Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 4
Um ano depois…
Pah! Booom! Poft!
Sons estrondosos faziam o ar regozijar, enquanto escombros de uma pequena colina voavam ao léu.
— Bravo! Você finalmente conseguiu, garoto.
— Obrigado, mestre — agradeceu o rapaz de cabelos castanhos e repleto de poeira. Ele dava tapinhas para afastar a sujeira de suas roupas de treino — tecido simples, porém resistente.
E sim, chutar montanhas também era parte do treinamento. Derrubar as mais pequenas com menos de três chutes era uma espécie de obrigação diária passada a Pedro.
Insano demais? De fato, mas Marcus não parecia pensar assim. Primeiro, o diabo branco aumentou a dificuldade e a quantidade das flexões. Chegaram a dez mil por dia, todas com pesos absurdos.
Depois veio com a ideia de parar o fluxo dos rios com tapas. Derrubar florestas com um soco e assim por diante. Não existia compaixão. Entretanto, o mais incrível nisso foi que o rapaz se adaptou extremamente rápido ao treinamento. Nem reclamava mais. Na verdade, parecia até estar gostando…?!
— O que vem agora, mestre? — perguntou com um sorriso. Seu olhar exalava expectativa.
Marcus também sorriu.
— Muito bem. Esse é o espírito! — Ele então bateu palmas novamente, antes de continuar: — Acho que você tem um físico decente agora. Vamos começar o treinamento marcial.
— E como seria esse treinamento marcial, mestre?
— Muito simples, venha pra cima de mim e tente dar um soco, se você acertar três vezes o treinamento termina. — Ele assumiu a posição e o chamou com um leve aceno de suas mãos.
Pedro ficou sem entender por um tempo. Afinal, ele o informou de sua perícia de luta. Sua força também ficou obvia agora a pouco. Era uma combinação mortal. Será que ele queria morrer?
Ziup! Mas Marcus não deu a chance de recusar e partiu para frente como um flash.
— Se você não vem, então eu vou — disse o ancião, enquanto mirava um chute no peito.
“Rápido! Muito rápido!”, pensou Pedro, cruzando os braços diante do chute em sua frente. Mas não adiantou. Ele voou longe, muito longe. Até acertar com tudo uma grande montanha.
Pah! Boooom! Booom!
Sentiu as costas doerem. A poeira dos escombros pairou por alguns segundos naquele lugar, deixando um gosto árido de terra em sua boca. Ele cuspiu, junto com os resquícios de sangue.
— Me-mestre, cof… cof… você quer me matar?!
Cof.. Cof…
— Ehr… Você se lembra da primeira lição? — perguntou, se aproximando do aluno cambaleante.
— Sim… Uhru.. — Ele limpou os restos da garganta antes. — Foi quando ajudamos os miquinhos.
O mestre assentiu, rodeando a planície atrás da casa. — Sempre que der, ajude os mais fracos!
— Isso! — Pedro confirmou.
Vendo a reação resoluta de seu discípulo, o ancião foi até ele, parando na metade do caminho.
— Agora vem a segunda regra.
— Segunda regra? — O aluno não entendeu, mas logo se arrependeria do preço pela sabedoria.
— Quando você estiver em uma luta, dê muita porrada! Hahaha! — Foi o que ouviu, antes de ter outra rodada de pés vindo em direção ao seu frágil rosto.
“Que saudade do exército!” pensou, antes que a perna de seu mestre o alcançasse de vez.
Pah! Booom! Pah!
…
Naquela mesma noite, na biblioteca…
— Mestre, terminei! Finalmente consegui terminar o volume VI! — avisou o aluno, com um olhar convencido.
— Muito bem, vamos testar seus conhecimentos então. — Ao dizer isso, Marcus tirou novamente a prancheta de madeira e começou a fazer anotações enquanto perguntava ao rapaz: — Qual é a etapa da síntese protéica em que ocorre a junção dos aminoácidos por ligações peptídicas?
— Essa é fácil! Etapa de alongamento — respondeu sagazmente o rapaz, gesticulando.
— Certo! — aplaudiu o professor, parando uns segundos antes de seguir com o teste. — O NaCl conduz corrente elétrica no estado líquido, sólido e em meio aquoso. Verdade ou mentira?
— Falso. Não tem como conduzir corrente elétrica no NaCl em estado sólido. — Ele acertou.
— Ótimo! Agora me diga, Heyek disse que…
E assim continuou pelo restante da noite, até que Marcus achasse que fosse o bastante, se levantando da escrivaninha e cessando as perguntas. Ele mantinha um semblante sério.
— Você já tem uma base decente dos fundamentos. Acho que agora posso te ensinar a catalisar a mana nos objetos físicos e fazê-la reagir com os objetos químicos.
Pedro não conseguiu controlar sua emoção. Se levantou e cerrou o punho como o Goku. Tanto que ficou alegre em saber que estava pronto. O último ano fora difícil, passou noites em claro estudando, igual à época do vestibular. Nem sabe quando, mas aprendeu a gostar daquilo.
Marcus então deu um pequeno sorriso, retirando um pequeno pote de suas mãos. — Tá vendo esse recipiente, garoto? — perguntou.
— Sim. É um composto instável, imagino eu — respondeu com os olhos acirrados, deduzindo.
— Bem, na verdade ele não é tão instável assim. Usei mana pra retardar a reação. Sabe o que isso significa? — Dessa vez o mestre balançou o liquido, mostrando que de fato não reagia.
Pedro ficou rodeado por um ar abobado, o qual refletia seu estado mental. Ele não entendeu como aquilo era cientificamente possível. — Isso significa que você pode controlar a reação…
— Isso mesmo — Marcus reafirmou diligentemente o óbvio. Depois se dirigiu para fora da passagem secreta, chamando o discípulo consigo. — Venha, eu vou te mostrar!
Os dois então foram para o laboratório de Marcus, que ficava na porta ao lado da biblioteca.
“Quantas portas mágicas essa casa tem?”, pensou, impressionado com a engenhosidade aquela morada de fachada simples.
Chegando ao pequeno quarto que servia de laboratório, Marcus se pronunciou. — Pra você controlar a reação é simples, basta influir um pouco de mana. Mas cuidado! Se colocar demais, os produtos vão reagir mais rápido!
— Isso quer dizer que…
— Sim! Vai explodir na sua mão! — explicou.
Glub! Pedro então engoliu um pouco de saliva. Apenas em pensar naquilo explodindo em suas preciosas mãos… Não devia ser algo muito agradável. De fato, nada agradável.
— Vamos testar. — Marcus foi rápido ao arremessar o recipiente na parede.
Kaboom!
— Wow! Isso sim faz estrago! — exclamou o rapaz ao ver as marcas cinzas nas placas de metal.
— Se essa parede não fosse feita de titânio e reforçada pelas inúmeras barreiras que eu coloquei, você iria ver algo ainda mais impressionante — explicou com um ar de orgulho.
Olhando para aquilo, Pedro não pôde deixar de ficar impressionado. Mas Marcus logo se apressou em lhe mostrar outra coisa ainda mais impressionante. Seus truques não acabaram.
— Se isso te impressionou, o que eu vou te mostrar agora provavelmente vai te deixar louco. Muhaha! — disse o diabo de cabelos longos, ajeitando seu jaleco branco simples.
O cientista maluco em seguida estendeu uma das mãos para frente. Pedro olhou atento, ouvindo-o recitar algo em uma língua misteriosa e desconhecida. Algo mágico aconteceu.
Sssssssssssss! Uma grande labareda de fogo se formou, iluminando o recinto.
— Incrível, não é? — perguntou. As chamas ainda estavam saindo de seu membro.
— Fantástico! Como você fez isso, mestre? — questionou o rapaz, animado e já fantasiando com as possibilidades futuras.
Ao ouvir a pergunta, Marcus retraiu as chamas, as extinguiu e aí o explicou: — Fácil. Basta infundir a mana para juntar alguns compostos e usá-los como comburentes. Aí depois você só precisa de…
Esse diálogo deu início a uma longa explicação sobre os princípios da magia.
…
Na manhã seguinte, Pedro acordou cheio de energia. Ele queria testar os novos ensinamentos.
— O mestre disse que eu posso usar as manhãs para aprender a sentir a magia. Ele até me emprestou esse livreto: “Como influir partículas”, ou algo assim…
O rapaz ingeriu o café da manhã da maneira mais rápida que conseguiu. Antes de se dirigir à uma área isolada nas colinas verdejantes tangentes à casa. Lá, tentou recitar aquelas palavras estranhas de antes. Ficou minutos concentrado nisso. Para sua infelicidade, entretanto, nada aconteceu.
Mas sua insistência era a melhor arma que tinha. Por isso tentou novamente. E de novo. E mais uma vez. Mas o triste foi que, igualzinho às outras vezes, nada se adveio. Sua frustração subia, mas nada acontecia. Se concentrou, mas a mana não se moveu. Forçou, mas nem o ar se mexeu.
— Será que eu tô fazendo alguma coisa errada aqui? Qual é a sacanagem? — questionou.
Ele então decidiu revisar aquele livreto novamente e daí tentar de novo. Fez isso, mas não aconteceu. Ainda persistente, foi de novo, mas não deu. Revisou outra vez, nada. Infelizmente, as coisas que tentou não pareciam estar surtindo efeito algum. Aquilo era frustrante.
A manhã passou-se assim, sem sucesso algum, mas repleta de desapontamento. Tal era o preço da vã esperança. Amarga.
…
De noite, Pedro fez uma pergunta a seu professor. — Mestre, por que eu não consigo sentir a magia?
Ouvindo aquilo, Marcus colocou o copo de leite quente sobre a mesa e disse: — Calma rapaz. No início é assim mesmo, você precisa entender a alma do mundo. Algo parecido com quando você aprendeu a usar sua habilidade inata…
— Relaxar e não pensar em nada? — perguntou. Não poderia ser tão simples, não é? Nada era.
— Sim, faça isso. Eu vou te ajudar — respondeu o ancião. Apesar de exigente, ele também era um professor dedicado. Nunca negava uma dúvida bem posta.
Para melhor compreensão, Marcus decidiu levá-lo para o laboratório. Todos os materiais arcanos, alquímicos e afins estavam lá, alguns dos livros também. Era um oásis mágico.
Entregou-lhe uma poção assim que chegaram lá. — Toma! Isso vai te deixar mais sensível às partículas ao nosso redor e pode te ajudar a sentir melhor o mana.
Ansioso que estava, Pedro recebeu o recipiente e o ingeriu sem pensar duas vezes. Ele então assumiu posição de meditação e tentou sentir as coisas ao seu redor. Marcus ajudou, liberando uma energia cristalina e pura de suas palmas. Era mana. E em um estado muito puro ainda.
Pedro estava meditando enquanto aquelas partículas brancas se mexiam freneticamente a seu redor. Estava tentando senti-las, igual a quando aprendeu no livro e com seu professor.
As horas se passaram daquela forma, até que Pedro se mexeu novamente. — Isso! Eu acho que senti alguma coisa. Uma energia quentinha…
Vendo o pequeno sucesso de seu aprendiz, Marcus orientou: — Tente conversar com essa energia. Convença as partículas a irem para perto de você e então as capture!
E ele assim o fez. Primeiramente tentando conversar com a energia ao seu redor, em uma língua que não usava palavras ou sons. Algo mistico. Nem ele entendeu como o fez. Durante algum tempo, foi como se repentinamente entendesse tudo, como se fosse um com o mundo.
— Venha pra mim! — Era como ordenava o seu coração. E as partículas pareciam escutar, já que estavam se movendo vagarosamente até perto dele.
— Isso! Agora absorva elas. Tente armazená-las dentro do seu peito e guie-as com cuidado até o apêndice — Marcus explicou.
Os próximos minutos foram de extrema tensão. O ancião sabia que este momento era o mais crucial para Pedro continuar ou não a trilhar o caminho da magia. Uma falha agora era terrível!
Mas o rapaz superou o desafio.
— Sucesso! — gritou.
E tendo presenciado o sucesso de seu pupilo, Marcus não tentou mais esconder sua emoção.
— Isso, garoto! Você conseguiu! — Ele inconscientemente envolveu o jovem em um forte abraço.
Quando ele se soltou, imediatamente estendeu a mão para tentar por si mesmo. Foi rápido.
Partículas brancas começaram a se mover sobre sua palma, formando um pequeno amontoado de luzes com coloração ciana fraca. Mas a energia reunida rapidamente se dispersou.
— Parece que ainda não consigo fazer feitiços… — O olhar refletiu parte do descontentamento.
— Rapaz, se você conseguisse lançar um feitiço logo depois de ter aprendido a sentir o mana, então o próprio Júpiter desceria dos céus até aqui pra te aplaudir! — explicou Marcus, em um tom extremamente jocoso.
O humor dele deu uma reviravolta de 180º graus. A alegria súbita substituiu a frustração. Orgulhoso de seus feitos recentes, Pedro voltou alegremente ao quarto para dormir.
E o restante dos dias se passaram daquela forma. Magia pela manhã. Treinamento físico e marcial de tarde. E estudo arcano pela noite.
…
Mais dois anos se passaram daquela forma. Até que…
Booom! Booom! Sssssssss!
Enormes labaredas de fogo emergiram dos dois lados diferentes da agora decrépita montanha. O ralo verde da relva sobressalente se misturava em meio ao vermelho das chamas.
Eram Marcus e Pedro, disparando feitiços entre si.
— Desse jeito você nunca vai me acertar, rapaz! — gritou o diabo branco, enquanto se esquivava de uma dessas labaredas.
Booooom! Sssssssss!
— Isso é o que eu chamo de chamariz, mestre — disse o garoto, desviando do feitiço opressivo.
Ele então lançou outro encanto enquanto pressionava fortemente os pés no solo. O objetivo era usar a terceira lei da física para lhe dar impulso com a reação. E com isso, Pedro avançou direto no homem de cabelos prateados do outro lado da montanha. Rápido como um foguete.
Booooooom! Pah!
Marcus utilizou seus punhos para parar a perna adversária. Mas nem ele contava que, justo naquele instante, o feitiço lançado pelo garoto lá atrás chegaria com tudo, atingindo os dois.
— Que estratégia suicida você traçou, garoto!
Mas o que ele não esperava era que Pedro ainda não havia terminado.
— Tiid KLo Ui!
Quando cessou o som, tudo parou. E com o tempo passando várias vezes mais devagar, Pedro se esgueirou rapidamente para fora do raio de alcance daquela labareda de fogo opressiva.
Boooom! Ssssss!
E com isso, o que restava da pobre montanha enfim desabou. Se as montanhas pudessem chorar, esse lugar há muito tempo já teria se transformado em um grande lago.
— Há! Com isso são três. Te venci. Hehe…
Ao escutar a comemoração alta e espalhafatosa de seu discípulo, um Marcos cheio de poeira e cinzas emergiu do local da explosão. Batendo levemente as mãos sobre seu jaleco branco, proclamou de maneira jocosa: — Tudo bem. Esse foi o terceiro golpe que você acertou nos três últimos anos, garoto! Não fique tão arrogante assim…
— Vitória é vitória! Nem vem, mestre — Pedro disse em consternação.
— Você tem um bom ponto — respondeu Marcus, enquanto se aproximava dele.
— Bom, promessa é promessa. Seu treinamento acabou! Mas antes… — Ele então retirou um pequeno pingente branco e entregou a Pedro. — Esse é meu presente de formatura pra você!
O jovem recebeu aquele pequeno objeto com as mãos trêmulas e o encarou por alguns minutos.
— Cuide bem dele! Eu ganhei esse colar de meu mestre antes de me aventurar pelo mundo, como você. Ele vai te ajudar a controlar melhor o mana — explicou.
O rapaz continuou com os olhos fixos no pingente, abaixando levemente a cabeça. — Eu vou sentir saudades, mestre.
Uma gota d’água escorreu de seus olhos. Marcus notou. Foi quando imagens dos últimos anos começaram a inundá-lo. Ele se lembrou dos primeiros dias de treino, Pedro o surpreendeu com aqueles golpes majestosos de artes-marciais. Depois foram os testes de luta, ele foi persistente, mesmo perdendo sempre. Só o acertou pela primeira vez, os dois comemoraram muito.
Isso foi há seis meses. Mas logo depois ele revidou, é claro. Quanto à magia, Pedro era diligente. Ficava horas e horas a mais estudando. Com certeza as madrugadas foram longas, enquanto as noites de sono curtas. Não era só talento, mas esforço também. Pedro mereceu aquilo.
— Eu também, garoto… Eu também… — disse, retendo as lágrimas.
Os dois então se encaram por alguns instantes, com uma expressão jubilosa.
Imagine só!? Essas duas pessoas estiveram juntas pelos últimos três anos, em um relacionamento íntimo de mestre e pupilo.
De modo inconsciente, Pedro passou a enxergar Marcus como uma figura paterna naquele mundo, suprindo a falta que ele sentia de seus familiares e amigos da Terra. Ali, ele foi o seu primeiro amigo. Foi a primeira pessoa a ensinar-lhe sobre o mundo. Foi seu professor.
— Vamos voltar, garoto. Amanhã iremos até o Conselho anunciar a sua formatura — falou, batendo nas costas de seu discípulo.
— Vai ter guisado de galinha hoje, mestre?
— Claro, garoto! Haha!