Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 46
Ao arrombar a porta do porão, os cinco encontraram um cenário peculiar.
— Mas isso aqui não é um cofre — comentou Pastor. — É um…
— Armazém! — atropelou Poodle.
Como perceberam os recrutas, aquele local não armazena ouro, mas objetos diversos. Olhando ao redor eles viram estantes de documentos e livros empoeirados, baús sem trava e diversas outras bugigangas sem valor.
— Que estelionatário espertinho!— xingou o jovem lorde.
Eles precisaram ter cuidado ao se mover, haviam muitos objetos largados por aí. Pedro, contudo, não se deixou enganar pela situação.
“É óbvio que ele esconde algo aqui. Se não fosse o caso, não deixaria um vigia à noite e também não trancaria o lugar. Poxa, fala sério! Cadeado e porta de ferro, só pra guardar essas velharias?! Quem o safado pensa que eu sou?”, ironizou.
— A questão é: o que ele esconde e onde esconde? — questionou em voz alta, completando o raciocínio.
E com isso a curiosidade dos recrutas despertou.
— Tentem não pensar como ladrões agora, mas como a vítima — orientou Pedro. — Se vocês fossem esconder algo de valor, como o fariam?
Eles ativaram seus cérebros.
— Uma parede secreta? — levantou Poodle.
Pedro balançou a cabeça.
— Essa casa é feita de materiais densos, fazer um quarto secreto no subsolo deixaria as estruturas muito frágeis. Por isso o porão é tão pequeno e repleto de vigas, acredito eu.
— U-um quadro escondido? — apontou Nathalia.
Pedro negou novamente, dando uns toquinhos na parede.
Tim! Tim!
— Não… Tá vendo? Daria muito trabalho pra talhar um quadrado grande o suficiente — Ele apontou, pegando uma gazua e riscando a parede.
Crack! O objeto se partiu em dois rápido, era menos resistente que a pedra.
— A gazua quebrou, mas nem riscou a parede. Viu? Isso significa que a dureza desse material é maior que a do ferro fundido da gazua. Foi polida direto de uma rocha bem dura, o que deve ter custado xilin pra caçamba…!
Os recrutas começaram a ficar sem ideias naquele momento.
— Um chão falso então — propôs Janet, dando uns pulinhos para confirmar sua hipótese.
— É o que veremos — respondeu-lhe o lorde.
A sobrancelha de Poodle se levantou na hora.
— O que vai fazer, meu lorde? — perguntou.
Pedro devolveu um sorriso, dizendo:
— Se segurem em alguma coisa firme, rápido!
Eles não entenderam, mas também não ousaram desobedecer a ordem.
Em seguida, ao ver que estavam todos seguros, Pedro começou seus movimentos. Ele primeiro apoiou seus joelhos sobre o chão, colocando as mãos sobre os tablados de pedra.
Então fechou seus olhos e se concentrou. Um pequeno amontoado de luz ciana se formou sobre a palma levantada.
Os recrutas olharam para aqueles pontos de luz com admiração.
Enquanto isso, em seu coração, Pedro conversava com a alma do mundo.
— Venham pra mim, partículas de mana. Não fujam, vamos brincar um pouquinho…
E elas ouviram seu pedido, ficando cada vez mais densas nas palmas dele. Até que, no instante seguinte…
Flinc! Paft!
Pedro desceu a mão.
Pah!
O que se seguiu foi um forte estrondo, seguido de uma onda de choque de pelo menos alguns pontos na escala Richter. Aquela luz se dispersou com isso.
— U-um tremor mágico! — gritou Poodle, se agarrando firmemente a uma estante de pedra sobre o chão.
Os outros três fizeram algo parecido.
Mas o espetáculo não parou por aí. Na verdade, ele apenas começou, com a luz dispersa circundando toda a sala de pedra.
Como uma onda, ela inundou tudo. E eles olharam com deslumbre para a onda ciana sob seus pés.
— Que incrível!
Pedro também a encarava atentamente, reparando nas pequenas ondulações formadas pela mana.
— Ali! — exclamou, apontando para uma região quadrangular em um dos cantos do porão. As ondas ali tinham uma cor diferente.
Caminhando até lá, ele deu dois toques no chão, igual fez com as paredes antes. Sentindo que o lugar era oco, um sorriso feliz foi deixado em seu rosto.
— Como você sabia, lorde Pedro? — questionam os recrutas ao ver o brilho vermelho sobre os metais.
— Simples, as partículas de mana são muito voláteis e fazem ligações com outras substâncias com muita facilidade. Por isso, eu pensei em deslocar um pouco de suas energias para a camada de valência e forçar uma reação — disse Pedro, colocando o indicador para cima, como um exímio professor.
Ele andava de um lado a outro, continuando a explicação:
— Como xilins são feitos de metais condutores, a radiação emanada por elas fez com que… Ah! Esqueçam! — Ele contudo a interrompeu ao reparar a cara de taxo dos recrutas.
Eles não entenderam nada. O que era compreensível, já que não sabiam muito sobre ciências naturais ou arcanismo.
— Enfim, coloquem isso no saco. Vou plantar umas provas por aí enquanto isso — orientou Pedro.
Os recrutas assentiram e fizeram conforme ordenado, enquanto ele próprio retirava alguns equipamentos rústicos e pedaços de couro curtido que trouxera consigo.
Três minutos depois eles estavam saindo pela janela lateral da mansão.
— O terremoto não alertou ninguém? — perguntou Poodle.
— Que terremoto? — questionaram os membros da equipe Beta, confusos.
A equipe Crime ficou surpresa também.
— Hum?!
— C-como?
E o motivo da perplexidade dos recrutas foi o fato de o pequeno tremor de outrora aparentemente ter se restringido ao pequeno quarto de pedra. Eles não entendiam como aquilo era possível.
E para fazê-los capaz disso, Pedro teria que dar-lhes explicações complexas envolvendo geociência e a sua relação com a arcana — algo que nem ele entendia direito. Não, provavelmente não entendia nada mesmo. Foi algo instintivo, um tipo de intuição.
Portanto, o jovem lorde apenas disfarçou a curiosidade deles com um “não liguem pra isso” e então instruiu a continuarem com a fuga.
…
Em algum momento, naquela mesma noite, os guardas perceberam que os arredores da mansão estavam muito calmos e estranharam isso. Afinal, onde estavam as rondas de patrulha e os homens da guarda?
Por isso, o oficial responsável daquela noite enviou tropas para verificar. Tudo o que viram foram seus companheiros desmaiados.
Foi como a calmaria antes da tempestade. Pois, poucos momentos depois, um alto berro foi escutado da mansão do barão.
— MEU OURO! OS BASTARDOS LEVARAM MEU OURO!
Mark escutava atônito de seu quarto na estalagem.
— O que está acontecendo?!! — questionou.
— Vai saber… Esse cara é muito estérico — comentou Pedro, enfiando a cara em seu copo de leite quente e disfarçando com os ombros.
A atitude de “isso não tem nada haver comigo” levantou algumas suspeitas em Mark.
— Soube que seus subordinados iniciaram uma briga violenta hoje mais cedo, jovem lorde — comentou o velho.
— Pft!! — Pedro cuspiu o leite por reflexo.
A suspeita de Mark só aumentou com aquilo.
— Foi mal, velho. Sua intuição é mesmo muito boa! Hahahaha!
— Jovem lorde, não me diga que…
— Eu tenho alguma coisa haver com o grito do barão? — interrompeu, adivinhando os temores do velho e admitindo: — Talvez…
O conselheiro cerrou as sobrancelhas.
— Relaxa, meu caro Mark. Prometo que te conto tudo depois — disse Pedro, com a poker face ativa e a mão no ombro do velho.
Mark sentiu a espinha arrepiar com aquilo. As travessuras de Pedro normalmente se convertiam em prefácios de histórias caóticas, e ele sabia disso.
— Por favor, só não faça nada que perturbe muito o status quo atual. Lorde Edward ainda está consolidando suas forças e…
— Fica tranquilo, velho. Você e o Ed vão ficar impressionados quando tudo acabar. — Pedro deu tapinhas no ombro de Mark.
Em seguida, ele se lembrou de algo importante.
— Ah, falando nisso. Você descobriu alguma coisa sobre o grupo misterioso que o contrabandista citou?
O velho balançou a cabeça em negação.
— Infelizmente ainda não temos pistas, mas lorde Edward já informou à Vossa Graça, o Príncipe, e também enviou alguns subordinados de sua guarda pessoal para investigar. Talvez o jovem lorde encontre alguns deles, já que estará no comando da investigação dos gaudérios…
— Você acha que eles têm relação com esse grupo misterioso? — O jovem perguntou.
Mark coçou o cavanhaque em reação, tomando mais um pouco de sua própria bebida.
— Talvez — disse ele.
“O líder deles parece ser uma pessoa organizada. Além disso, os malandros sabiam usar técnicas e estratégias militares complexas. Acho que o que o velho disse faz sentido, não estamos lidando com amadores aqui”, concluiu Pedro.
Ele também deu uma outra golada no próprio copo e o pôs sobre o balcão da taverna.
— Bem, obrigado pela conversa, velho. Foi divertido mas eu tenho que ir agora — disse, se levantando do banco.
— Não volte muito tarde hoje, jovem lorde. Temos outra reunião amanhã e aí vamos embora. Se o senhor se atrasar, não conseguiremos chegar antes do pôr do sol — lembrou-lhe Mark.
Pedro concordou, antes de sair de vez pela porta.
…
Em seguida, o jovem lorde deu algumas voltas pela cidade e escapou para a floresta adjacente a Oss. Ele queria garantir que não estava sendo seguido antes de se encontrar com seus subordinados.
— Meu lorde! — bradaram os recrutas, reunidos em frente a um palanque improvisado por tábuas de madeira e toras cortadas.
Pedro subiu no palanque e limpou a garganta, antes de fazer seu discurso.
Cof… Cof…
— Senhoras e senhores recrutas, meus parabéns! — começou — Vocês concluíram a missão com um total de zero baixas do nosso lado, além de encher dois sacos imensos com xilins. Nós plantamos as provas com sucesso também e, o mais importante, deixamos o barão safado muito puto! Hahaha!
Os recrutas gargalharam de volta.
— Hahahahaa!
Pedro deixou que se divertissem por alguns segundos, antes de pedir a palavra novamente.
— Eu sei que a formatura oficial está marcada para o dia do festival, mas vocês já estão graduados pra mim! Meus parabéns, oficiais! — O lorde bateu palmas em comemoração.
A felicidade pulou dos corpos dos recrutas naquele momento. Para o senhor de Vilazinha eles já eram autênticos policiais. Os primeiros da polícia civil.
— É-é sério? Sério mesmo?!
— Sim.
— Nós nos formamos, Labrador!
— Chihuahua, Shih-tzu… formamos!
Os recrutas se abraçaram e comemoraram, não em tom muito alto, para não chamar atenção. Contudo, a alegria em seus corpos era verdadeira.
Nos últimos meses Pedro os submeteu a um treinamento intenso e difícil, o qual fez com que eles aprendessem muito sobre suas mentes e corpos. Eles viram diversas coisas também e aprenderam muito sobre o “ser humano” e sua capacidade para o mal.
Já não eram mais jovens inexperientes, mas sim adultos. As artes-marciais moldaram seus corpos; a violência e dificuldades diárias, as suas mentes.
Contudo, depois de alguns minutos Pedro interrompeu a comemoração. Ele tinha outra coisa a falar.
— Muito bem. Agora formados, vocês são o corpo de elite dos meus domínios e por isso os confiarei uma missão muito importante. O futuro de Vialazinha estará em suas mãos.
— Sim, meu lorde! — Eles responderam, batendo em seus peitos com o punho.
Pedro então passou-lhes os meandros da operação, entregando um pedaço de papel para o agente mais próximo.
— Toma.
— O que é isto? — perguntou Janet.
— Uma lista de nomes pra vocês roubarem nas próximas semanas — respondeu Pedro.
Os policiais assentiram sem reclamação. O que era estranho, se considerarmos a natureza de sua profissão.
Policiais não deveriam coadunar com o roubo e nem com uma ação organizada para o realizar. Muito menos realizar isso por si mesmos!
Mas era de Pedro que estávamos falando. O jovem lorde subverteu a lógica tradicional da polícia, a empregando para seus próprios interesses.
— Ah, não se esqueçam: vocês devem deixar pistas que incriminem os gaudérios. E só façam isso quando as forças deles estiverem fracas e vocês tiverem a certeza do sucesso — alertou.
— Sim, meu lorde!
Um deles levantou uma dúvida.
— Como vamos fazer para localizar os xilins?
Pedro balançou os ombros, respondendo:
— Bom, acho que terão que dar toques no chão e nas paredes até encontrar. De qualquer forma, cês vão achar um jeito.
Eles concordaram.
Essa seria a primeira missão que fariam sem a supervisão direta de Pedro. Os agentes estavam nervosos, mas animados também.
Agora eles eram pessoas de confiança do lorde, os oficiais importantes do povoado. O futuro era animador e eles estavam inclusos nele.
— Todos prontos? — perguntou Pedro.
— Sim!
— Ótimo. Quero que voltem à Vilazinha e se preparem. Vocês têm três dias. Depois disso quero que se separem em grupos e assaltem… ou melhor, que peguem o pagamento antecipado dos lordes locais — orientou ele, descendo do palanque.
Os policiais civis fizeram sua saudação, antes de seguir no rumo da lua cheia.
— À caça!
— Auuuuu! Wolf! Wolf! — gritavam eles.