Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 49
Em uma certa noite, dentro de um estabelecimento agradável em Oss…
— O que você vê quando olha pra mim?
— Isso não vem ao caso, Jin. Agora sei que você é homem — respondeu Pedro. Seu olhar era extremamente condescendente.
Aparentemente eles estavam discutindo um assunto delicado no momento. Algo haver com o que havia de mais íntimo na mente humana. A “garota” de cabelos claros balançava a mão, gesticulando, em um sinal claro de desaprovação.
— Eu lembro que no dia em que me conheceu, você viu uma mulher. Não estou certa? — perguntou, acirrando as sobrancelhas.
A colocação “dela” deixou o rapaz em uma saia justa. Não havia como negar que ele a confundiu com uma mulher. E uma bonita.
— B-bem, sim… eu…
— Então é isso o que você deve fazer! — interrompeu Jin(a) — Quando achar que sou uma mulher, me trate como uma mulher. Quando achar que não, bem… aí pode me tratar como quiser, Pedro.
A corda bamba estava prestes a rachar. A personalidade de Jina era extremamente agradável e alegre, mas Pedro sabia que por trás dessa fachada estava uma tigresa, um verdadeiro predador sexual.
“Ehr… Se eu não tivesse escutado aquela conversa, pensaria que esse(a) safado(a) realmente tá tentando ser meu amigo”, refletiu.
Em seguida escondeu seu cinismo com a melhor poker face possível e devolveu um sorriso falso.
— Okay, Jina. Bom, vamos voltar pro assunto das tropas — sugeriu.
Inconscientemente ele acabou aceitando, mas é provável que quisesse só fugir daquilo no momento.
A acompanhante assentiu, sorrindo após ser chamada pela forma feminina.
— Como disse aquele dia, descobri onde que os safados tão escondidos. Meus homens têm monitorado eles desde então.
— E…? — questionou Jina.
Pedro apontou para a pranchetinha sobre o balcão. Do lado das bebidas.
Pegando-o, Jina viu um croqui. Aquele era o acampamento deles há duas semanas, conforme explicado no documento.
— Como assim “era”? — questionou.
— Sim. Agora tá mais ou menos assim, ó — Pedro pegou a pena sobre o tinteiro e começou a rabiscar o mapa.
Jina levou algum tempo lendo. Em parte por causa dos detalhes complexos, em parte pela caligrafia confusa dele. Era ruim, no mínimo, mas legível o suficiente para se entender o que queria dizer.
— Os inimigos reforçaram as defesas então — comentou.
— É, e agora muito provavelmente vão voltar com os saques e a baderna.
A garota respirou fundo com o aviso. De onde estava, Pedro conseguiu notar os movimentos irregulares de seu peito. — Os saques, em…
A tez dela escureceu um pouco também. Sinais de preocupação.
— Aconteceu alguma coisa? — Pedro perguntou.
— Os criminosos roubaram muitas mansões ultimamente. Sobretudo depois daquela última reunião dos lordes, sabe… Meu tio achou isso muito estranho — comentou a garota, sem esconder a tristeza.
O rapaz se segurou para não cuspir o leite naquela hora.
— Oh! Muito estranho, né? — Se fingiu de planta, descaradamente desviando a própria culpa. — Meu colega de Hollare falou que teve o mesmo problema quando veio buscar as medicinas na semana passada.
Ele até apoiou o queixo sobre o punho e arqueou as sobrancelhas. Queria deixar claro a sua “inconformidade” e “revolta” com tais atos.
Contudo, o que ela disse a seguir o fez ficar genuinamente sério.
— O mais estranho é que até então os criminosos só atacavam vilarejos pequenos, ou rotas de comércio específicas. Acho que o que eles queriam era não chamar muita atenção dos senhores maiores. Por isso escolheram locais com baixo poder militar.
Jina encarou Pedro com ar de mistério depois da explanação, vislumbrando-o por alguns segundos antes de continuar.
— A exceção foi Vilazinha, claro. Afinal, nem eles e nem ninguém esperava que vocês tivessem uma tropa tão bizarra de guardas.
— Bizarra? — questionou o rapaz. Ele até baixou seu copo de bebida.
— Sim. — Ela acenou com as mãos. — Mas ajudou muito durante a decisão dos lordes em relação a quanta confiança colocariam em você. Isso, mais os arrombamentos de cofres em suas mansões.
— Oh, é mesmo? — perguntou Pedro, novamente ativando sua face descarada. Aquilo certamente era um dos objetivos centrais dele.
Jina bateu o copo na bancada, ansiosa. — É sim. Eles estão furiosos!
Pedro riu e ela o acompanhou. Ver velhos furiosos era com certeza uma experiência única, principalmente quando eram ricos.
Em seguida, eles pediram mais umas doses e conversaram sobre trivialidades. O rapaz tentou a todo momento esconder seus crimes e redirecioná-los às costas dos gaudérios.
Entretanto, Pedro decidiu não prolongar muito o encontro, por diversas questões — dentre as quais pela incolumidade física de suas partes sexuais. Mas, antes que ele tocasse no assunto, Jina o fez.
— Já está tarde, você quer voltar comigo pra mansão? Tem muitos quartos extras lá e… — Ela murmurou em seus ouvidos: — Se você quiser, pode dormir comigo…
Pedro quase sofreu um engasgo com aquela proposta. Que ágil!
— N-não! — exclamou o rapaz. — Eu já paguei a estalagem. E-e… eu não vim sozinho!
Ele pronunciou aquelas palavras quase como uma espécie de aviso. O jovem baronete realmente estava com muito medo de Jina e suas intenções obscuras.
— Entendo — disse desanimadamente a garota, antes de se levantar. — Bom, acho que é só isso que nos resta essa noite então…
Pedro paralisou quando Jina se aproximou subitamente de seu rosto.
Chauc! Um barulho molhado, seguido de uma pressão na pele.
“Ela… me beijou?!” refletiu o rapaz, assustado e com a mão sobre a bochecha.
— Pronto, agora que dei a minha saudação de despedida, posso ir embora — Ela disse, andando apressadamente até a saída do bar.
As pessoas ao redor ficaram encarando. Pedro ficou sem jeito.
“Realmente, mulheres são assustadoras… Sejam elas de nascimento ou não!”, concluiu. Em seguida foi pedir mais doses de sua bebida favorita. Ele precisava apagar aquilo, e rápido!
— Da uma ajudinha aqui, varão. Preciso de algo que me faça esquecer dessa noite.
— Claro chefe, temos uma nova bebida aqui que vou te falar viu! — disse o barman.
— Desce essa então…
Cinco minutos depois, ele estava embriagado, conversando com o barman.
— Isso aqui é bão, varão! Como é que chama? — perguntou ele, com o corpo cambaleante sobre o banquinho no balcão.
— Pô, patrão. Essa aí é a nova especialidade da casa, feita toda à base de frutas. Os clientes estão chamando de pingado de banana!
— É o quê?!!
Bem, conforme dito pelo barman, era boa… e forte. Ele não se lembrou de nada mais depois daquilo, incluindo o nome da bebida.
…
Na madrugada daquela mesma noite, em uma floresta desconhecida…
— Ursos passaram aqui — comentou uma voz firme e masculina.
O encapuzado estava agachado em meio à relva campestre, analisando as marcas nas árvores e esfregando os dedos sobre o solo húmido do inverno.
— Resquícios de mana. Já fazem uns meses…
Ele lambeu uma das folhas caídas sobre as faias do bosque
— Druidas se acham ótimos em apagar rastros. He! Mal sabem eles, a mesma força que os protege também os acusa — disse o homem, que em seguida entoou algo em uma língua desconhecida.
Alguns segundos depois a folha que estava sob sua boca saiu e plainou no ar. Vendo de perto, era perceptível que ela emanava um brilho único, algo que se destacava naquela madrugada escura.
A folha subiu a dois palmos do chão e então rodou. Rodou e rodou novamente, parando com sua ponta virada em direção ao Noroeste.
— Peguei você! — comemorou o homem, apertando o punho.
E ele estava prestes a se levantar e seguir em frente. Contudo, nessa mesma hora, um clarão apareceu em sua frente, o interrompendo.
— Você está muito longe de casa, Vossa Alteza — declarou uma voz fria e impetuosa e cuja figura ainda estava distorcida pela luz.
— Ora, ora… Fui descoberto — disse o homem, em tom de brincadeira. Ele retirou o capuz e o que seguiu foi um deslumbre.
Longos cabelos verme-sangue, olhos da mesma cor. Charme refinado e um forte ar de nobreza. Voz melodiosa, porém masculina.
— Mas o que quereria uma donna tão bela com esse humilde servo da noite? — perguntou o rapaz, fazendo um gesto nobre.
A mulher de armadura prateada, contudo, não esboçou a menor das reações.
— Saia daqui, Príncipe das Sombras! Ou infelizmente terei que desrespeitar o armistício — alertou a guerreira, já com a arma em punho.
A lança dela era grossa. Haste comprida e ponta afiada, diâmetro de de três palmos. O acabamento era igualmente majestoso e emanava uma aura de destruição.
O jovem ruivo a fitou por alguns segundos, desviando o olhar para o rosto da moça.
— Eu me desculpo, bella donna, mas temo não importar-me com tais assuntos — disse, imediatamente correndo em direção ao alvo.
A guerreira viu e o interceptou na mesma hora. A batalha teve início.
Pah! BOOOOM!
O estrondo provocado pelo choque gerou um pequeno terremoto na área.
— Vocês ambrosianos ousam quebrar o acordo com os dragões? — questionou sério a valquíria.
O ruivo estalou a língua em resposta.
— Quem concordou com tal absurdo foi meu ilustríssimo avô-real, e não eu! Portanto, aconselho você a ter essa conversa com ele, não comigo — provocou, antes de partir novamente para ela.
Pah! Pah!
Desse vez, contudo, ele sacou duas adagas carmesim de suas vestes.
Shiiiiiiin!
— Bem como pensei, essa lança suga a energia vital — comentou ao ver o brilho das adagas vacilar.
Isso porém só durou um milésimo e logo a luz voltou, ainda mais forte do que antes.
O que se seguiu foi uma série de estocadas da valquíria de cabelos alaranjados. As mechas prateadas entre seus fios refletiam o brilho da lua nova, dando a ela um charme majestoso e intenso.
Pah! Schinc!
Ela estocava e ele usava as adagas para se defender. Essa dinâmica durou por três rodadas, quando a moça de armadura decidiu incendiar o adversário com feitiços.
— Runas das chamas, ouçam a ordem divina e congelem meu algoz! Yol Töor!— gritou em uma língua antiga.
O solo foi completamente incendiado por um oceano abrasador de vermelho, toda a área em um raio de cinquenta metros foi afetada.
— Quer brincar, donna? Non t’allargare! — o ruivo avisou.
Um brilho vivido apareceu, cobrindo toda a extensão de sua pele. O tom era de um vibrante profundo, beirando a cor vinho. Muito forte!
Conforme ele andava, as runas foram quebradas e as chamas desapareciam do chão, abrindo espaço para o outrora verde da floresta.
O brilho vermelho-vinho persistiu e o personagem ruivo avançou com suas adagas.
Ele fez cortes na diagonal e em linha reta, enquanto a valquíria girava a haste loucamente para se defender. Foi aço contra aço.
Shiiiin! Shiiiiin!
Pah!
Àquela altura, as investidas e golpes trocados entre dois já tinham devastado a maior parte da área adjacente à luta.
Em um certo momento o personagem com manto de luz vinho atirou sua adaga na direção da cavaleira.
Ela desviou e a arma então acabou se perdendo em meio ao longe do horizonte, até colidir com uma colina ao longe.
BOOOOOOM!
O relevo sumiu da paisagem no mesmo segundo. Poeira foi levantada e apenas um grande nada restou da antiga formação rochosa.
Mas o embate físico entre eles continuou, com a cavaleira usando sua lança para fatiar e estocar as falhas do adversário, que agora estava com uma só adaga.
Ele contudo se moveu de modo estratégico. Queria acertar a ponta da lança e criar um impacto forte o suficiente para se afastar dela.
— Muito bom, donna! Mas infelizmente pra você, este humilde tem uns séculos de vantagem no assunto lutar contra dragões!
A moça de armadura o fitou, vendo-o levantar subitamente a mão vazia na mesma direção em que atirou a faca.
— Você?! — A moça mal teve tempo de se surpreender, quando o objeto carmesim veio velozmente por trás.
Pah! Flinc!
Ela se moveu a tempo de esquivar, mas o impacto a fez recuar algumas centenas de metros.
Mesmo pega de surpresa, a lanceira se recompôs rápido e usou o solo para avançar no alvo.
Foi aí que o ruivo lançou novamente a adaga.
Pah! A arma curta a interpelou.
E a valquíria não parou, mas sua velocidade foi afetada. O adversário foi muito sagaz ao se aproveitar disso para conjurar um feitiço.
— Scuola di illusione: notte gioiosa che mi confonde, confonde anche lei! — Ele gritou, antes de uma fumaça tomar conta de seu corpo.
A guerreira já não conseguia saber o que se passava naquela cortina de fumaça.
“Ele bloqueou minha percepção, forçando os elétrons livres a interferir com a radiação do mana”, refletiu, parando de uma vez seu movimento.
Diante de tal, a guerreira de prata resolveu fazer algo drástico.
Com uma palavra estranha, ela incendiou a ponta da lança. Depois a mirou na fumaça e forçou os ombros para atirá-la.
Pah! Zoooom! Foi rápida como um diabo.
BOOOOOOOOOOOOOOOOM!
Uma cratera enorme se formou naquele local, destruindo a vegetação e o solo num raio de 5 km². Mas o mais chocante foi a profundidade que o objeto escavou, indo da matéria orgânica na superfície até o horizonte C, nos minerais e rochas mais densas.
A Valquíria nem piscou com o golpe. Desceu várias dezenas de metros e foi até o centro da cratera. E ignorando a poeira e o calor das chamas residuais, ela pegou de volta a haste prateada.
Todavia, também sentiu um impacto súbito no peito, recuando.
Foi aí que avistou o alvo abatido sob o baixar da poeira. Tinha um buraco no corpo e um sorriso cínico, enquanto erguia seu braço em sua direção. Ele tentou um último golpe antes, um soco, mas falhou.
Vendo isso, a guerreira sentiu pena e decidiu dar um segundo golpe para acabar de vez com o sofrimento mórbido daquela criatura vil.
Pah! Enfim retirou a arma e a retorceu. O transpassar foi leve, para sua surpresa.
Foi quando percebeu. O que morreu não foi o ruivo. Aguçando a audição, notou que o mesmo já estava longe dali.
— Até mais, bella donna! Foi um prazer fazer negócios contigo. Haha! — brincou, já a várias centenas de metros distante e balançando um pedaço de pano nas mãos.
Ela olhou sem expressão para o familiar estilhaçado na lança e depois fitou a figura de longe. Se olhássemos de perto, veríamos suas sobrancelhas levemente cerradas pela fúria.
— Giulliano Allighieri — comentou a moça. — Ele me enganou…
O familiar havia voltado à sua forma normal depois de morrer, um corpo humano, pálido e sem rosto.
“Ele já passou da minha área de vigília, não devo persegui-lo.”, pensou.
A moça então encarou o ponto distante enquanto o familiar morto queimava. A mão livre cobriu por reflexo a frente de seu peitoral.
— Contudo, eu não me esquecerei dessa ofensa — jurou a valquíria. — Pelo sangue, eu, Hilda Hrist Dragonark, eliminarei-o desse mundo!
Do outro lado, Giulliano esboçou imensa alegria ao cheirar o pedaço de pano em sua mão.
— Aarrr… Essa vai para minha coleção pessoal. O sutiã de uma Valquíria Dragonark…