Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 48
Os indícios até agora deixavam claro que alguém estava interessado em desestabilizar o Oeste de Mea.
E provavelmente não se tratava dos irmãos de Edward, afinal, a imagem do Sol com o triângulo invertido e as moedas solaris apontavam para outro lado.
Entretanto, pela falta de pistas e a escassez de material de consulta, Pedro resolveu deixar o assunto de lado por enquanto. Em breve eles bateriam de frente com o líder do bando e assim descobririam mais coisas.
Assim, enquanto os outros lordes resolviam o assunto da gripe em suas terras e preparavam suas tropas para a revanche, o jovem senhor de Vilazinha foi fazer outras coisas.
Coisas que ele há muito deseja…
— Lorde Pedro, mais firme! Pegue mais firme em mim. E use direito esse chicote! — gritou uma voz feminina e impositiva.
— Tu é exigente pra caramba, Celine. Não vou conseguir me segurar muito tempo assim…
— Sim, você consegue. Você tem que conseguir! — A voz da garota tremia com os trotes violentos.
Esse diálogo dúbio poderia ser interpretado de forma diferente, caso Pedro não estivesse em cima de um cavalo de guerra.
— Agarre-se firme em mim, vamos um pouco mais rápido agora. Só sentindo o galope você se acostumará com a sensação — avisou a dama de cabelos verdes.
A expressão do rapaz não era nada agradável no momento. Não que ele odiasse estar agarrado a uma bela mulher, na verdade era o contrário.
Mas, considerando que ele agora fazia isso para não se espatifar no chão e que corria sérios riscos de ser assassinado pela namorada ciumenta mais tarde, é de se considerar que não tivesse uma boa impressão daquilo.
— Celine, cê também quer me matar, é? Você claramente está ultrapassando a terceira marcha, isso é proibido para iniciantes como eu! — apelou o novato.
Mas a garota não entendeu a referência.
— O que é terceira marcha? — perguntou confusa, se virando para ele.
Ter aquelas iris azuis e sérias o encarando seria reconfortante, caso a pessoa em questão não tivesse largado a condução de um garanhão selvagem em movimento para fazer isso.
O cavalo começou a trotar desenfreadamente e Pedro quase perdeu a estabilidade de novo.
— C-celine! Pega logo essa rédea! — exclamou.
Sua imperícia e medo de cair eram tamanhas, que ele largou o chicote no ar e se agarrou firme às costas dela.
— Oh, sim. Eu nem reparei — respondeu calmamente a garota.
Sua seriedade era impressionante. Ela tomou de volta o controle e acalmou o animal.
Todavia, ao invés de diminuir a velocidade, a domadora aumentou ainda mais a intensidade.
— Aaaaaaah! — Pedro gritou, paranoico.
É possível que ela estivesse se divertindo com isso.
Embora não demonstrasse abertamente, a instrutora sempre aumentava a velocidade do animal, fazendo pequenas pausas apenas quando ele se cansava ou quando Pedro estava para cair. Foram muitas pausas, mas logo em seguida a garota mandava um outro pique veloz, para a agonia de seu aluno.
Quando a posição do sol indicava oito da manhã, eles encerraram a cavalgada.
— Foi bem para o primeiro dia, lorde Pedro — comentou a domadora.
— Que bom que você se divertiu, Celine. Porque essa foi a última vez que eu ando nessa coisa! — O rapaz avisou.
No momento, Pedro estava estirado em meio à grama das planícies. A garota se sentava ao seu lado, com o garanhão amarrado em uma árvore próxima.
— Não desanime, meu lorde. Tenho certeza que se sairá melhor amanhã — estimulou a garota.
O estado de humor de Pedro ainda estava afetado pela adrenalina, mesmo assim ele decidiu responder com um sorriso.
— Mas amanhã eu vou trazer o meu próprio cavalo — disse.
— Seu próprio cavalo? — perguntou a moça com ceticismo.
— Sim, vou pedir pro Mark me arrumar uma égua mansa. Assim tu não vai mais conseguir fazer maldades comigo — brincou.
— Pft! Como é?!
Celine normalmente era séria, mas mesmo ela gargalhou com a estratégia descarada dele.
— Mudando o assunto, como Martha está indo na organização do festival? Não estou dando muito trabalho pra ela, estou?
A garota cobriu o riso, ficando séria de novo antes de responder.
— Não… imagine! Minha avó adora festas — explicou — já a costura e o teatro são as duas paixões de sua vida. Ela tá toda animada agora que o senhor deu a chance de reunir isso tudo em um festival!
— Que bom — comentou o rapaz. Sua expressão facial relaxou depois de escutar aquilo.
Pedro era muito cruel às vezes, de fato, mas isso se restringia a seus inimigos. E apenas a eles. O baronete não tinha estômago para explorar o trabalho de uma pobre velhinha.
Desviando o foco, ele encarou o horizonte distante, na direção contrária ao sol.
Os cabelos longos estavam soltos e voaram com as primeiras brisas da primavera. Seu olhar distante e belo rosto transmitiam uma aura de mistério e encanto, como se ele não fosse daquele mundo, mas um ser celeste, expulso de algum monte ou jardim divino. Uma figura cativante, de fato.
Celine o encarou profundamente naquele momento. Ela o conhecia pouco, mas suas ações firmes, atitude divertida, boa reputação com o pessoal do povoado e, é claro, sua aparência celestial a fez sentir que algo estava errado.
“Ele é muito diferente dos boatos que escutei em Kirgton e na Capital”, refletiu.
Ao encarar um pouco mais, uma outra imagem veio à sua mente. A figura era magra e de cintura fina, dona de um belo rosto e de cabelos lustrosos. O semblante dela era igualmente distante, mas seus olhos lilases escondiam uma espécie de malícia. Além disso, ela vivia acompanhando o jovem lorde.
Era Rebecca.
Todavia, essa imagem não foi exclusiva da cabeça da domadora, Pedro também a viu. E ela estava em sua frente naquele momento, com um sorriso torto e um objeto pontiagudo nas mãos.
— R-Rebecca?! — gritou Pedro, surpreso.
— Ora… bem que eu senti que a cama tava muuuito fria hoje de manhã. Então é por isso… — comentou a garota, com um sorriso cínico e um ar distorcido.
“Caramba! Será que o lorde não avisou que sairia e ela entendeu errado?”, questionou-se Celine, preocupada por criar um possível mal entendido com o novo baronete e sua companheira da nobreza.
Pedro estava argumentando com ela agora.
— Você não viu o recado que deixei? — questionou, ainda sentado em meio à grama.
— Sim, vi sua carta. Mas você esqueceu disso, então eu vim apenas entregar. — Ela olhou para o objeto pontiagudo.
— Isso por acaso eram as placas de proteção que encomendei? Você torceu elas?
Rebecca fez uma expressão de “ops!” levando a mão livre à boca.
— Elas são feitas com liga de bronze, Rebecca! Como caçambas você torceu o bronze?! — Pedro estava assustado com duas coisas: a força da garota e sua falta de controle sobre ela.
Naquele mesmo minuto um subordinado veio trotando do Norte, onde ficava o vilarejo.
Ele correu até o lorde, desceu do cavalo e fez sua saudação.
— Meu lorde! Solicitamos sua presença. O terreno já foi limpo, mas os oficiais estão discordando quanto à colocação das vigas — explicou.
Os pulmões de Pedro liberaram uma grande lufada de ar. Essa era a chance perfeita de escapar, antes que aquela conversa piorasse ou tomasse um rumo ainda mais estranho.
— Até mais meninas, eu e o agente Bob aqui temos assuntos importantes a resolver — disse, já em cima do cavalo e com os braços apoiados no policial municipal.
As garotas nada puderam fazer, a não ser se encarar e olhar para a figura agora distante.
— Ele fugiu! — exclamaram em uníssono.
…
Enquanto isso, Pedro conversava com o subordinado.
— Nossa Bob, cê não faz ideia do quanto me ajudou agora, cara — disse.
— Problemas com a matrona, meu patrão? — perguntou o policial.
Ele assentiu.
— Sei como é…
Em um certo momento, quando já estavam a uma distância segura das duas garotas, Bob freou as rédeas. Depois ele retirou um rolo de papel de sua bolsa lateral e o entregou ao lorde.
— Lorde Pedro, antes que eu saísse meus superiores pediram que eu o entregasse isso — explicou.
Ele pegou o documento e o leu, surpreso.
“Ué, são os novos relatórios dos vigias. Mas por que aqueles caras enviaram isso com tanta urgência? Não dava pra esperar que eu voltasse à base pela tarde?” pensou.
Ao terminar o conteúdo, Pedro mandou que o agente continuasse o caminho até a parte de dentro do vilarejo de Vilazinha.
— Se o que estiver escrito aqui for verdade, então nós teremos um pouco mais de sofrimento no futuro — disse.
O homem da frente demonstrou um pouco de curiosidade com a revelação. Seu semblante ficou sério.
— O lado positivo é que os ataques dos gaudérios vão parar um pouco — concluiu Pedro, completando consigo mesmo:
“O ruim é que meus saques também terão que parar. Mas acho que já temos o suficiente pra o que quero fazer”.
…
Enquanto Pedro resolvia seus interesses, a muitos quilômetros de distância dali a vida de um antigo inimigo continuava.
— Mais… Mais uma! Glug…
Um homem barbado e de cara inchada afogava-se com seu álcool de baixa qualidade, enquanto resmungava e amaldiçoava a deusa da sorte.
Glug! Glub!
— Se o maldito estrangeiro não desviasse naquele dia! Se… glub… ele não viesse a Mea, se tivesse continuado em seu chiqueiro no Leste…
As rugas e olheiras de seu rosto escondiam a idade jovial do homem. É provável que a vida boêmia tivesse tragado os melhores anos de sua vida, fazendo-o aparentar uma idade muito acima da real.
Essa era a situação atual da ex-celebridade local: Rukie Mathius, filho de um conde e herdeiro de uma grande extensão de terra no Oeste de Mea.
Mas isso foi no passado. Com o fracasso na rebelião do último ano, seu pai perdeu o título, a maioria das posses e agora era mestre apenas de uns poucos gatos pingados que sobraram do seu antigo exército feudal.
— Aquele desgraçado! Se ele não existisse, isso não aconteceria comigo!
“Sim… Ele tomou o que é meu! Ele tomou o que é meu!”, amaldiçoava o homem. Seus anteriores cabelos arrepiados agora não passavam de fiapos despenteados, cobrindo parte das chagas em seu rosto.
Que estado lamentável — era o que qualquer conhecido ou ex-amigo diria se o visse agora.
— Mais uma! — gritou ele ao barman.
O homem fechou-lhe a cara, todavia.
— Ocê já tá aqui tem dois dias, pirralho. Seus xilin já acabou faz tempo e aquele velho que veio aqui outro dia disse que num ia mais me pagar. Ocê tem que sair daqui, agora!
Rukie ficou indignado, mas o homem não lhe deu a chance de contra-argumentar. O expulsou do lugar à força e de modo humilhante.
Pah!
— Droga! Glub!
Sniff.. Sniff..
Ser jogado na sarjeta após vários dias de porre era o que havia de mais degradante no meio nobre. Nesse momento, Rukie percebeu que havia se tornado um daqueles homens que ele e os amigos humilhavam nos becos de Gloomer.
— Eu vou me vingar… — disse ele em meio às lágrimas e soluços.
A bebida fez efeito e ele adormeceu, usando um saco de lixo como travesseiro. Todavia, momentos depois de descer as pálpebras, escutou uma voz o chamando por trás.
— Garoto, venha aqui!
“Merda, agora vou tomar um sacode daqueles merdas”, pensou ele, se deparando com três figuras distorcidas ao virar-se ao beco.
O grupo se aproximou dos sacos de lixo, bem devagar. Mas a surra que ele estava esperando nunca veio.
Ao invés disso, as figuras encapuzadas se agacharam e olharam para as chagas dele. Uma delas o encarou bem nos olhos, mas manteve-se em silêncio.
— Q-quem são vocês? — A voz de Rukie estava trêmula.
O capuz então o chamou de novo.
— Você busca vingança?
Ele se assustou com aquilo, mas concordou. Estava com medo, mas permaneceu firme.
— Sim, eu quero vingança! Vingança contra Edward, contra o Oeste, contra o Leste e o Sul. Vingança contra toda Mea! — A resposta foi quase inconsciente.
O tom firme de sua voz foi o único a ecoar em meio àquela madrugada luminosa no beco escuro.
— Mas o principal… contra aquele maldito nobre estrangeiro! — completou. — Vingança é o que há muito tempo desejo!
Os homens de capuz sorriram ao reparar a expressão distorcida no rosto do beberrão. Eles trocaram um breve aceno, antes de assentir.
Um deles ofereceu a mão ao rapaz.
— Seu desejo será concedido.