Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 41
No outro dia, pela manhã…
— 157.
— O quê?
— Esse é o número deles, cento e cinquenta e sete — repetiu.
As quatro pessoas escondiam-se no alto de um monte. Do outro lado podiam ver um acampamento.
O agrupamento era mediano e organizado, apesar da precariedade das barracas. Na realidade tratava-se de varias cabanas de pele, que estavam posicionadas em frente a uma grande caverna. Tinha um vão na entrada, separando em dois o amontoado.
— Como o Lorde sabe, se ainda nem fomos lá ver? — perguntou o rapaz de cabelos brancos-grisalhos.
O homem à frente o encarou de forma fixa, como se estivesse prestes a revelar um grande segredo.
— Confia.
Poodle quase ficou biruta escutando isso. Pedro teve que se segurar para não rir da reação dele.
“Bom, não é como se eu pudesse dizer: ‘ah, é que eu tive meu DNA modificado e agora sou o misto entre uma espécie divina e um dragão, com habilidades muito superiores às de um humano normal'”, pensou o lorde, completando: “Mas seria engraçado. Hahaha!“
— Do que está rindo, senhor? — perguntou Pastor.
— Nada — respondeu. — Só pensando na cara desses safados quando nós terminarmos aqui.
Os outros três assentiram.
— Bom, vamos começar então — Pedro instruiu.
Em seguida, o grupo se separarou em duplas. Os tradicionais Pastor e Poodle foram rumo ao Leste do acampamento, enquanto Nathalia acompanhou o lorde até o Sul.
Estas eram as duas únicas regiões do acampamento com passagem livre, o restante estava cercado por montanhas.
— Vamos — murmurou baixinho, pegando as mãozinhas de Nathalia.
Ela corou, mas se deixou levar.
O objetivo de Pedro era não fazer barulhos enquanto espreitava com a menina pelas moitas e matagais.
— Ali, estacas — apontou.
Quando olhou para frente a garota teve uma visão melhor da base inimiga. Confirmando o que avistaram antes, as cabanas estavam concentradas nas laterais da entrada. Eram divididas em dois grupos.
“Eles são inteligentes. Se um lado estiver sob ataque, ou for incendiado, os outros terão tempo de ajudar sem se ferir.” refletiu silenciosamente a agente.
— Tudo certo, anota isso aí e se esconde, Buldogue — Pedro orientou.
Mas a garota achou estranho, afinal, o jovem lorde tinha tomado posição de investida, como se fosse sair dali.
Ela ficou preocupada e por isso deixou o caderninho de lado, inquirindo-o timidamente:
— O-onde o senhor vai?
Pedro disse de costas, sem emoção:
— Vou caçar.
Nathalia achou estranho, mas o rapaz saiu dali bem rápido, não deixando espaço para mais perguntas.
Ela suspirou fundo e pegou de volta o caderninho de anotações, retomando seus afazeres.
Enquanto isso, o jovem de cabelos castanhos se aproximou ainda mais do acampamento. Ele usou as árvores como transporte e parou a alguns metros da clareira. Os inimigos estavam ali.
“Tá bom, os idiotas que interrogamos disseram que perto do meio dia a vigilância fica mais fraca. Parece que é também a hora que alguns deles saem pra caçar ou fazer outras coisas”, Pedro raciocinou.
— Perfeito — comentou.
Ele esperou ali por cerca de dez minutos, quando enfim observou um grupo estranho saindo do acampamento.
— Finalmente nóis vai poder catar umas muié. Até agora o chefi tava cortando nossos balão, pô. Num deixava nada…
— Poisé, ladrão. Ele tava com medo dos nobre pegá a gente antes de montá a base. Mesmo agora, que tá suave, ele num quer que nóis vai nos lugá com muito guardinha….
— Calem a boca, seus porra! Se o chefi escutá, nóis tá lombrado!
Esse diálogo fútil pertencia a um bando de meia dúzia de gaudérios, que saíam armados do esconderijo.
“Hump! Idiotas. Saindo cedo pra caçar. Ainda não sabem, mas eles vão ser a presa hoje.” pensou Pedro. Aguçando o olhar, era possível perceber que uma aura incomum emanava dele.
Qualquer um que o fitasse diretamente sentiria isso, essa sensação que se resumia em seis letras: Perigo.
O rapaz se deparou com conversas suspeitas ao seguir os criminosos, envolvendo roubo e destruição de vilarejos e povoados próximos. E isso incluía Vilazinha.
— Falando nisso, cês têm notícia do gordo? — perguntou um deles.
— Tem não ladrão. Ele mais o lobo saíram a mô cota e mesmo assim não voltaram ainda…
O olhar de um deles esboçou preocupação.
— Será que os boato daquele lugar é verdade mermô?
— Quês boato, ladrão?
— Eles… tão falando que têm um demônio voyeur lá — respondeu ao colega, sem esconder sua preocupação — E tão falando também que o bixo tá treinando “cão de caça papa ladrão”…
— Quê?!!
“Mas de que caceta esses idiotas tão falando?”, refletiu Pedro, indignado. “Não é possível que esse tal Demônio Voyeur seja eu, né?”.
Parece que a reputação do novo membro da suserania não era das melhores. Ele suspirou.
“Tomara que Beto esteja indo bem, mal posso esperar pra irmos resolver esse problema” continuou Pedro no pensamento. “Mas agora, Cão Papa-Ladrão… esses caras tão brincando. Só podem estar de sacanagem comigo!!”
A sobrancelha do rapaz franziu. Ele não imaginou que sua recém-criada polícia já iniciaria com tal reputação no mundo do crime. No mínimo, não foi isso o que ele queria quando deu aqueles codinomes a eles.
“Até que serviu bem. Gostei”, concluiu, ainda no encalço dos criminosos.
Nesse momento, o grupo de bandidos já havia se afastado léguas do acampamento. Longe o suficiente para impedir que a ajuda viesse.
Blap! Stick!
— Que foi isso? — perguntaram-se os gaudérios.
— Sou eu, o demônio! Muhahaha! — respondeu a voz.
Os criminosos ficaram preocupados.
— Q-que é ocê? Saí daí! — gritou um deles.
— Saí!
Mas ninguém aparecia.
E quando eles olhavam para os lados, nada encontravam. Isso aumentou o suspense.
Zap! Zap!
Um vulto corria entre as árvores. Eles não sabiam o quê, nem onde era.
— Saí! D-Demônio! — gritaram.
O que aconteceu em seguida foi…
— Sair? — perguntou a voz. — Claro, mas foram vocês que pediram. Não se esqueçam! Muha… ha… ha…
Quando a última sílaba saiu, um flash veio de encontro a eles.
Zap! Zooom!
O vulto correu em direção a um dos homens e o capturou. Em seguida, ambos sumiram.
— Ele levou o Caolho! — gritou.
O coração daqueles homens acelerou.
“Será que o demônio voyeur é real? Será que ele matou o gordo, o lobo, os outros e agora veio buscar mais almas?” Era o que inconscientemente se passava na mente dos cinco.
E eles estavam corretos.
Apesar de soar estranho, por causa da herança do avô, o rapaz já não via mais seus inimigos como humanos. Para ele eram apenas almas, almas que tinha que capturar e que serviam como moeda de troca.
Com elas ele fortaleceria seu exército e faria viagens interdimensionais. Dois trunfos para o futuro.
“Falando nisso, aquela voz caloteira não explicou nada sobre o funcionamento desse troço“, lembrou-se Pedro ao encarar a tatuagem no pulso.
E ele continuou: “‘Dimensões menores custam 100 almas’. Mas romper o tal ‘bloqueio’ me deixou seco até os ossos. Usei toda minha mana. Será que vai ser assim toda vez? E será que todas elas são parecidas com Oblivion, ou eu só tive sorte dessa vez?”
Sua mente estava frenética. Todavia, olhando para o cadáver em suas mãos, ele se lembrou do que veio fazer.
Um estalar de língua soou, junto com uma expressão de desprezo.
— Parada cardíaca, erh…? Que fracote, não aguentou a velocidade — comentou, antes de atirar o cadáver do alto da árvore.
Pah!
Aquilo assustou os criminosos no chão.
— Caolho. É o corpo do Caolho!
— Ele… morreu!
— Fujam! — gritou um deles.
— Fujam do demônio!
Eles correram.
— Para onde vocês estão indo, meu futuro exército de almas? Muhahaha!
Era inegável que Pedro estava se divertindo com aquilo.
Dois minutos depois, quase todos eles estavam mortos. A exceção foi um homem calvo e de baixa estatura. Ele foi levado por Pedro aos recrutas.
— É isso então. Interroguem esse safado e terminem de montar o croqui do campo inimigo — disse ele.
Os quatro estavam sobre a base improvisada na colina.
— Sim, meu lorde! — responderam os recrutas.
O interrogatório demorou cerca de uma hora e meia, com o inquirido vindo a óbito antes que Pedro retornasse para colher-lhe a alma. Aparentemente Nathalia se exaltou um pouco.
Poodle estava vomitando, enquanto Pastor o apoiava pelos ombros e se segurava para não fazer o mesmo.
“Essa garota tem talentos estranhos”, concluiu o jovem lorde, ainda com perplexidade no olhar.
Ele considerou a possibilidade de contratar um psicólogo para ela. Aliás, todos eles estarem precisando de um, incluindo o próprio Pedro. Infelizmente, eles não existiam em Ark.
— Recomponham-se! — ordenou o lorde. Ele encarava os dois rapazes vomitando no canto.
E eles o fizeram, mas só depois de dez minutos.
— Desculpe, senhor. É que nós ainda não estamos acostumados com… isso… — disse Pastor, encarando o cadáver morto.
— É só não olhar — Pedro respondeu, mirando a palma da mão no objeto putrefato.
Uma pequena labareda de fogo saiu de lá, deixando os recrutas impressionados.
Ssssssss! Sssssss…
— I-isso é….
— Magia! — interrompeu Poodle.
— O Lorde sabe usar magia?! Como os homens do Leste? — perguntou Pastor.
Aquela última parte surpreendeu Pedro.
— “Homens do Leste”? — questionou.
— Sim! Como os das histórias — respondeu Poodle.
“Histórias? Então esses caras não sabem da Confederação?”, perguntou-se mentalmente o rapaz.
Muitos mistérios envolviam o claro déficit tecnológico deste lugar em relação ao resto do mundo, pelo que soube. Mas, devido à irrelevância política Mea e sua distância do Continente, mais o fato de que eles eram apenas aldeões de um povoado pequeno, isso se tornou palatável à ele.
— Ah… eu acho que não falei pra vocês isso, mas eu sou de um lugar muito diferente daqui. Meu mestre ensinou o básico e me instruiu a ir para um lugar no Leste — explicou.
Os recrutas olhavam fixos para ele. Afinal, nunca tinham visto magia antes. Feitiços eram como caviar, todos ouvem falar, mas poucos experimentam.
As íris deles brilhavam. Pedro viu que eles iam perguntar mais coisas e por isso levantou a mão.
— Esperem — disse. — Sei que vocês têm dúvidas, mas agora temos uma missão a cumprir. Quando voltarmos eu conto umas histórias pra vocês.
— Promete?!! — perguntou Poodle. Seus olhos ainda expectantes.
— Sim — respondeu Pedro. Os dedos de suas mãos estavam cruzados, contudo.
“Desculpem, recrutas. Mas a ignorância às vezes é uma benção” pensou.
Em seguida, os quatro desceram o monte.
Quando chegaram perto da clareira, Pedro avançou.
Shiiiiiin! Shiiiiiiin!
Ele foi abater os sentinelas da noite.
“Com isso, acho que agora são 2035 almas. Já posso montar um pequeno batalhão….” concluiu ao analisar a tatuagem.
Em seguida ele exclamou, olhando para os recrutas:
— Muito bem, vamos!
Os três balançaram as cabeças e retiraram suas armas. Pastor pegou a lança, Poodle um arco e Mlatês um… machado de guerra?!
“Onde raios ela encontrou aquilo?” — foi o que o resto deles pensou.
O grupo se esgueirou até a parte de trás. Sua posição era na parte Oeste do acampamento, perto das estacas.
Pedro foi na frente e abateu os homens de guarda. Depois passou instruções a eles.
— Quando eu der o sinal vocês vão acender isso. Mas cuidado! É pra usar a pederneira e depois correr. Corram pra beeem longe! Sério mesmo.
A seriedade de Pedro os convenceu. O lorde então entregou-lhes uma caixinha. Na estampa tinha uma etiqueta que dizia…
— “Carta precatória”? O que é isso? — perguntou Poodle.
— Trinitrotolueno. Aí tem o último pedacinho que restou, portanto, sejam cuidadosos — orientou o lorde.
Eles não entenderam, mas assentiram mesmo assim. O objetivo era um esconderijo perto.
Pedro os olhou de longe uma última vez, antes de iniciar sua parte do plano.
— É isso então… hora de pensar como um ladrão!