Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 47
Em frente a um solar nobre havia um grupo de homens fortemente armados. Eles trajavam prata e se diferenciavam dos outros guardas do lugar.
Dentro da sala, um homem loiro conversava com uma menininha ruiva.
— Diga, Sofia, como você acha que é o Continente? — perguntou, enquanto corrigia a postura sobre o sofá.
— Tio Linn, Sofia acha que tem muitos homens de metal lá. Tio Tillus sempre fala dos homens dourados do Leste! — respondeu empolgada a menina.
Linn endureceu o semblante.
— O velho mentiu pra você — disse.
— Hum? — A menininha colocou o dedinho na frente dos lábios, fazendo uma expressão de dúvida. Era muito fofa.
Ela entortou a cabecinha e olhou com expectativa.
— Primeiro, não chamamos eles de “homens dourados”, mas sim de cavaleiros! — corrigiu.
— Cavaleiros? Iguais aos do papai?
— Não, — respondeu Linn — estou falando dos cavaleiros de verdade. Homens fortes, que nos servem protegendo a Entrada da Península.
A voz alta e animada de Linn era um reflexo de sua admiração por aqueles cavaleiros.
— Eles são treinados na Fortaleza Peninsular, do reino de Erula, e são os responsáveis pela proteção de todos!
Sua voz ia aumentando e se tornando cada vez mais animada com o passar da explicação. Até que ele se lembrou de onde estava e se obrigou ao comedimento.
Cof! Cof!
— São os cavaleiros peninsulares, — continuou — mas por descender de uma linhagem sagrada, vou permitir que você os chame só de protetores ou de homens do muro. Pode escolher o que achar melhor.
— Protetores? — perguntou a menininha, curiosa e com o pescoço ainda mais inclinado.
“Que graciosidade! De fato, digna de ser filha do Lorde!”, pensou ele. Em seguida colocou o punho sobre a boca e continuou:
— Sem nossos protetores, aqueles lunáticos do Leste e seu deus do sol marchariam com seus exércitos para cá. Eles sofrem lavagem cerebral, são loucos!
Cof.. Cof…
O tossido forçado veio do canto dessa vez.
— Senhor Linn! Que surpresa! — A voz era melodiosa e alegre.
— Leide Amélia! — exclamou o loiro, saindo do sofá e ficando sob um joelho na presença da moça. Ele foi rápido.
A moça se desesperou com a atitude.
— Oh! Não! Não precisa disso… Pode agir normal comigo, senhor Linn — explicou, gesticulando com as mãos.
— Recusado. Isso seria desrespeitoso para com a leide e também para lorde Simel.
Amélia se sentiu em uma saia justa novamente. Como sempre acontecia na presença do cavaleiro loiro, aparentemente.
— Tio Linn é um desses protetores? — perguntou a vozinha no fundo.
— Não me foi confiado tal honra, infelizmente — explicou, se virando para a menininha. — Mas a meu mestre foi e essa é a segunda maior honra da minha vida!
— Segunda? — perguntaram juntas, Amélia e Sofia.
Linn balançou a cabeça em confirmação.
— Sim, a primeira é servir sob as ordens de lorde Simel!
A convicção na fala era avassaladora, firme como uma rocha. Ficou claro ali que o cavaleiro admirava muito o próprio suserano.
Os motivos disso ainda não estavam claros.
Naquele mesmo momento, como se tomando a citação de seu nome como chamamento, Simel apareceu na sala.
— Papai! — gritou a menininha.
Ela correu até as pernas do homem e as agarrou. Simel então passou a mão em sua cabecinha e a pegou no colo.
— O que estão fazendo? — perguntou.
— Tio Linn tava contando pra Sofia sobre os protetores! — Ela disse.
A sobrancelha de Simel se curvou por um breve momento.
— Sim, entendo — Ele respondeu. — Fique com sua mãe.
Em seguida a entregou para a mulher de traços delineados sobre o sofá.
A garota se despediu do pai com um beijinho na bochecha, antes de se aninhar no colo da mãe. Amélia fez algo parecido, despedindo-se do marido com um selinho na boca.
— Esperem um momento, tenho que conversar com seu tio Linn — explicou, se apressando para o corredor.
Elas assentiram e ele então conduziu o cavaleiro até um aposento lateral, a dois corredores da sala de estar.
— Você ainda sente pelo que aconteceu naquela época? — perguntou o ruivo.
Linn balançou a cabeça.
— Isso não importa mais. Jurei servi-lo e é o que farei. — Ele bateu o punho no peito.
— Entendo. — Simel então caminhou até um assento próximo e lá permaneceu.
Linn o acompanhou, mas não se sentou. Ao invés disso perguntou:
— Sobre o banquete, no verão. Achas que Sua Graça dará o veredicto, lorde Simel?
O grão-duque apoiou o queixo sobre os punhos naquele momento, pensativo.
— Não. Isso seria como abdicar da autoridade em favor do herdeiro. O mas provável é que meu pai-real dê pistas sobre o candidato que mais se destacou até agora — Ele respondeu.
Depois de mais alguns segundos de silêncio, Simel continuou:
— Precisamos convencê-lo da nossa superioridade e eu tenho uma ideia pra isso.
— Por isso estou aqui? — questionou Linn.
Simel assentiu friamente, como sempre.
— Você fará o seguinte…
Em seguida, ele esticou as mãos e fechou a porta do escritório.
O que se seguiu foi uma explicação complexa acerca dos planos para o futuro do Leste e do Sul. Em síntese, de como eles fariam para aumentar ainda mais o seu prestígio.
…
Enquanto isso, a alguns quilômetros para o Oeste…
— Estou rico! RICO! Muhahaha!
Dentro de um porão apertado, um rapaz de cabelos longos nadava em meio a um mar de prata e dourado.
— Sou um tipo um Robin Hood! — Pedro afirmou, fazendo a seguinte reflexão:
“A diferença entre nós é mínima. Foi só que ele ajudava os pobres, enquanto eu ajudo a mim mesmo! Hehe…“
Ele falou como um verdadeiro ladrão. Todavia, não estava realmente errado dessa vez, ao menos sob certa perspectiva. Afinal, ele roubou das pessoas mais ricas para ajudar os mais pobres — no caso ele mesmo, junto com seus subordinados e súditos.
— Lorde Pedro, sobre a procedência desse ouro…
— Que manê procedência, Mark?! — interrompeu o jovem, atirando umas moedinhas nele.
Mark agarrou as agarrou enquanto ainda estavam no ar, continuando o sermão.
— Jovem lorde, como o senhor espera justificar a origem disso?
Vendo o conselheiro balançando a pratinha, Pedro interrompeu seu esporte. Então se levantou e vestiu um roupão de banho.
— Gostastes? É a nova tendência que vou empurrar na plebe. Até a primavera espero auferir sucesso. Hoho! Martha disse que eles adoraram essa minha arte de alta classe! Hohoho!
“Ele até passou a falar com soberba de uma pessoa rica! Mas que filho da…”, pensou o velho, pasmo com a situação.
Mas aí ele se lembrou do problema principal, o motivo de sua vinda hoje, e então balançou a cabeça para voltar à realidade.
— O que quero dizer é que essa ação pode causar sérios problemas com os senhores vizinhos no futuro, jovem lorde. Se por acaso eles descobrirem…
— Não, Mark! Você não entendeu — interrompeu o jovem. — Na verdade é tudo ao contrário! Eles me darão ainda mais ouro. Mu-ha-ha-ha!
— Ao contrário?! Mais ouro?! Por acaso há algo que eu deveria saber? — perguntou o homem.
Pedro sorriu.
— Não se preocupe, meu velho compadre. Toma, pega esse punhado de pratinhas aqui e não falamos mais nisso, okay?
“Ele está me subornando?” questionou internamente o conselheiro.
— Eu sei o que você está pensando, Mark — acusou Pedro.
— Como?
O jovem explicou:
— Você tá achando que eu simplesmente fui até a casa deles e roubei esse dinheiro na base da força. Cê sabe, né? Usando da porrada, simplesmente invadindo e furtando tudo…
— Oras, e não foi exatamente o que aconteceu?!! — O velho perguntou.
Pedro, contudo, se fez de desentendido.
— Nha… a maior parte desse outro veio dos saques dos meus subordinados e não de mim. Sou inocente nisso. — O rapaz assobiou.
Aquele truque deixou o velho inconformado. Ele então resolveu entrar no jogo, rebatendo:
— Então quer dizer que, se eles vierem até aqui e acusarem seus subordinados de roubo, poderão julgá-los? Vai mesmo deixar que assumam a culpa por você, jovem lorde?
Pedro percebeu a exaltação do companheiro. Talvez tenha ido um pouco longe demais, contudo…
— É claro que não! Quem encostar nos meus subordinados morre. Simples assim.
Mark ficou em silêncio. Ele não sabia o que dizer.
— Mas relaxa — confortou o lorde, tentando aplacar a angústia do aliado idoso — Tecnicamente, quem roubou esse ouro foram os gaudérios e não a gente…
— Como? — O aliado questionou, não entendendo o que o jovem quis dizer com aquilo.
Pedro então passou por ele, dizendo:
— Não se preocupe com isso agora, tá bom? Daqui umas semanas tudo ficará claro.
O conselheiro manteve-se perplexo. A audácia que o jovem baronete demonstrou até agora já o surpreendeu o suficiente para dez gerações de sua família.
Saindo do porão, Pedro foi com Mark até o escritório no segundo andar.
— Mudando de assunto um pouco, tem algo que preciso mostrar — disse.
No caminho, ele retirou um pequeno envelope dos bolsos e o entregou ao velho.
— O que é isso? — perguntou-lhe o conselheiro.
— Eu que te pergunto. Você já viu esse símbolo antes?
— Isso…
A figura fez Mark perder a voz.
— O que houve? — perguntou o lorde, preocupado.
Mark se virou para ele com urgência, pôs as duas mãos sobre seus ombros e falou:
— Onde você conseguiu isso?!
— Por quê? Isso aí é só uma pintura de um sol com um triângulo, até uma criança sabe fazer um desses — disse Pedro.
— Isso é sério, jovem lorde! — alertou Mark — Apenas manter essa imagem dessa em mãos é o suficiente para uma ordem de execução, emitida diretamente por Vossa Graça o Príncipe!
— Hum?!
O jovem percebeu a seriedade de Mark e por isso também ficou sério.
— Por quê? — Pedro perguntou.
— Pelo que sei, esse é um símbolo proibido até mesmo por nossos inimigos em Solaris — Mark explicou. — Ele representa a desordem, o completo caos! A destruição do mundo como único meio de purgar os pecados da humanidade!
“Purgar os pecados da humanidade?”, Pedro repetiu consigo mesmo. Mas um outro fato lhe veio à mente, que era como Mark sabia disso.
O que será que esse “grupo radical” fez de tão ruim para ser conhecido até mesmo por um lugarzinho isolado como esse?
Diante de tais dúvidas e da criticidade da situação, Pedro decidiu seguir por um caminho novo e completamente diferente do habitual. Ou seja, decidiu contar a verdade.
— Tudo bem, Mark. Eu queria fazer um pouco de mistério, mas não tem jeito. Sente aqui, vou te contar sobre o que tenho feito recentemente e sobre como achei esse troço.
Mark assentiu com o rosto sério e fez conforme solicitado. Mesmo assim, Pedro permaneceu em silêncio, o que fez o velho perceber que ele tinha ainda um “porém”.
— O que houve, jovem lorde?
— Antes, você deve prometer que essa conversa jamais sairá dessa sala. Entendeu? Jamais! Ao menos até eu concluir o que comecei — explicou Pedro, conferindo em seguida: — Você me ouviu?!
Essa condição fez de Mark hesitante por algum momento.
— Mas, jovem lorde….
— Sem “mas”! — avisou. — Eu mesmo vou resolver isso. Se você contar ao Ed, é capaz que isso tome uma proporção muito grande e que chame a atenção do Príncipe, só que de uma forma negativa.
“E assim eu não vou mais conseguir enriquecer às custas dos senhores locais”, completou mentalmente.
Após aquilo, Mark concordou, embora ainda relutante.
— Muito bem, acho que não tem problema então. O que aconteceu foi o seguinte…
O que se passou a seguir foi um breve relatório sobre suas mais recentes peripécias. Durante o interrogatório — tortura —, por exemplo, quando descobriu a localização da base dos gaudérios que vieram à Vilazinha na última quinzena.
Depois, ele falou sobre a invasão ao acampamento secreto e sobre a suposta relação do mesmo com as invasões dos criminosos.
Claro, ele tratou de ocultar algumas partes mais sensíveis ou que afetariam seu interesse futuro, mas ainda assim foi sincero na maior parte.
No final, Mark assentiu. Mas ficou chocado com o que ouviu.
— Jovem lorde…
— O que foi, Mark?
— Lorde Edward tem razão, o senhor é muito perverso…
— Oi?
Mark soltou um leve suspiro após aquela fala. Em seguida retirou a imagem de volta e falou:
— Sobre isso. O senhor veio do Leste, então deve saber sobre os adoradores de Solaris, certo?
— Mais ou menos — disse Pedro. — Eu só sei que os adoradores de Solis Solaris têm uma influência gigantesca em um determinado local do Continente, após os Muros de Erula.
— Sim, — concordou Mark — e seu símbolo principal é o deus com a coroa de sol.
Pedro assentiu.
— Por isso não entendo esse sol grandão com o triângulo no meio.
A indagação do rapaz era justa. Por ela, Mark descobriu que o rapaz de fato não estava relacionado à Solaris.
— Você sabia? Foi para impedir que esses crentes lunáticos nos invadissem que Erula construiu a barreira, separando a Península do resto do mundo. Isso já faz muito tempo…
— Oh! Essa é nova pra mim — comentou o rapaz.
— É uma história antiga, eu mesmo não sei os detalhes — assumiu. — Contudo, o trauma ficou enraizado nas mentes de nossos antepassados. E nós não devemos desrespeitar aos deuses.
Pedro ficou um pouco chocado ao escutar isso. Deuses? Isso era muito surreal para ele, que cresceu em uma cultura cristã e amadurecida teologicamente.
— Carregar uma imagem dessas significa fazer justamente isso, desrespeitar nossos deuses — concluiu Mark.
Ele começou a entender melhor os detalhes, contudo, uma coisa ainda não estava clara.
— Tá, mas e esse símbolo aí? Ele não é diferente do que os solaris cultuam? — perguntou o rapaz com ansiosidade.
O velho respirou fundo, antes de explicar:
— Quando eu era mais novo, jovem lorde, meu pai foi chamado para a corte. Durante muitos anos, ele foi o conselheiro do antigo rei.
Pedro acenou para que continuasse.
— Certa vez estávamos brincando, eu, meu irmão mais velho e outras crianças da nobreza palaciana. A brincadeira se chamava “dama escondida versus urso mal”, já ouviu falar?
— Não, mas suponho do que se trata — respondeu ele, associando a brincadeira com o pique-esconde terráqueo.
Mark assentiu e então continuou:
— Eu me escondi em uma sala escura e fiquei lá por horas… foi quando ouvi passos. Depois disso, um chiado grosso adentrou o local. Vinha de um homem. E ele estava acompanhado por outra voz, dessa vez mais velha e familiar…
O velho então recordou suas lembranças de infância…
…
— Vossa-Graça, mesmo este humilde velho ainda tem sanidade o suficiente para ter certeza da veracidade do que escutou. Os terroristas conseguiram mesmo despistar os navios de Erula e atracar pela costa. É a única explicação possível para…
— Eu sei disso, Moris! — interrompeu o Príncipe. — O que não entendo é… por que aqui? E por que aquele lugarzinho miserável? Uma aldeia fronteiriça, é sério mesmo?!
— Vossa-Graça…
— Não! Se fosse uma cidade relevante, eu até entenderia, mas por que duendes esses crentes malditos atacaram justamente aquele lugar?
O jovem Mark escutou um suspiro vindo da figura de fora do armário.
— Veja, Vossa-Graça, sei bem que aquele era o lugar em que ela vivia, mas…
— Ela está morta desde muito antes disso, Moris! — O homem interrompeu novamente, completando: — Tenho certeza que aqueles putos viram algo lá! Algo muito importante! Aquele símbolo foi deixado de propósito, afinal. Como um aviso…
— Entendo — disse o conselheiro em resignação, desistindo de tentar convencer o príncipe do contrário. — Quais são as ordens?
— Precisamos enviar as tropas! — disse.
…
— E foi assim que Kirgton floresceu de um pequeno vilarejo para a maior cidade do Leste e do Sul — Mark explicou.
Aquilo abriu os olhos de Pedro, contudo, este não era o cerne da questão.
— E você acha que esses caras tão relacionados com os gaudérios? — perguntou o rapaz.
— É extremamente provável! — respondeu Mark.
— Entendo…
“É como eu pensei então. Os gaudérios estão fazendo isso de forma coordenada, são pequenas peças de uma engrenagem obscura”, refletiu ele, lembrando de algo e indagando:
— Mas o que raios esses radicais querem com isso? Não entendo como uma trupe de baderneiros e um contrabandista em desgraça poderia ajudá-los na conquista da Península.
“Não seria melhor achar alguma forma de contornar os muros? Ou investir em uma marinha e conquistar Erula por mar, para depois marchar sobre Mea?”
Muitas dúvidas surgiram na cabeça do jovem baronete. Por exemplo, por que esse grupo era ostracizado mesmo pelos compatriotas crentes? E afinal o que de fato havia de tão interessante naquele lugar para provocar a ira de tais terroristas? Era algo relacionado com Vilazinha? Mark não soube responder essas perguntas.
E assim, pela primeira vez desde que chegou a Mea, Pedro não conseguiu entender os objetivos do inimigo.
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Aí galera, comecei a dominar um pouco melhor o Picraw, então… arte pra vcs! Hehe!