Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 33
Nos subúrbios da vila tinham umas casinhas de madeira, uma do lado da outra — bem espremidinhas.
O lugar era muito afastado do centro, onde estavam o comércio e a base da guarda. Por causa disso, alguns de má índole se aproveitavam do fraco patrulhamento para fazer negócios escusos.
Gil era uma dessas pessoas. No passado, o homem foi um orgulhoso soldado do Príncipe. Agora, não passavam de um contrabandista de armas.
Certa noite, enquanto recebia seus clientes, ele ouviu boatos sobre o novo lorde e seus planos para a guarda.
— Vai levar isso mesmo? Se eles pegarem você…
— O patrulhamento tá fraco, não se preocupa — interrompeu o cliente.
O contrabandista pareceu perplexo com a informação.
— Não soube? — Um outro cliente avisou: — O lorde tava treinando mais guardas, mas agora ele decidiu que tinha que treinar todo o antigo contingente de novo…
— Tão chamando os guardas de polícia agora, né? — comentou o primeiro cliente.
O semblante de Gil era péssimo.
— Podem mudar de nome quantas vezes quiserem — disse o velho — Nunca vão deixar de ser o lixo que sempre foram!
Um dos presentes até ia dizer algo em resposta, mas foi interrompido por uma mão em seu ombro.
Era seu colega, o avisando indiretamente para não contradizer o contrabandista.
“Tsc! Se aquele pirralho não quisesse tanto ser parecido comigo, então talvez…” murmurou o contrabandista consigo mesmo. Em seguida se lembrando de algo que o fez mudar de ideia.
“Não! Não foi culpa dele, foi aquele maldito Grão-Duque e seus subordinados de merda! Eles vão ver, eu vou fuder com tudo. Vou tirar tudo deles!”
Aquele desejo ressoava forte em seu coração.
O rosto dele ficou ainda pior. Só lembrar o nome de Edward era o suficiente para suas veias saltarem de raiva.
Percebendo que o clima ficou estranho, os dois homens se apressaram para sair. Assim, retiraram algumas moedas de cobre de suas bolsas e pagaram o velho.
Pah!
A porta se fechou.
Depois de sair do muquifo, os dois homens caminharam pelo beco, escondendo as adagas nos pedaços de pano sobre suas cinturas.
Um deles espirrou.
Atchim!
— O velho não gosta muito dos guardas, né? — O homem perguntou, usando os braços para limpar o catarro do nariz.
— Não é pra menos, o filho dele era um. Mas parece que morreu na rebelião.
— Sério?
O colega assentiu.
— Ehr… Que Manzan me afogue, mas eu com certeza não queria tá na pele do velho Gil! — exclamou o homem.
— Sim. Perder a mulher e o filho assim, um seguido do outro… não gosto nem de pensar nisso.
O homem balançou a cabeça, como se para esquecer o assunto. Eles então continuaram a caminhada.
— Mudando de tópico — disse o da direita, apontando para a arma branca em sua cintura — Depois daqueles mercenários, muita gente tá pedindo por essas belezinhas lá no bar.
— Sim, a mesma coisa lá na loja.
Quando as vozes se afastaram de vez, um terceiro homem saiu detrás das vielas. Ele estava escondido, espreitando em direção à casinha de madeira no final do beco.
— Outro pacote — murmurou — E esse aqui parece muito melhor que os otro. O cumpadi vai ficá muito feliz! Kekekeke!
O risinho sinistro do marginal ecoava sozinho na calada da noite.
…
Na manhã seguinte, no pátio atrás da mansão…
Os recrutas de Pedro se dividiam em dois grupos. O primeiro treinava golpes nos bonecos Mudjong. Já a segunda metade revezava entre exercícios físicos com halteres de pedra e treino marcial.
Mais cedo, o jovem lorde pediu que o pessoal da velha guarda viesse.
Chegando lá, eles ficaram impressionados. Em cima do tatame de pedra, uma garotinha com cabelo tigelinha usava as costas e os braços para arremessar um homem com o dobro de seu tamanho.
Virando para o lado, eles viram um outro recruta usando as palmas das mãos para estapear uma estranha tora com braços de madeira.
Mas o mais absurdo foi o homem com sobrepeso que levantou dois enormes pedaços de pedra, unidos por uma haste de madeira no meio. Muito forte.
Como habitantes de um lugar tão remoto, os guardas de Vilazinha jamais presenciaram algo do tipo antes.
— Então esse é o treinamento… — murmuraram.
Pedro assentiu. Depois ele se virou para o grupo e perguntou:
— Estão todos aqui?
— Sim, meu lorde! Com exceção dos três que deixamos na patrulha, estão todos aqui — respondeu o representante dos guardas. Provavelmente o homem com a patente mais alta.
Vendo a ansiedade de seus novos alunos, Pedro deu uma batidinha de palmas e em seguida os guiou até um canto afastado do dojô.
Lá, ele lhes perguntou de novo: — estão vendo esses pedaços de pau aí no chão?
— Sim, meu lorde! — responderam em uníssono os guardas.
— São bastões de treino, podem pegar.
Eles fizeram como ordenado.
— Muito bem — disse Pedro — Agora soltem eles.
Os homens ficaram sem entender, mas resolveram fazer o que ele mandou.
Quando os bastões caíram, o lorde voltou a dizer:
— Ótimo, agora peguem novamente os bastões.
A ordem gerou mais confusão ainda nos guardas, mas eles obedeceram e se agacharam para pegar novamente os bastões.
— Okay, larguem o bastão!
As ordens eram confusas e nesse momento um deles decidiu contestar.
— M-mas, meu lorde! Isso é…
— Silêncio! — Pedro não deu margem para desobediência. Assim, aquele homem rapidamente se calou.
Eles então pegaram o bastão. Depois largaram novamente e o pegaram mais uma vez. Aquilo durou o resto da tarde.
Só quando os recrutas foram embora é que a velha guarda pôde descansar.
— Vocês fizeram bem, amanhã quero todos aqui de novo.
O pedido de Pedro despertou algumas caretas dos guardas, mas eles não tinham como contestar. Afinal, tirando o Príncipe e o próprio Edward, ele era o soberano máximo daquele lugar.
Um dia se passou e, meio que à contragosto, eles retornaram ao dojô.
Tudo o que tiveram foi outra série desgastante de duas horas de “pega bastão!” e “solta bastão!”. A diferença foi que dessa vez Pedro acrescentou ainda dois novos movimentos, o “segura bastão!” e o “atira bastão!”.
Eles quase xingaram suas mães por os terem trazido a esse mundo como subordinados de Pedro.
A primeira semana de treinamento deles foi assim, com velho Mark ensinando-os a ler durante as noites e com o lorde os torturando, mandando-os fazer aqueles movimentos estranhos com o bastão, durante as tardes.
No sétimo dia, um deles chorou.
O homem não aguentava mais ver aquele maldito objeto de madeira, nem ficar se agachando para pegá-lo ou o usar para apunhalar o ar. O pior de tudo era fazer essas coisas no frio.
Por isso, no meio do treino ele questionou o lorde:
— Lorde Pedro, o que nós fizemos de errado com o senhor?
Pedro estranhou a pergunta.
— Nada, oras! Fizeram muito bem os movimentos que mandei — disse-lhe o rapaz.
O homem sentiu um enorme receio naquela hora, mas decidiu continuar sua indagação mesmo assim.
— Mas então…
— Chega disso! — Pedro o interrompeu — Vamos, pega esse bastão aí. Vou mostrar um negócio legal pra vocês, bundões.
O homem fez como ordenado e pegou o objeto. Pedro então se virou a outro guarda e disse:
— Você aí! Pega o bastão e vai pra cima dele!
O homem também não entendeu nada, só fez como foi dito.
— Foi mal, Erick — murmurou, antes de investir em direção ao colega.
Quando estavam a poucos metros de distância, o homem desceu o bastão em cima dele. Erick fechou os olhos com medo.
Pah!
Mas para surpresa geral nenhum dos dois se feriu.
— E-ele parou o golpe! — gritaram em uníssono os guardas.
— Mas pera — comentou um deles — Esse não foi o…
— Sim! — interrompeu Pedro — Esse foi o “segura bastão!”. Haha!
Eles ficaram estupefatos. Quem imaginaria que aquela posição estranha teria tamanho efeito?
Mas isso não foi tudo. Em seguida, Pedro se virou ao primeiro homem — aquele que ele mandou atacar — e disse:
— Você! “Vira bastão!”, agora!
Em um contexto diferente, aquela frase não teria sentido nenhum. Mas ele entendia perfeitamente o que deveria ser feito.
O homem deixou que o objeto deslizasse por entre suas mãos até atingir a outra extremidade e em seguida usou o punho para virar o bastão na vertical.
Pah!
O golpe atingiu em cheio o tórax do colega.
— Viram? — perguntou o jovem lorde enquanto o homem se debatia no chão.
Os guardas ficaram incrédulos, impressionados com os movimentos dos dois colegas.
Enquanto isso, Pedro ajudava Erick a se levantar.
— Acho que com isso vocês passaram do primeiro nível, parabéns! — parabenizou o lorde.
Os homens ficaram felizes, com aqueles golpes seria muito mais fácil acabar com as brigas de bar, ou defender suas posições na muralha se alguém atacasse a vila no futuro.
Mas a alegria deles não durou muito.
Em seguida, Pedro os mandou fazer uma fileira. Depois, ele os mandou segurar o bastão em linha reta.
Olhando para eles, Pedro falou:
— Quem deixar o bastão cair vai pagar cinquenta flexões de punho cerrado!
E eles sequer tiveram tempo para raciocinar o que ele quis dizer com aquilo, quando o lorde iniciou seus movimentos ferozes.
Pah!
Um chute na lateral e o objeto escapou das mãos do primeiro homem.
— Cinquenta, agora! — exclamou o rapaz, partindo pra cima do segundo homem.
Pah! Pah! Pah!
— O quê?!
Em certo momento ele entrou no modo automático. Seu corpo passou a chutá-los sozinho, dando liberdade para a mente divagar.
“Beto não mandou nenhuma carta. Será que ele fez mesmo o que eu pedi?” Pedro estava preocupado com a falta de notícias por parte do aliado. A missão dele seria crucial para aplicar o Plano de Metas com sucesso em Vilazinha.
Mas o rapaz decidiu simplesmente confiar nele, esquecendo o assunto por enquanto. Todavia, aquilo não foi a única coisa que o prendeu em sua imersão.
“Rebecca também não deu notícias. Será que a amiga dela tá bem?” perguntou-se, enquanto ajudava no treinamento de sua nova polícia municipal.
Em certo momento um deles o fez despertar do mundo dos pensamentos.
— Ei! Eu disse cinquenta! Você só pagou quarenta e nove! — exclamou o rapaz, antes de piorar ainda mais o treinamento dos pobres homens.
— Quero todo mundo fazendo cem flexões agora! Vamos! Um… Dois… Três…
As tardes deles seriam longas dali em diante.
…
Mas enquanto Pedro criava sua polícia, os gaudérios se escondiam na parte profunda da floresta.
Por preocupação e cautela, o acampamento ficava diametralmente oposto à mansão do lorde.
O sol se punha, quando o líder do bando mandou reunir alguns de seus capangas. Os quatro se sentaram frente a uma fogueira, perto da barraca de peles.
— Eaí, loco! Cês já tem um pacote? — perguntou o líder deles, o gordo com a cicatriz.
— Que cês acha? O viúvo mesmo? — Um homem desatento se virou para seus colegas.
Vendo que a sobrancelha do gordo ficou asseada, o capanga decidiu se explicar.
— Um véio. Parece que o fi dele morreu e a muié também. Ninguém vai sentir falta.
O gordo assentiu.
— Onde é a casa? — perguntou um homem com peles de lobo que acabou de sair da barraca.
Os capangas olharam para ele.
— Na parte ruim, bem longe da base da polícia.
— Polícia? — perguntou o gordo.
— Acho que eles chama os guarda assim aqui…
Ouvindo o relato dos capangas, os dois no comando precipitaram uma ação. Lobo pegou sua clava, dizendo:
— Tanto faz, leva nóis lá!
O gordo concordou e os homens então foram até suas próprias barracas, pegar suas armas e desfazer o acampamento.
— Opa! Finalmente vamos poder sair dessa floresta maldita! — comentou um deles.
— Saudade de uma cama quentinha, né ladrão? — O amigo brincou e eles caíram na gargalhada.
— Sim. Kekekeke!
— Kekekeke!