Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 35
Antes de sair de Vilazinha, Pedro foi falar com Mark.
— Sobre as plantas que você colocou nessa lista, como assim não tem nenhuma à venda? — questionou o rapaz.
— É inverno agora, jovem lorde. Os nobres fizeram monopólio para suas próprias populações e nenhum comerciante quer vender para nós.
O conselheiro até pensou em informar que todos os lances que ele fez com o empréstimo de Ed foram cobertos por outros nobres, mas, considerando o temperamento explosivo do jovem à sua frente, decidiu manter esse segredo para si.
— Tanto faz, só use esses xilins para aliviar a fome do pessoal então. Favoreça aqueles que têm crianças menores em casa e os que não consigam trabalhar.
Fora os recursos escassos, o rapaz ainda tinha um outro problema. Ele próprio não entendia muito de medicina, só primeiros socorros. Além disso, não havia ninguém com tal destreza em Vilazinha.
O conhecimento médico era muito limitado neste lugar, bem como qualquer tipo de conhecimento, aliás.
Pedro pensou em pedir a Edward o médico que viu em Jamor, mas foi impedido de fazer isso. Como o Grão-Duque era da família real, os médicos da corte estavam sempre disponíveis, mas somente para ele.
Usar os recursos da família real para favorecer um aliado violava as regras que o príncipe estabeleceu para a sucessão.
E acontece que, fora da corte do Príncipe, não existem muitos médicos disponíveis em Mea. Quanto às raras exceções, ou já foram cooptados pela nobreza, ou simplesmente não se importavam com um vilarejo tão insignificante como Vilazinha (— e tinham medo de um certo lorde, maligno e com temperamento instável, que vivia na região).
— Todos os convites que fiz foram recusados — explicou velho Mark.
Isso deixou Pedro em uma saia justa. Ele até queria sequestrar um médico de algum nobre ou até do próprio Príncipe, mas isso só criaria problemas para seus aldeões e camponeses quando ele saísse de Mea. O jovem senhor, portanto, decidiu valer-se de outros meios.
Quanto ao que ele fez, bom…
…
— Essas mansões nobres são muito fáceis de invadir. Hehe! — murmurou uma sombra na noite.
Era Pedro, que aparentemente estava invadindo a casa de um certo visconde nortenho, famoso por abrigar um médico conceituado em seus domínios.
Dois dias tinham se passado desde que ele terminou de estabilizar os casos mais graves.
O rapaz estava mascarado e todo coberto de preto, de modo que a única maneira de o reconhecer era se ele mesmo quisesse isso.
“Quando espanquei aquele guarda mais cedo, ele disse que o cara morava na seção norte. Falou também que ele tinha um prédio só dele e que era muito difícil de entrar. Veremos…” concluiu.
Pedro correu até o lugar. Lá, encontrou seis guardas fortemente armados fazendo guarita.
— Que prédio grande, deve ter muitas ervas medicinais lá. — A máscara escondia seu olhar maledicente.
Em seguida, palavras estranhas saíram da boca do rapaz e o tempo foi forçado a desacelerar.
Crack! Sons de estalos soaram e, dois segundos depois, toda a guarita desapareceu.
A realidade é que Pedro se aproveitou do [grito dracônico] para afastar os corpos da entrada principal do prédio.
— Armas brancas fazem muito barulho, com poucos adversários o melhor é usar o bom e velho “quebra-pescoços”— comentou baixinho, enquanto arrastava os dois últimos corpos para a mata lateral.
Depois disso ele adentrou o edifício. Tinha três andares e cobria uma área ampla.
Dentro do lugar ele se espreitou, rente às paredes e usando a falta de iluminação para eliminar qualquer um que cruzasse com ele. Contudo, só duas vítimas tiveram esse azar.
“Tá, já usei o [grito dracônico] duas vezes. Isso durou uns seis segundos, então ainda restam uns cinco segundos antes da minha mana acabar” recapitulou o invasor.
Em seguida, ele abaixou lentamente o cadáver apoiado em seu peito. O peso de carne foi largado no chão.
“Tem uns quartos ali, vou ver.” pensou.
Pedro estava no terceiro andar agora e, chegando mais perto, viu um grande corredor. Tinham portas em ambas laterais. A curiosidade fez que ele as arrombasse logo, iniciando o saque.
Laboratórios e livros, isso foi tudo o que encontrou, entretanto. Quanto às plantas medicinais, não havia nenhum sinal.
“Tsc! Vou precisar achar o tal médico se quiser ter sucesso rápido.” Com esse objetivo em mente, o vulto espreitou por entre as sombras e foi em direção ao único quarto iluminado, no final do corredor.
Chegando perto dele, Pedro ouviu alguns barulhos estranhos.
Ain! Orf…
Ãn… Arh…
— Vai mais rápido, sua puta!
“Pelo visto o médico tá com um paciente importante agora. Hehe…” Pedro pensou. Seu ouvido pressionado contra a porta.
A festa estava divertida, mas o rapaz não tinha tempo. Assim, a porta do médico teve que desaparecer.
Pah!
— Tá bom, a consulta acabou! Me falem agora onde estão as plantas e livros medicinai…!!
“Ãn?!”
A voz de Pedro cessou à medida que ele viu quem estava dentro do quarto do médico. Ou melhor, quando ele viu o que essa pessoa tinha.
— I-isso é… você tem um… ehr…?
O rosto de Pedro ficou vermelho e ele logo desviou o olhar.
Acontece que a “paciente” do médico não era bem uma paciente, ao menos não da cintura para baixo.
O mascarado ficou horrorizado com aquilo. Todavia, parece que uma de suas dúvidas interiores foi sanada.
“Então aqui também tem travestis? Caraca, é bem maior que o meu…” Ele pensou.
E o médico, é claro, se assustou com aquela invasão súbita de sua intimidade.
— Quem é você? Saia daqui, agora! — gritou o homem.
Enquanto isso, a “paciente” se escondeu por debaixo dos lençóis, tímida por alguém além de seu amante descobrir tal segredo.
A verdade era que o próprio Pedro ficou sem saber o que fazer. Em sua mente, ele não tinha nenhuma razão plausível para matar o médico, só queria espancá-lo e roubar os remédios que precisava.
Quanto à mulher, ele nem sabia de sua existência e portanto não tinha essa pretensão, mas não podia espancá-la também — isso seria homofobia, afinal.
Voltar de mãos vazias também era problemático, contudo.
Felizmente, o próprio médico decidiu as próximas ações por ele, ao cometer a burrice de correr da cama e gritar.
— Guardas! Venham já! Temos um intruso!
“É… que seja!” pensou o rapaz, avançando como um flash contra o médico.
Primeiramente, ele deu um murro muito potente no rosto do homem.
Pah!
O oponente voou até bater no primeiro obstáculo que encontrou. Com isso, nem as estantes e nem a coluna do coitado voltariam a ser as mesmas novamente.
— Quanto à você, xiuuu… — Pedro colocou o dedo indicador sobre os lábios da “paciente”, instruindo-a a ficar quieta.
Ela acenou com a cabeça desesperadamente.
O rapaz então carregou o médico desmaiado para fora do quarto, mas só depois de amarrar a garota na cama.
Ela olhou para a porta de relance, só para ver seu amado ser levado ao quartinho do lado pelo homem camuflado.
Lá dentro, Pedro colocou a vítima na cadeira e o estapeou.
Pah! Pah!
— Acorda!
Pah!
Pah!
Algumas dezenas de segundos depois, o homem abriu a boca.
— Grrrrr! Eu acordei no primeiro tapa, seu idiota!
Mas Pedro não gostou da resposta, então…
Pah!
Pah!
— T-tá bom! E-eu não faço mais isso! — choramingou o médico, já com as bochechas inchadas e o rosto parcialmente desfigurado.
— Muito bem, — disse o mascarado — então nós podemos conversar.
Ele extraiu todas as informações possíveis do médico, que concordou em dá-las em troca do restante de sua integridade física.
— Então as medicinas estão no corredor três, no porão secreto próximo da ala leste. É isso?
Ele assentiu.
— Bom.
O rapaz já estava prestes a terminar, quando sentiu um ataque súbito vindo por trás.
— Larga meu homem, agora! — A paciente correu com um pedaço das prateleiras nas mãos.
Ela foi até o rapaz mascarado e desceu o objeto na cabeça dele.
Pah!
Todavia, o que ela não esperava aconteceu. O objeto se estilhaçou com o impacto — a cabeça, contudo, continuou lá.
Ser pego por trás por um transexual de outro mundo não foi uma experiência lá muito agradável a Pedro. O rapaz teve dificuldade em segurar seus impulsos depois disso.
Assim, ele agarrou os ombros da garota com força e lançou um olhar maligno. Havia fogo em seus olhos.
— Você já rezou hoje?
…
Meia hora depois, o rapaz mascarado saiu de fininho da mansão do visconde. Ele trouxe consigo dois grandes sacos, cheios de medicinas, livros e cadernos de anotação do médico.
A ideia era atrair a menor atenção possível para si. Apesar disso, o rapaz já tinha matado nove pessoas naquele noite — e colocado outras duas pra dormir de um jeito, digamos… bem peculiar. Mas isso não vem ao caso.
Naquele momento, o rapaz já decidiu deixar o assunto de lado. Isso era necessário para sua masculinidade.
“Foi fácil, mas estou traumatizado. Como pensei, ainda não consigo esquecer aquele carnaval em Floripa…” refletiu, relembrando suas aventuras juvenis.
Todavia, suas memórias sofreram uma interrupção súbita.
— O que é essa aura? — perguntou-se. Seu olhar virado para o Norte.
Uma voz ressoou de lá.
— Então eu não posso sair nem por uma semana, que um ladrão invade minha propriedade?! — O tom era grave e audível e estava claro que a cólera há muito já tomou a pessoa por trás dessa frase.
Pedro manteve seu olhar fixo no bosque atrás da planície. De lá saiu um grupo de cavaleiros fortemente armados.
Ele os avaliou. Palafréns encouraçados, homens de armadura completa e lanças longas. Vestiam aço da cabeça aos pés.
Pelo que observou eram vinte e um ao todo, cada um emanando uma aura opressora e cruel.
Aqueles homens, contudo, não foram os únicos avançando em direção à Pedro. Do oeste, onde estava a mansão, saíram mais uns cem e eles já estavam mudando suas posições para criar um círculo ao redor do rapaz.
“Quando eles tiveram tempo de se armar?” O rapaz ficou em choque com a capacidade defensiva rápida dos adversários.
Ele até pensou em se deixar ser cercado, só para capturar mais almas, mas isso o atrasaria e o faria perder parte das medicinas. Ele estava preocupado com o surto de gripe também, tinha que voltar rápido. Além disso, existia uma chance enorme de ter sua identidade descoberta e isso se virar contra Vilazinha no futuro.
Fugir não era uma opção também. Pedro os subestimou. Em alguns segundos os inimigos cortaram as rotas de fuga, de modo que o único jeito de escapar seria usando sua velocidade sobre-humana.
Entretanto, aí as chances de ser descoberto são tão altas quanto se ele matasse todos eles.
“O que fazer?” Essa dúvida o corroía. Sua calma interior estava a um fio de colapsar e ele já uma pessoa lá muito paciente, para começar.
A insegurança tomou conta do coração e o fez desejar recuar. Mas não havia tempo, essa não era uma opção. Os cavalos estavam se aproximando, ele tinha que agir.
“Tsc! Paciência, quem não tem cão casa com o gato.” pensou, olhando para o cavaleiro que se precipitava em sua frente. A lança de aço mirava sua cabeça.
Como um ex-militar e ex-advogado, Pedro sabia que só havia uma coisa a se fazer quando a lógica falhava.
— Que se dane a lógica. Venham! — Ele agiu com o coração.
“O quê? Ele está vindo para cima de nós?” pensaram os homens.
A atitude era ousada. Eles não esperavam pela próxima ação do rapaz, que pulou na frente do primeiro cavaleiro.
Em seguida, tirou-lhe do cavalo. Nesse meio tempo, o homem até tentou estocá-lo com a lança, mas o rapaz era muito ágil e, com um golpe estranho envolvendo a palma das mãos, despojou o homem de ambos: arma e montaria.
Em seguida, ele correu com o cavalo em direção ao bosque. Essa parte do espetáculo foi pífia.
Os movimentos do animal eram estranhos e desajeitados. Ficou latente para eles que o invasor não dominava a arte da cavalaria.
Ele foi perseguido, é claro, mas logo ao adentrar fez algo ainda mais absurdo do que antes.
— Ele… pulou do cavalo? — perguntaram-se os homens.
Eles sabiam que abandonar o veículo de fuga, durante a fuga, era burrice. Como o oponente conseguiu desarmar um cavaleiro no soco e também invadir uma propriedade daquele porte sem ser percebido, eles não pensaram que o ato dele foi impensado.
E não foi, de fato.
Quando pulou, Pedro se apoiou rapidamente nos galhos da árvore e em seguida a escalou. Ele era rápido.
A técnica de escalada era polida, os cavaleiros perceberam isso.
— Caramba! Quantos metros ele já subiu, seis?
— Não, — corrigiu um colega — pelo menos uns oito.
Mas o homem que vinha atrás os corrigiu novamente.
— Foram nove metros e quarenta e dois centímetros — disse o cavaleiro, que também era aquele com a armadura mais chamativa.
— Lorde, o invasor foi para o Leste! — Os homens gritaram, abrindo espaço na formação.
Em seguida, eles viram o ladrão pular por entre as árvores, como se fosse um macaco, escapando do cerco.
— O que fazemos agora? — Eles perguntaram.
O homem com a armadura prateada respondeu: — Continuem! Vou interceptá-lo.
Em seguida ele também pulou do cavalo, utilizando a mesma estratégia que havia visto. O homem era muito veloz também.
O mascarado olhou para trás e viu a perseguição. Ele inclusive avaliou a alta velocidade do velho.
“Passável” comentou em sua mente, completando em voz alta:
— Mas muito longe de poder me alcançar!
Zooooooom!
Vruuuun!
A velocidade do ladrão aumentou em cinco vezes. Foi quando o homem de armadura percebeu que, mesmo se o adversário ficasse parado, ele ainda não seria páreo.
— Quem é aquele mestre? E o que ele roubou da minha casa? — O homem parou, vendo a figura preta se tornar cada vez menor enquanto escapulia por entre as árvores.
Acontece que o gato era na verdade um leopardo.
Naquela noite, em meio à neve e às nuvens que cobriam a lua cheia, o visconde de Douche reaprendeu que ele próprio não passava de uma tartaruga dentro do pote.
Com as mãos cerradas sob a armadura, o homem proclamou: — Seja lá quem for esse mestre da velocidade, nós nos reencontraremos no futuro. Por Näark, eu sinto isso…
…
Enquanto isso, em Vilazinha…
— Nem o senhorzin e nem o boi-bravo dele tão aqui. Vamo aproveitá! — vomitou o gordo com as cicatrizes.
A ausência do lorde chegou aos ouvidos dos gaudérios, pelo que parece.
— Kekekekeke!
Até agora eles maneiravam em suas ações. Todavia, isso foi o medo agindo.
Embora parecesse muito irreal, eles escolheram cautela ao ouvir boatos sobre a personalidade esquentada e força sobrenatural do senhor desses domínios. Também escutaram sobre Beto, pelo visto.
Entretanto, agora que o mesmo estava fora e nenhum de seus aliados ou subordinados problemáticos estava ali, os marginais não tinham mais o que temer. Eles finalmente poderiam fazer o que vieram fazer.
— Os policia tão dormindo agora, vamo! Quero acabá com isso logo — disse o homem vestido de lobo — Os bar só vende leite quente e cerveja ruim!
— Kekekeke!
— Além disso, não tem nenhum putero aqui…
— Kekekeke!
Os homens então se espalharam pelas diversas partes da cidade. Se sua intenção ainda não era clara, o caos causado por eles foi tão resplandecente quanto o dia.
— Kekekeke!