Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 36
Em uma manhã normal, quilômetros a Oeste de Vilazinha…
Duas senhoritas nobres conversavam nos jardins de uma grande mansão.
— Eu saio só alguns meses e é como se o riacho virasse um oceano! — exclamava a garota loira, tentando expressar a imensidão de sua perplexidade. Ela se sentava refinadamente em uma cadeira, provando o chá.
— Hum? Por quê? — perguntou a companheira.
— Ainda não acredito que você tem um noivo, Rebecca! — exclamou, dando goladas rápidas para esconder o espanto.
Rebecca fez o mesmo, mas no seu caso foi por timidez.
Ela corou, respondendo desajeitadamente:
— Pedro não me pediu em casamento ainda… N-nós não somos noivos, só namorados… por enquanto… ehr…
Pelo tom de voz e o rosto ruborizado, a amiga notou que a situação era complicada.
— Mesmo assim, não consigo esconder minha inveja. Me perdoe — Ela disse.
Rebecca arqueou a testa e perguntou:
— Tá tão ruim assim entre você e o Pill?
— Sim, ele nem responde mais minhas cartas — respondeu a loira, desanimada.
Rebecca deixou a xícara na mesa e a encarou enfaticamente.
— Ei, Samantha. Você acha que ele te trocou por alguma vadiazinha republicana?
A expressão da menina ficou ainda pior ao escutar aquilo.
— Espero que não — respondeu a garota — Mas recentemente Papai ficou me pressionando, disse que eu tinha que esquecê-lo, que nosso romance é impossível e que eu deveria…
Pah! Rebecca bateu na mesa, interrompendo os lamentos da amiga.
— E o que aquele idiota do tio John entende?! Ele só quer te juntar com lorde Edward, não é?
Quando ela disse aquilo, foi como se a mente da garota loira se abrisse. Não era como se nunca tivesse pensado na possibilidade antes, mas provavelmente escolheu descartá-la por amor ao pai.
Todavia, o fato ficou evidente demais.
— Realmente, Papai toda hora traz o assunto. Ontem mesmo… ele praticamente me obrigou a jantar com lorde Edward, até saiu da sala mais cedo, dizendo que estava ocupado com os relatórios para nos deixar à sós.
O olhar de Samantha era triste. Ela ficou decepcionada ao saber que estava envolvida em tais planos. Afinal, que garota ficaria feliz descobrindo que foi usada como ferramenta política pelo pai?
Nenhuma. Essa é a resposta.
Sabendo disso, Rebecca se levantou da cadeira e tocou-lhe os ombros.
— Se você quiser, posso voltar lá e dar um jeito em ambos, no Pill e na vadia — Ela disse.
— Por Namoa, Rebecca! Não! — Samantha respondeu, se libertando do abraço da amiga.
A garota de olhos lilases voltou para seu assento a contragosto. Em seguida, pegou a xícara e serviu mais chá, tentando disfarçar o embaraço.
— Tá bom, — assentiu Rebecca — mas acho que eu pelo menos deveria ir falar com o tio John. Não sei porque, mas ele tem muito medo do meu pai, então deve escutar.
Samantha balançou a cabeça enfaticamente.
— Não! Não precisa. Eu mesma vou conversar com ele depois.
Meio relutante, Rebecca assentiu. Em seguida, deu outra golada.
Quando as garotas se preparavam para mudar o assunto, foram interrompidas por uma voz ao fundo.
— Leide Rebecca, uma mensagem chegou para a senhora — avisou o mensageiro.
Ela assentiu e pegou o rolo das mãos dele. Passou lentamente o olho no início mas acelerou à medida que vislumbrava o conteúdo.
Sua expressão facial mudou. Samantha ficou curiosa.
— O que diz?
— Pedro está com problemas — Ela respondeu. Seu semblante preocupado.
“Como assim um surto de gripe!? A nova tendência fez isso…?? Ficar aqui por enquanto…!!? Como assim?!” pensou a garota, enquanto lia o restante da carta.
Os lábios dela se contorceram e suas sobrancelhas cerraram, antes de dizer:
— Samantha, me desculpe, mas preciso ir imediatamente!
A loira ficou sem entender nada enquanto via a amiga juntar seus guardas e ir correndo até o quarto.
Dois minutos depois ela já estava com todas as bagagens em uma carroça, junto com sua comitiva de soldados e preparada para partir.
Antes de puxar as rédeas do palafrém, porém, ela falou à amiga:
— Depois te mando uma carta explicando tudo, a situação agora é de vida ou morte!
Samantha ficou preocupada, mas parou para refletir: “Se é tão ruim assim então ela não devia pedir ajuda? Lorde Pedro e lorde Edward são aliados, certo?”
De fato, era verdade. Mas a “situação de vida e morte” a qual a garota se referia era de outro tipo.
Em cima do cavalo e já a algumas dezenas de quilômetros dela, Rebecca pensou:
“Ele tá tentando usar uma desculpa safada dessas pra me trair? Hump! Pode até fazer isso, mas a vagabunda nunca mais vai conseguir trazer vida a esse mundo depois que eu chegar!”
E assim teve início o segundo maior morticínio da história de Vilazinha até então. O fator-chave foi uma mulher ciumenta.
…
Na mesma noite em que Pedro assaltou o visconde de Douche, os gaudérios colocaram seus planos em ação.
Depois do pôr do sol, o patrulhamento em Vilazinha ficava reduzido. O motivo disso é que esse é um lugar pacato, com uma população que mal ultrapassava mil cabeças; considerando ambos: camponeses e moradores da vila, é óbvio.
Isso, mais o fato que um terço dos vilazinhenses estavam acamados — incluindo metade da polícia —, foi um presente dos céus para os invasores gaudérios.
Naquela noite só havia seis policiais municipais de patrulha.
— Urubú e Padero, cês dois vão guiá os cara até o “Bar do Magro”. Punheta, ocê vai na frente pra catá os “policia da praça”; leva o Perigoso com ocê. Lobo, ocê vai…
No muquifo limítrofe, o gordo com as cicatrizes ordenava seus capangas. Ele os dividiu em grupos menores e confiou pontos de ação específicos a eles.
Rapidamente os homens saíram do beco. Foram aos poucos, em ondas.
— Hoje nóis vai dá trabái di mais, ladrão!
— Kekekeke!
Quando o último grupo deixou as vielas, duas sombras surgiram no local.
Eles estavam escondidos dentro de uma lixeira.
— E você não entendendo o porquê do lorde ter implantado essas coisas na vila… Haha!
— Não enche, Pastor! — respondeu Poodle.
Pelo visto, os dois tinham saído em busca de pistas de um outro caso e sem querer deram de cara com o grupo de criminosos.
Ver o bando de armadura e armas nas mãos fez o alerta deles se acender. Afinal, em sua maioria eram facas e adagas longas, proibidas pelo lorde desde que assumiu a suserania do vilarejo.
Eram mais de vinte homens, pelo que puderam ver. Isso era muito, principalmente considerando a situação atual do contingente.
O motivo de estarem ali era curioso, só retrocedendo algumas horas no tempo para entender…
…
Vilazinha, dojô atrás da mansão.
— Uchi mata, agora! — gritava uma garota baixinha e brava, aplicando um fabuloso golpe no ar.
O restante da turma a copiou.
— Ho!
Alguns dias antes, enquanto se preparavam para o treino das tardes, Mark tinha aparecido. Ele informou a situação conturbada da vila e disse que Pedro saiu para “resolver o problema”, embora o próprio Mark desconhecesse como faria isso.
Em seguida, avisou a todos — polícias municipais e recrutas — que eles deveriam continuar normalmente o treinamento, da forma que o jovem lorde ensinou.
Os dois grupos aceitaram bem isso. Assentiram e então retomaram o treinamento, com Chihuahua assumindo como instrutora marcial.
Todavia, alguns deles ainda se sentiram inconformados com o fato de não poderem fazer nada e, por causa disso, decidiram pôr em prática os ensinamentos de seu professor.
— Vamos caçar! — propôs Poodle.
Os quatro membros do futuro departamento criminal se reuniram naquele dia, depois do treino. Parece que um deles fez uma descoberta.
— Meu pai foi no bar ontem, ele ouviu de um cara que ele tem um amigo, que conhece um cara, que conseguiu surrupiar uma adaga por debaixo dos panos. — A dona dessa voz melodiosa era Maltês, cujos cabelos castanhos formavam uma franja que ia até olho.
— Tá… mas o que isso tem de mais? — questionou Poodle.
— Eu não terminei de contar — retrucou a garota, continuando: — Enfim… como vocês sabem, aqui na vila os civis não podem portar armas com mais de dois palmos de cumprimento se elas forem feitas de metal.
Os outros três concordaram, balançando as cabeças. Maltês continuou:
— Mas a arma que ele viu tinha mais que três palmos e era muito afiada. Então com certeza que alguém está…
— Contrabandeando! — atropelou o baixinho de cabelo branco.
Em seguida, o garoto tomou um baita pescotapa.
Plact!
— Me desculpa! Aí, aí… — implorou o rapaz.
— De qualquer forma, também descobri a identidade do cara — Maltês retomou, parando a surra.
— Qual cara?
— Do vendedor da arma!
“O quê?!” pensou Poodle.
Eles se animam.
— Como você conseguiu isso? — questionou o garoto.
Com uma cara travessa, ela respondeu: — Segredo…
— E quem é? — perguntaram.
— Me sigam! Vou mostrar a vocês…
Chegando na frente de um estabelecimento comum da vila, no lado da rua principal, os quatro recrutas se encararam.
Foram quinze minutos de caminha da mansão do lorde e tanto Poodle quanto Pastor estavam cansados. Buldogue também estava ofegante, mas Maltês estava bem.
— Vamos lá, gente! Nem foi uma corrida tão longa assim… — Ela tentou animá-los.
Os dois garotos fizeram um sinal que dizia: “Fale por você!” enquanto a menina tímida tirava um lenço dos bolsos e limpava o suor.
Em seguida, eles avançaram para a entrada do bar.
Ainda era cedo e por isso o local não tinha clientes, só um homem barbudo atrás do balcão.
— Bem vindos, jovens! O que desejam beber? — Ele perguntou.
Os quatro não responderam e, para a surpresa do homem, também não pediram nenhuma bebida.
— Polícia! — gritou Maltês, sacando de suas vestes um objeto similar a um distintivo.
— A casa caiu, vagabundo!
O homem atrás do balcão ficou confuso com aquilo. A força policial da vila era recente e ele ainda não conhecia como os distintivos funcionavam.
— O que fazemos com ele? — sussurrou Buldogue. A garota foi tímida e desajeitada.
Maltês deu um risinho malicioso pensando na resposta.
— Vamos fazer o que o lorde ensinou. He! he! he!
Alguns minutos se passaram e os quatro então deixaram os aposentos atrás do balcão. As extremidades dos punhos de Pastor estavam rosas, Maltês tinha um sorriso feliz, que ia de uma orelha à outra. Poodle, por sua vez, estava com o olho roxo.
A quarta garota saiu por último, seu semblante estava normal, mas… o que era aquilo nas mãos dela? Um pedaço de pau…? Rachado?!
E que raios ela fez para ficar com aquelas manchas vermelhas no vestido?
— É… acho que ela encontrou a vocação! — comentaram os outros três, embora com graus de preocupação e entonações diferentes.
Quando eles saíram do bar, Poodle se virou e fez um pedido às duas meninas.
— Garotas, vocês podem ir avisar o lorde Mark? Eu e Pastor vamos na frente, para ver o esconderijo do contrabandista.
Elas pareciam ter uma opinião diferente, contudo. Sobretudo Maltês.
— Não. É muito perigoso! — exclamou. — O interrogado disse que ele tem armas lá, muitas delas! E se vocês se ferirem?
— É por isso que estou levando Pastor comigo — respondeu o rapaz. O amigo lhe deu um olhar confiante e flexionou os braços para corroborar.
Mas as garotas continuaram céticas. Poodle então continuou a argumentação.
— Ele tem o dobro do tamanho de qualquer homem, e a força também! — apelou — Além disso, nós só vamos esgueirar e não invadir.
Maltês balançou de novo a cabeça. Receoso, o rapaz usou sua carta na manga.
— Agora que ameaçamos um cliente, a notícia vai chegar rápido ao contrabandista. Temos que garantir que ele não fuja, ou pelo menos descobrir para onde vai se o fizer.
O último argumento mudou a opinião das garotas. De fato, o que ele disse fazia sentido, os quatro não tinham tempo a perder.
Por isso, Maltês aceitou o que ele disse e foi correndo com a colega em direção à estrada para a mansão do lorde. Ela ficava a Oeste dali.
— Vamos, Nathalia! Temos que avisar lorde Mark, o sol já está se pondo.
Ver as duas correr contra o tempo fez os rapazes também se apressarem. De noite seria muito mais fácil para o contrabandista fugir.
“Se bem que a lua está cheia hoje…” Poodle lembrou, diminuindo seus passos.
Pastor o acompanhou.
Pelo que foi constatado, ambos os rapazes não gostavam muito de corridas. Sendo assim, eles fizeram calmamente sua caminhada até o beco do contrabandista.
Chegando lá, ouviram uns gritos grotescos saindo do endereço que o barista entregou.
Gyaa… Kekeke….
Não se aguentando de curiosidade, mas ainda com um pouco de medo, Poodle levou Pastor até a janela da frente do cortiço.
— O sangue do doidão impregnô o trêm todo, ladrão…
— Poisé, loco. Esses véi fede pá carai!
Esse comentário peculiar chamou a atenção de ambos, que se esgueiravam por entre as frestas da janela.
Todavia, ao dar de cara com as dezenas de homens se armando, os dois quase pularam de susto. Se Poodle não tivesse tapado a boca de Pastor, ele teria gritado.
O garoto mais baixo fez uma careta de “precisamos dar o fora daqui!” e o amigo concordou.
Eles precisavam alertar o restante da força policial, ou então esses criminosos fariam uma algazarra na vila.
Entretanto, no meio do caminho a porta começou a se remexer e os dois então se espremeram no lugar mais próximo de um esconderijo que encontraram.
Sim, eles foram para a lixeira.
Kekekkee….
Quando a procissão acabou, os dois recrutas voltaram seus corpos para a mansão do lorde.
Todavia, na metade do caminho Poodle se lembrou de algo e parou.
— Pastor, espera!
— O que foi?
Ele olhou para trás e apontou.
— Pode ter mais deles ali dentro, com mais armas! N-nós precisamos ir lá ver! — A voz do rapaz tremia no final da frase.
Ele estava com medo, quase desistindo e voltando a seu esconderijo na lixeira. As pernas de Pastor estavam trêmulas também.
Contudo, naquela hora os dois se lembraram de uma frase que Pedro disse durante o treinamento. Uma que os tocou muito.
Vendo que pensaram o mesmo, eles se olharam e a repetiram em voz alta, juntos:
— “Se o medo tentar te dominar, dê um chute na cara dele!”
Em seguida, os dois riram e avançaram no esconderijo dos criminosos.
Pah!
— Parado aí, vagabundo!
— A casa caiu!