Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 34
Três semanas depois da convocação…
— Muito bem, vamos começar a aula de hoje — disse o lorde.
Essa turma era um tanto diferenciada, contudo. Os recrutas eram os mesmos, mas seu número tinha reduzido. Na verdade, só haviam quatro deles.
— Poodle, Buldogue, Pastor e Maltês — chamou —, vocês sabem por que estão aqui?
Eles olharam fixos para Pedro e negaram com as cabeças.
— Vocês são os melhores recrutas da minha polícia civil. Por isso terão aulas à parte comigo pelas manhãs, até o final do treinamento.
Aquilo não foi uma surpresa para eles, exceto para o garoto baixinho de cabelos brancos.
— E-eu também? Isso não é um engano? — questionou ele, interrompendo o andamento da aula.
— Sim espertinho, você também — respondeu o lorde que, sem dar espaço para mais questionamentos, bateu palminhas e se dirigiu à louça.
Logo após, a primeira aula da turma especial começou.
— Okay. Poodle, vulgo “o ixperto”, vai ser nosso cão guia hoje. Diga pra nós como é que funciona a polícia, sim?
— Sim, meu lorde! — assentiu o garoto, iniciando a explicação — O policiamento da vila é dividido em duas forças. Primeiro, temos a polícia municipal, que cuida do patrulhamento ostensivo, fazendo patrulhas e guardando os portões. Eles são o escudo da vila.
Os demais concordaram.
— E a outra? — perguntou Pedro — Explique para nós.
— Eu sei! — interrompeu a garota com franja.
Recebendo o aval, ela continuou no lugar do colega:
— A outra é a polícia civil. Nós fazemos investigações e garantimos que a lei do lorde está sendo cumprida. Somos a espada, o cão que fareja!
O entusiasmo da garota era abrasador. Os outros foram na onda, erguendo suas cabeças com orgulho.
Pedro aplaudiu: — Muito bem! Você só se esqueceu de me explicar o que vocês quatro estão fazendo aqui comigo…
Cof! Cof!
— Eu já ia chegar lá…
O lorde sacudiu a cabeça para ela, com uma expressão de “então explique”.
— Nós quatro somos um departamento especial da polícia civil, o departamento criminal.
Dessa vez foi Pastor quem respondeu mais rápido.
— Eu só não entendo uma coisa… — disse ele.
— Pois então diga!
Pedro olhou para ele.
— O lorde disse que nossa função é investigar crimes, mas… o que é um crime? E qual é a diferença entre o nosso trabalho e o restante da polícia civil?
O homem de pé ao lado da louça sorriu.
— Esse é o tema da aula hoje.
Depois, ele deu algumas palminhas no ar e começou a falar.
— Muito bem, turma. Vamos lá! — Dirigindo-se a um quadro improvisado, ele escreveu algumas palavras. — Um crime é um fato típico, ilícito e culpável. E a função de vocês vai ser identificar se esses requisitos se aplicam no caso concreto.
Os quatro alunos fizeram uma cara de quem não entendeu nada. Até uma tartaruguinha no deserto teria mais entendimento da própria situação do que eles naquele momento.
E isso era compreensível. Afinal, há um mês eles nem sabiam ler.
Mas Pedro não parecia se importar muito e deu essa aula mesmo assim.
— O manual de vocês será esse aqui — Ele disse, mostrando o pequeno livreto em suas mãos.
Em seguida o entregou a Poodle, que leu em voz alta.
— “Injustos Criminais: A lei da vila“…
Nesse momento, houve uma outra interrupção.
— Lorde Pedro, o que é um injusto criminal? — Desta vez foi a tímida Buldogue quem perguntou.
— Ora, minha cara Nathalia. Um injusto é a união dos dois elementos principais do crime: tipicidade e ilicitude.
A garota corou um pouco quando Pedro disse seu verdadeiro nome em voz alta.
— Ainda não entendo muito bem… — disse Poodle.
— Okay, é o seguinte: a ilicitude…
E assim, o jovem lorde deu início a uma explicação relativamente complexa sobre a teoria do crime. O que o deixou frustrado o suficiente para criar um manual de direito dedicado aos alunos da polícia no futuro, para que ele não precisasse repetir seis vezes a mesma explicação.
A aula continuou daquela forma pela manhã. Já pela tarde, Pedro e Mark conversaram sobre um assunto muito sério.
…
Na mansão do lorde…
— Relatem ao lorde o que disseram mais cedo para mim, por favor — disse velho Mark às outras três pessoas que o acompanhavam.
A primeira delas, uma jovem camponesa, se apressou ao falar.
— M-meu lorde! Por favor, me ajude!
Ela então caiu de joelhos e começou a chorar. Aquilo deixou Pedro sem jeito.
— O que houve?
— Meu marido… ele ficou doente. Nós vivemos nos campos e ele sempre sai pra plantar, mas… recentemente, ele… ele….
Sniff… Sniff…
Acolhendo a desolada camponesa e olhando para os olhares tristes de seus outros súditos, o jovem lorde concluiu que a situação não era boa.
Por isso, não cobrou de imediato à moça que se explicasse. Ao invés disso, a levantou cuidadosamente e guiou até um banco de madeira perto da lareira.
Depois, pediu que os outros dois também se sentassem e então ofereceu peles para aquecê-los e chá para beberem.
Velho Mark o acompanhou.
— Estão se sentindo melhor? — Pedro arrastou um banquinho para ficar perto deles.
— Sim, meu lorde — respondeu a mulher, um tanto corada e ainda com um pouco de lágrimas nos olhos — Obrigado!
Quando enfim se acalmou, explicou a situação. Ela e o marido viviam nos campos ao sul da vila, onde o solo era mais fértil e tinham menos árvores para disputar nutrientes com os grãos. A maioria dos camponeses fazia o mesmo em tempos de paz.
Pelo que ela contou, os dois perderam tudo com a invasão dos mercenários. Sua casa humilde e suas plantações foram destruídas pelas catapultas e homens de armadura.
Só depois que Pedro e Beto lidaram com os inimigos eles puderam sair das muralhas e recomeçar. Recentemente até tiveram um filhinho.
— Sério? Qual o nome dele? — perguntou o lorde, expectante.
A mulher ficou um pouco sem jeito com a pergunta.
— O-o nome?
— Sim, — confirmou — como ele chama?
A moça respondeu com um tom baixo, quase inaudível.
— Ele se chama… Pedro…
Naquele momento um sorriso gigante foi estampado no rosto do jovem lorde.
— Que gracinha! Quero conhecê-lo — Ele disse.
Mas a expressão da moça ficou triste depois disso.
— Aconteceu alguma coisa com ele? — perguntou.
Ela então voltou a falar e dissertou, entre lágrimas e murmúrios, sobre a situação de sua família.
Há algumas semanas o marido dela ficou muito doente. Isso aconteceu subitamente, sem nenhuma explicação.
Seus braços fortes eram o único sustento da família no inverno, quando não tinham colheitas. Mas o homem mal conseguia se levantar no momento, quem dirá vender a força de trabalho para alguém.
Todavia, o sofrimento do jovem casal aumentou ainda mais no último sábado, quando o filho deles também caiu doente.
— Compreendo. — A situação deixou Pedro pensativo.
“Uma gripe forte o suficiente para deixar um jovem adulto de cama? Será que a nova tendência propiciou o contágio e o surgimento de uma variante? Mas talvez seja um caso isolado, vou precisar averiguar isso.”
Depois de chegar às próprias conclusões, o lorde pediu que os outros dois também contassem sobre seus problemas.
Ambos os casos foram parecidos com o primeiro.
— Tá. — Pedro tomou a palavra novamente — Mark, mande os recrutas e os caras da polícia municipal irem treinar em conjunto hoje, peça para a Chihuahua conduzir tudo.
O velho assentiu e Pedro continuou:
— Também vou precisar que você prepare uma lista detalhada, com todas as plantas medicinais locais, e peça um empréstimo pro Ed em meu nome. Uns cinco mil xilins devem ser o bastante. Faça isso o mais rápido possível!
— Sim, jovem lorde! — exclamou Mark.
Em seguida, Pedro pediu para que os outros dois súditos esperassem na mansão, enquanto ele acompanhava a camponesa aflita.
— Leve estas peles com você, essa que você tá usando também — disse ele, entregando mais algumas peças extras a ela, suas e de Rebecca.
Elas eram grossas e bem luxuosas para um camponês comum.
A moça queria recusar, mas não teve coragem. Ela sabia que sua família precisava daquilo, e também, o semblante do lorde mostrou que ele se zangaria se ela o fizesse.
Depois, ele pediu à jovem que guiasse o caminho. Os campos não ficavam muito longe da mansão, então não demorou muito.
— Okay. Pelo que vejo seu filho não corre perigo não, ele só precisa de um pouco de descanso — diagnosticou com as mãos na testa do garotinho.
— Eu… falei… não falei?! — cuspiu o homem deitado sobre o colchão de palha. Ele estava vermelho de febre e teve muita dificuldade em botar aquelas palavras para fora.
Pedro olhou para ele.
— Tente não falar muito ainda, tudo bem?
O homem escutou a recomendação do lorde com um sorriso no rosto.
— Se é o lorde… quem está… dizendo…
Cof! Cof!
— Marido! — gritou a mulher, assustada.
Eles apoiaram as costas do homem na cabeceira da cama. Quando a tosse cessou, Pedro mediu sua temperatura e pediu que a camponesa preparasse um balde com água quente.
Ela foi rápida e correu até a cozinha, levando a criança consigo no colo.
— Pode falar… meu… lorde… — murmurou o homem, olhando em direção à cozinha.
Ele pegou subitamente a mão de Pedro e continuou: — Quanto tempo… eu tenho?…
Cof! Cof!
A pergunta consternou o jovem. Ele pensou um pouco e falou:
— Vou ser sincero, sua situação não é nada boa…
— Eu vou… morrer? — Ele perguntou.
Pedro suspirou.
— Ainda não dá pra dizer. Não conheço bem essa variante que você pegou e também não entendo muito de medicina, mas vou fazer o que der.
— Medicina? — perguntou o homem.
— É só um nome diferente pra descrever o que faz um curandeiro, não ligue pra isso. — Ele gesticulou com a mão.
Naquele momento a mulher voltou com o balde e Pedro então pediu que ela pegasse um pano limpo. Em seguida a ensinou como fazer uma compressa e o como ela deveria usá-la, instruindo a fazer o mesmo sempre que a febre aumentasse.
A mulher agradeceu e em seguida Pedro conversou a sós com ela. Pediu para avisá-lo se qualquer coisa acontecesse com o homem ou com a criança.
A camponesa agradeceu com lágrimas nos olhos.
Antes de sair, o homem pediu que o rapaz aproximasse a orelha do rosto dele.
— Por favor… cuide deles… se… se eu… morr…
Mas Pedro não deixou que completasse a frase. Fechou a boca do homem com a mão e se levantou.
— Se eu falhar com você, criei seu filho como se fosse meu. Mas eu prometo, não vou falhar! — Com essas palavras, ele saiu da casa.
Uma lágrima caiu do rosto do homem.
— Obrigado…! meu lorde…
Em seguida, ele foi lidar com o restante dos súditos na mansão. O segundo foi a filha de um artesão, ela tinha um caso leve. Já o último foi uma velhinha, mãe de um comerciante local.
Depois de acabar a última visita, o rapaz foi averiguar a situação da vila.
Ele constatou a realidade de seus temores e que, realmente, talvez a nova tendência tenha contribuído para aumentar os casos de gripe, já muito comuns nessa época do ano.
Com um aumento anormal do número de casos, a enfermidade se espalhou mais rápido, sofreu mutações e agora apresentava algumas variantes mais graves.
Todavia, casos como o do primeiro homem ainda eram raros e o mais comum foram casos leves.
“Mandarei Rebecca continuar em Jamor. Com esse surto não é mais seguro aqui.” pensou Pedro.
A escala do evento ainda era pequena, mas Pedro queria cortar o mal pela raiz.
Assim, depois que terminasse de visitar os pacientes mais frágeis, ele decidiu que dedicaria a maior parte de seu tempo para lidar com o problema.
As visitas demoraram três dias.
…
Nesse meio tempo, contudo, os gaudérios não ficaram à toa.
— cês não acha que os camponês dessa vila não é estranho não? — disse um deles, caminhando pelas vielas.
— Como assim, loco?
— Eles gripa atoa, e usa roupas estranha, parece até muié mal amada… — explicou o marginal.
O colega tinha uma teoria.
— Ah… gripe é coisa de mulherzinha e fracote. Aqui só tem isso ladrão.
Os gaudérios deram risada com aquilo.
— Foi igual o cumpadi falou — comentou um dos marginais.
— Cê ouviu a conversa do chefi com o doidão, né? — disse outro deles.
O colega assentiu e, percebendo que estavam prestes a chegar no esconderijo, eles calaram a boca.
— Chefi — chamou um deles.
O gordo com a cicatriz se apresentou, com o semblante muito irritado.
— Tsc! Mesmo morto o disgramado dá trabalho — O gordo vomitou essas palavras, passando as mãos pela nova cicatriz em sua testa.
Em seguida, ele apontou para o cadáver no canto da casa e falou para os capangas:
— Lobo já preparou uma distração pros policia da patrulha, peguem o véio e se livrem dele!
Os três assentiram e, com um pano cobrindo seus narizes, carregaram o cadáver para fora do esconderijo.
O embrulho que eles usaram era chamativo, mas era noite e as ruas estavam desertas, portanto ninguém veio ao seu encontro.
Eles arrastaram o corpo até uma região mais erma da muralha.
O lorde a tinha reformado, entretanto, como recentemente o patrulhamento ficou baixo e nenhum guarda andava naquela região, o contrabandista aproveitou-se para cavar um pequeno buraco por baixo dela. Os gaudérios o aproveitaram para transportar suas armas antes e o cadáver do pobre contrabandista agora.
— Pronto, já tirei a moita — disse um deles.
Os outros dois assentiram e então se esgueiraram por entre a fresta. Eles trouxeram o cadáver consigo.
Quando enfim saíram, um deles perguntou:
— E agora? Onde nóis vai enterrá o pacote?
Os outros dois se olharam com uma cara confusa. Eles também não sabiam.