Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 40
No mesmo inverno em que Pedro enfrentava o surto de gripe em Vilazinha, a centenas de quilômetros ao Leste, Simel também lutava contra os próprios problemas.
— Sim, General. Eu entendo que a fronteira Norte é a nossa prioridade, mas estamos perdendo muito terreno para o Oeste recentemente! — apelava um nobre qualquer, presente na reunião.
— Eu entendo a preocupação do senhor, Conde — respondeu o militar de alto escalão, do outro lado da mesa — Mas o que precisamos agora é resolver nossa situação interna. Manter a fronteira Norte sob nossa influência garante a chegada de insumos pelo mar. Não estou certo, Vossa Alteza?
Os dois homens então olharam para a extremidade da sala. Lá, o assento do grão-duque estava acima de um pequeno altar, demonstrando sua posição superior.
— Sim, General. Sua senhoria acertou. Acabar com essa epidemia é a prioridade — disse. Seu olhar calmo e atitude fria habituais.
Ele então virou para a maga ao lado e ordenou:
— Milla, o relatório da última pesquisa, informe-os.
— Sim — assentiu ela, tirando uma pequena prancheta da mesa e se dirigindo aos membros do alto-escalão.
Virando a primeira folha, ela disse:
— Com os dados que colhemos, descobriu-se um aumento de reclamações de dores pelo corpo, preguiça anormal e sonos mais duradouros. Além disso, quarenta por cento das mulheres relataram ter sofrido algum tipo de infecção, dez por cento nas áreas íntimas…
— Continue — disse Simel.
Ela balançou a cabeça em afirmação.
— Os espécimes que estudamos apresentaram maior vulnerabilidade a doenças, tanto letais quanto não letais, além de redução na força e atividade regenerativa do corpo.
— O que isso significa? — perguntou um oficial.
— A conclusão é que a população está com a imunidade reduzida. Minha hipótese é que isso foi feito artificialmente.
Quando a maga terminou de falar, a expressão dos presentes mudou. Assustaram-se.
— C-como? — perguntou um outro nobre, como se para aferir que aquilo não era uma brincadeira.
Mas a maga repetiu.
— A imunidade média da população foi reduzida artificialmente, só isso explica esse aumento anormal do número de gripes.
Simel concordou, enquanto levantava a mão para impedir mais murmúrios durante a reunião.
Eles entenderam o recado e permaneceram calados.
— Milla desenvolveu um remédio que anula isso — informou, apoiando as mãos em seu trono improvisado. — Mas vou precisar da ajuda de vocês em um assunto.
— Sim, Lorde Simel! — Eles assentiram em uníssono.
O lorde então se virou para a porta. Seu conselheiro acabara de adentrar a sala.
— Tillus, você conseguiu o que eu pedi? — perguntou o Grão-Duque.
Em resposta o velho se aproximou e mostrou um pequeno pedaço de papel de seus bolsos.
— Todos estão aqui? — perguntou o jovem.
— Sim, meu Lorde! — Tillus acenou.
Simel então se virou novamente ao alto escalão e proferiu friamente:
— Então podemos começar. Guardas!
Quando ele aumentou o tom de voz, dez homens fortemente armados entraram na sala. Entre eles estava o cavaleiro loiro.
Os oficiais se assustaram com aquilo.
— L-lorde Simel. O que é isso? — perguntou o conde que falara no início.
Mas Simel não lhe deu resposta direta. Ele apenas acenou para o cavaleiro loiro que no momento já estava atrás do nobre.
— Podem levá-lo — ordenou.
O cavaleiro então agarrou o nobre pelo pescoço, o retirou do assento e manteve parado enquanto outros dois guardas pegavam seus braços.
— Lorde Simel! Isso é um engano! — gritou o homem.
Pah!
Quando os guardas saíram da sala, o suserano de duas regiões colocou o papel em cima da mesa e o arrastou para o homem mais próximo, à direita.
— É uma lista. Aí está o nome de todos os senhores, nobres e comerciantes que estão atrapalhando o recolhimento de insumos. A pena para os nobres é a morte, para os comerciantes a derrama de bens; apliquem-nas! — explicou e ordenou.
O que aconteceu foi que algumas pessoas estavam estocando os insumos desse tipo de remédio, fazendo seus preços subirem e lucrando muito com isso. Tudo normal até aí. Pedro também passou por algo parecido — embora o senhor feudal em questão resolveu isso usando um método, digamos, peculiar. Não disponível a Simel, aliás.
Assim, o verdadeiro problema foi outro. O antídoto de Milla utilizava ingredientes medicinais diversos dos empregados para o aumento da imunidade. De alguma forma, entretanto, a fórmula desses fármacos foi vazada.
Isso só poderia acontecer se alguma pessoa de dentro o fizesse, já que poucos tinham acesso às pesquisas da maga. E acontece que, entre os membros do alto-escalão presentes nessa reunião, o conde capturado era o único com tal acesso.
Se ele vazou ou não a fórmula, contudo, não importava. Simel só queria dar o exemplo do que aconteceria em caso de traição ou desleixo.
Os homens ficaram assustados, mas assentiram.
— Sim, Lorde Simel! Compreendemos!
Depois disso, ele encerrou a reunião e dispensou seus homens. Milla também retornou às suas pesquisas, dando um beijo provocante em Simel antes.
Mas Tillus não deixou a sala.
— É sobre os espiões que mandamos? — perguntou o jovem grão-duque.
O velho acenou positivamente e em seguida começou.
— Do Norte, soubemos que a epidemia também foi controlada. Os nortenhos aparentemente também desenvolveram um imunizante.
“Estranho… Não me lembro de nenhum relatório envolvendo magos de Arcana ou pesquisadores de Solaris nos domínios de Ruffos.” lembrou Simel, sem entender de onde vinha a ciência que o irmão usou para controlar a situação.
— Recentemente, o Lorde Grão-Duque do Norte também recebeu emissários de Eburove. Os boatos dizem que estão relacionados à família real do país — completou Tillus.
Por algum motivo aquilo não o surpreendeu.
— Entendo. Isso explica a calma nas fronteiras com o Norte — concluiu o lorde.
Tillus balançou a cabeça e em seguida deu procedência ao relatório.
— Sobre o Oeste, temos que o Novo Exército do Grão-Duque se mostrou problemático — disse, segurando seu constrangimento — Apesar de pouco experientes com batalhas, os soldados deles têm um estilo de luta que contrasta muito com o nosso…
— Eles pensam com os punhos, alguns generais já informaram. Afinal, o que há de mais nisso? — Simel interrompeu e perguntou.
O conselheiro parou um pouco para respirar e então continuou, dizendo:
— Pelos relatos que temos, os oficiais de médio e alto escalão desse exército treinam suas tropas pessoalmente. Além do mais, só respondem ao próprio Grão-Duque, sem considerar ordens de oficiais antigos ou nobres. — Sua tez ficou perplexa nessa hora. — Eles parecem desconhecer o conceito de morte, ou pior, desprezá-lo!
Simel também franziu um pouco a testa com esse comentário.
— O que meus subordinados estão escondendo de mim? — perguntou.
Tillus foi direto nesse ponto.
— As estratégias deles são imprevisíveis demais. E quase sempre tão arriscadas quanto. Os sobreviventes dos confrontos disseram que… que…
— Que…? — perguntou o lorde.
— Disseram que eles pareciam demônios! — O velho continuou: — Um homem relata ter tido o braço arrancado a mordidas quando o inimigo perdeu a arma.
A expressão de Simel ficou ainda mais incrédula nessa última parte.
— Outro homem diz ter sido enganado, junto com todo o seu pelotão, enquanto mantinham a guarda de um vilarejo reclamado por um dos nossos aliados. Ele disse que os inimigos usaram intrigas amorosas e prostitutas locais para os separar e eliminar, um por um.
O choque já havia tomado conta do jovem grão-duque àquela altura, embora seu rosto ainda não demonstrasse isso.
— Precisamos fortalecer a disciplina dos nossos soldados — disse Simel. — E mandar mais homens para assegurar nosso controle no Oeste. Se eles sentirem que somos fracos, vão se aliar ao meu irmão.
Tillus concordou.
— Vocês já descobriram a identidade do homem que criou esse Novo Exército? — perguntou o ruivo. Ele claramente desconfiava que isso fosse um feito próprio de seu irmão.
— Não — relatou o conselheiro, complementando: — Agora, sobre o espião enviado para vigiar o nobre estrangeiro que o senhor falou…
— O que aconteceu com ela? — perguntou Simel, surpreso pela primeira vez de verdade, desde o início da reunião.
…
Voltando à Vilazinha…
Vários dias se passaram desde o incidente com os gaudérios e nesse momento Pedro estava reunido com seus recrutas do departamento criminal, com exceção de Maltês.
— Ela tá se recuperando bem? — perguntou o lorde.
— Sim, — disse Poodle — mas está triste por não participar da missão, meu Lorde.
Ouvindo o breve relato do rapaz, Pedro se voltou ao restante dos presentes na sala de aula.
— Se tudo der certo, ela ainda participa da segunda fase. Aqueles sacanas vão ficar putos. Hehe! — Pedro riu. Em seguida completou: — Esse vai ser o meu presente de formatura pra vocês.
— F-formatura? — indagou Pastor, com os olhos brilhando em expectação.
— Oh, acho que ainda não falei, né? — perguntou, respondendo: — Vocês se formam em duas semanas, junto com o festival cultural.
— Ah, sim. Todos da vila tão falando disso nestes dias — comentou Poodle.
Buldogue tinha o olhar triste nesse momento, apesar das boas notícias. Pedro percebeu isso.
— O que houve, Nathalia? — perguntou, chamando a menina pelo verdadeiro nome.
Ela percebeu.
— N-não é nada! É só que… n-nós vamos… ehr… — Seu semblante era muito tímido nessa hora. — Se nós formarmos vamos ficar sem ver o Lorde!
Ela disse de uma vez, para o espanto dos demais.
Pedro, contudo, não a repreendeu. Pelo contrário, foi até a mesa dela e passou a mão por cima de seus cabelos tigelinha.
— Fofa — disse, corando o rosto da garota.
— Não seja por isso — continuou — Eu ainda passarei muito tempo fazendo exames de rotina com vocês… Hehehe…
O olhar malicioso do lorde despertou uma triste premonição no jovem Poodle. De todo o contingente policial, o rapaz sem dúvidas foi aquele quem mais apanhou durante os treinamentos — também foi o que menos aprendeu com isso, todavia.
Com calafrios de medo e vontade de mudar o assunto, o rapazinho questionou:
— Lorde Pedro, sobre a missão…
— O que é que tem a missão? — perguntou atropelando o lorde.
Poodle engoliu seco a saliva, continuando em seguida:
— Não é arriscado demais fazer isso? D-digo, as variáveis não são favoráveis e-e… além disso…
— Não viaja, recruta! — interrompeu novamente o lorde. Aquilo provavelmente já se tornou uma espécie de hábito entre ambos.
Ele continuou, apontando para o quadro:
— Tá vendo esse esquema aqui? — perguntou — Isso aqui é coisa de cão treinado, pitbull valente… confia.
O semblante de Poodle ao ouvir isso era indescritível. Pastor, por sua vez, olhava para Pedro com admiração.
— Wolf! Wolf! — Ele latiu.
Enquanto isso, Buldogue se mantinha pensativa no canto. Como o colega de cabelos brancos, a garota também tinha sérias dúvidas em relação ao esquema preparado pelo lorde. Todavia, ela seguiu o conselho e confiou nele.
“Bom, até agora ele nunca falhou”, pensou a menina, completando com: “E-e… ele é muito confiante, e forte, e-e bonito…”.
Conforme a garota ia se perdendo em seus pensamentos amorosos, Pedro ia explicando o resto do plano.
— Tá decidido então. Agora que todo mundo da vila já recebeu tratamento e nenhum doente grave tá correndo mais risco, nós iremos farejar o que realmente importa nesse momento: dinheiro!
Cada palavra que saia da boca de Pedro era uma lágrima que caía dos olhos de Poodle.
— À caça! — gritou “Pitbull”, apontando para um ponto cardeal específico no horizonte.
E assim, entre divagações amorosas, choros e… latidos, os recrutas se juntaram à Pedro no que seria sua única e última missão em conjunto até a formatura.
— Wolf! Wolf!