas isso só mostrava o tamanho da ambição do novo senhor feudal.
— Como o jovem lorde vai juntar o dinheiro necessário? — perguntou-lhe o velho.
Em resposta Pedro deu um sorriso malicioso. Uma forma indireta de “nem queira saber”.
A nuca de Mark se enrijeceu na hora.
— Não se preocupe com isso — disse o lorde — De qualquer forma, voltando ao assunto dos guardas, lembro que você falou sobre problemas entre os recrutas e os antigos guardas, certo?
— Sim. — Mark balançou a cabeça.
Parece que os antigos ficaram preocupados com o status quo. Eles não queriam perder o emprego.
— É fácil resolver isso — Pedro disse. Depois tirou outra pilha de documentos e os entregou a Mark.
O senhor no final da meia-idade ficou atento, examinando os papéis e escutando atentamente as palavras do homem à sua frente.
— Você entende o conceito de polícia? — perguntou-lhe o rapaz.
Mark obviamente não sabia. Consequentemente, Pedro teve que explicar-lhe o plano.
As pupilas nos olhos do velho se retraíram cada vez mais conforme o discurso ia passando, quando, em certo momento…
— Incrível! — aplaudiu Mark, sem esconder a empolgação — Precisa de algo? Posso pedir a lorde Edward que lhe dê os recursos pra isso, mas você deve permitir copiarmos a ideia em Jamor e nas demais cidades do Oeste.
— Que bom que tocou no assunto, Mark. Você por acaso não teria um pouco de papel e tinta pra me dar? — Pedro pediu. Seu olhar demonstrava uma inocência forçada.
O velho achou fácil, mas não entendeu o porquê disso.
— Sim, jovem lorde. De quanto vai precisar?
— Deixe-me ver… — disse Pedro, analisando a folha na prancheta — Algo em torno de cinco mil folhas e uns cento e dois potes de tinta.
O queixo do velho Mark quase caiu, de novo.
— O quê?!
…
Enquanto Pedro e Mark discutiam o futuro, algumas dezenas de novos convidados se aproximavam de Vilazinha.
Eles estavam prestes a atravessar o rio Manzan. O caudal era afluente do rio Namoa, cuja nascente fica no norte de Gloomer. Ambos os rios batizados em homenagem a divindades locais.
Religiosidade, todavia, não parecia ser o ponto forte daquela trupe de gaudérios.
Um deles, mais encorpado e vestido com uma pele de lobo, disse:
— Tem certeza que cê que fazê isso? Ouvi que o lorde daqui é poderoso pra cacete.
Em resposta, o careca à frente disse:
— São só boatos… não tem muitos guardinha aqui. — Ele era gordo e tinha uma cicatriz do lado do rosto.
A aparência deles combinava com o linguajar, ambos péssimos.
— E mais, quem disse que esses nobre pilantra se importam com os camponês?! — O gordo bateu no peito e continuou: — É só pra a gente roubá eles e fazê bagunça. Quando ele vié atrás nóis corre, pô!
Os homens riram.
— Não esquecê, nóis recebemô muita grana pelo trabalho. O chefi tá confiando em nóis — disse o gordo ao capanga com a pele de lobo.
— Sim, vou avisar os cara…
…
Dois dias depois, os recrutas fizeram uma nova reunião na casa do lorde. Dessa vez o cômodo de encontro foi uma sala de aula improvisada por Pedro.
Alguns deles estranharam ao entrar.
— Tenho certeza que tinha uma parede ali… — comentaram.
Mas o choque foi apenas momentâneo e eles logo descobriram os objetivos do senhor de Vilazinha.
Pedro não pretendia demorar com aquilo. Por isso, iniciou a aula quando viu que todos estavam presentes.
Ele bateu algumas vezes na parede para chamar a atenção deles.
Toc! Toc!
— Muito bem, meus cães. Vou explicar pra vocês o que iremos fazer durante nossas aulas.
Todos os alunos voltaram olhos para ele. As garotas eram as mais atentas.
— Vocês me disseram que ninguém aqui sabe ler, certo?
Eles assentiram e Pedro continuou:
— Pois bem. Para que se tornem os policiais da vila, precisarei que vocês entendam meus decretos e façam relatórios. Ou seja, as senhoritas e senhores vão ter que aprender a ler e a escrever.
— O senhor nos ensinará, lorde Pedro? — perguntaram alguns deles.
— Sim, vou ensiná-los essas coisas — Ele respondeu.
Os recrutas se animaram. Para eles só os mercadores, nobres e burocratas das cidades sabiam essas coisas
Atchim!
— Saúde! — O jovem lorde exclamou, continuando com a aula a seguir.
Primeiro, ele os mostrou a estrutura da língua comum. O sistema de escrita era bem similar ao esperanto da Terra, qual cada letra corresponde a um fonema e cada som é representado por uma letra.
A língua comum era simples e fácil de aprender. Pedro mesmo demorou poucos meses para aprender o idioma e dominar o sistema de escrita.
Os recrutas talvez demorassem um pouco mais, mas com certeza conseguiram fazer ligações de significado muito mais completas que ele. Eram nativos, afinal.
Depois de introduzir o tema e mostrar-lhes as vogais, Pedro pediu que eles mesmo rabiscassem os símbolos em seus cadernos improvisados.
Poucos minutos se passaram, quando o primeiro deles levantou a mão.
— Lorde Pedro, terminei! — exclamou um garoto.
— Magnifico, Poodle! Como suspeitei, você é muito bom com teorias.
“Talvez eu deva fazer Velho Mark ensinar governança a ele. Assim eu teria meu próprio burocrata e poderia sair de boas por aí…” maquinou Pedro, desfrutando antecipadamente de seus futuros momentos de ócio.
Apesar disso, ele sabia que isso agora não passava de um sonho. Poodle poderia ser um bom intelectual, mas um péssimo burocrata e talvez não soubesse governar. Nem todos tinham a firmeza ou a malícia de Pedro, coisas indispensáveis para um político decente.
Por isso, o rapaz balançou a cabeça e voltou sua atenção à aula. Talvez depois ele falasse com Mark sobre o assunto.
— Lorde Pedro, eu também acabei! — avisou uma menina. Ela acabou dois minutos depois de Poodle.
Pedro elogiou e em seguida pegou o papel da mesa dela.
Atchim!
— Saúde! — exclamou Pedro, outra vez.
“Eles estão gripados…? Não são as roupas, né?”, refletiu, concluindo: “Nha… Tenho certeza que meus recrutas não usam aquele troço ridículo. Deve ser só o inverno.”
Todavia, para sua surpresa, um deles falou em voz baixa: — Nossa, Shih-tzu, comprei uma blusinha lindinha pra caramba ontem. Depois vou te mostrar…
Depois de escutar algo que não devia, Pedro se virou para a porta e começou a andar.
Preocupados, alguns alunos perguntaram: — Lorde Pedro, o que houve?
— Vou ali me estapear um pouco, já volto…
…
Algumas horas depois, na sala de recepção da mansão…
As aulas tinham acabado há pouco e Mark se juntou a Pedro para debater assuntos pendentes. O jovem lorde ficou de dar uma explicação mais detalhada sobre a tal “cartilha criminal”, o plano para a polícia da vila.
Ele tinha acabado de recebê-lo e os dois ainda estavam na porta da frente, quando uma série de batidas vieram por trás.
Toc! Toc!
“Quem será a essa hora? O jovem lorde não falou sobre visitas…” pensou Mark.
Pedro os recebeu.
— Oh! Desculpa, não esperava que viessem tão cedo. Entrem, entrem!
Em seguida, os homens entraram na casa. Eles trajavam cotas de couro leve e estavam vestidos com os uniformes da antiga guarda. Eram uns trinta.
E esses foram só os que conseguiram entrar na casa. Mais algumas dúzias deles ficaram esperando no pátio frontal da mansão.
— Lorde Pedro! — chamou um deles, provavelmente o representante do grupo — Se possível, temos um pedido a fazer.
— Pois diga. — O rapaz estendeu-lhe o braço.
— Por favor, deixe-nos participar do treinamento com os recrutas!
Todos eles se curvaram ao fazer o pedido, esperançosos por uma resposta positiva.
— Claro, sempre tem mais espaço no meu canil — Pedro disse, virando-se em direção a Mark.
Vendo aquilo, o pobre Mark já estava pensando em como faria para adquirir a quantidade absurda de tinta e papel que o rapaz iria pedir. Contudo, o pedido foi ainda mais inusitado dessa vez.
— Mark, você pode ensinar esses caras a ler pra mim? — disse Pedro, se apressando para sair pela porta.
— Ah, é! — Ele continuou, como se esquecendo de algo — Trate de dar a eles um pouco de papel e tinta; o triplo dessa vez, Okay?
O pobre velho quase arrancou os cabelos naquela hora, mas então se lembrou que não tinha nenhum.
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Bom, pessoal, a surpresa: