Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 53
Depois que as brasas da batalha se apagaram, as tropas sobreviventes retornaram a seu acampamento na encosta.
Enquanto o Lorde Comandante enfrentava o gaudério, eles se mantiveram esperando no alto dum monte. Eram como pequenos pardais no ninho, esperando seus progenitores afastarem o gavião.
Contudo, em certo momento pequenas explosões soaram, seguidas de uma risada alta e abafada. Aquilo os assustou. E foi então que começaram a temer por Pedro, pensando que algo tivesse dado errado.
Estimulados por Jin, os pardais decidiram ajudar na luta contra o gavião.
Chegando lá, eles encontraram Pedro caído na entrada. Alguns se assustaram, pensando no pior, mas logo viram que estava vivo. E não era só isso, mas ele também matou o gaudério sozinho.
Jin fitou o cadáver do criminoso por alguns segundos. Todavia, sua atenção retornou ao homem em seus braços. Ele não parecia ferido, só desmaiado.
Cansaço, foi o que deduziu.
Na manhã seguinte, Pedro acordou sem problemas aparentes e se sentou ao fogo junto a outros dois lordes. Eles conversaram sobre a batalha, a divisão de espólios e o que fariam a seguir. Afinal, um monte de moedas estrangeiras foi descoberto na posse dos gaudérios, o que era muito estranho.
Quanto a sua nova capacidade, Pedro decidiu que experimentaria depois, em um momento mais oportuno. Agora tinha que ver o que fariam com as provas.
— O que pensas, Lorde Pedro?
O rapaz levou a caneca de café à boca, usando o tempo de um gole para tomar uma decisão.
“Melhor manipulá-los e simplesmente jogar tudo nas costas do Ed. Os soldados já viram, então os boatos se espalharão de qualquer forma”, raciocinou, jogando os ombros pra trás.
Triste. Os empréstimos eternos de Pedro teriam que acabar, mas ele já parecia estar contando com isso.
— É nosso dever como honrados lordes do Oeste entregar essas provas ao Grão-Duque. É ele quem tem a suserania — disse de forma decidida.
— Mas… nós não deveríamos entregar isso direto à Sua Graça, o Príncipe? — perguntou um deles.
Pedro balançou a cabeça.
— Não. Com a sucessão, não sabemos o que aconteceria com uma eventual carta nossa ao Príncipe — explicou.
Aquilo pareceu abrir a cabeça ingênua do baronete.
O olhar dele ainda estava distante no momento. Devia ser tristeza. O homem perdeu boa parte de seu exército no dia anterior, afinal.
— E também não ganharíamos nada com isso. O Príncipe no máximo enviaria uma carta de agradecimento e um monte de tropas pra cá. Não sei vocês, mas não gosto nada disso — completou o rapaz.
Lorde Caring o fitou com um olhar interessado. Apesar de jovem, ele percebeu que o rapaz era sagaz.
— Concordo com o Lorde Comandante. Não há ganhos para nós, senhores humildes e na base da nobreza. Além disso, apenas famílias importantes ou casas acima de condes teriam a atenção de Sua Graça. Então para chegar até ele, precisaríamos antes falar com nossos suseranos.
Ele olhou para Lorde Hatt, que assentiu.
— Se o senhor conversar diretamente, Lorde Pedro, achas que Sua Alteza se lembraria de nós e de nossa ajuda? — perguntou.
Ele sorriu.
— Eu não acho. Tenho certeza que sim! — afirmou, completando consigo mesmo: “Ed faz bem o arquétipo do líder honrado. Talvez seja por isso que ele tenta me afastar das linhas de frente? Hum… é possível. Ele não gosta muito de baixas… Enfim, isso não importa agora”.
— Isso é ótimo! — assentiram os outros dois. Hatt ficou um pouco mais animado com a notícia.
Com a questão resolvida, Pedro se permitiu divagar um pouco, encarando outras partes do acampamento.
De relance, ele presenciou a habilidade de Jin com logística. Mesmo que ainda fosse o raiar do dia, muitos feridos já recebiam tratamento, as provisões estavam sendo divididas, as guaritas e patrulhas funcionando bem.
Oficiais de intendência corriam para todos os lados, levando notícias, provisões e ordens.
— Ele tem habilidade — comentou.
— Falas do sobrinho de Lorde Giron?
Pedro indicou que sim.
— Não é pra menos, dado que ele estudou na Capital.
Capital? Essa sim era uma informação nova para o rapaz.
— Oh, claro. O Lorde Comandante veio do Leste, então não conhece o Colégio Real de Willblood, presumo.
Ele viu Pedro balançando a cabeça e continuou sua explicação.
— Todo ano são abertas inscrições para uma nova turma, mas o exame é tão difícil… Tentei mandar meu filho mais velho para lá algumas vezes. Ele falhou em todas elas.
O tom no rosto do homem era melancólico. Sua voz tinha gosto de tristeza.
— O teste é tão difícil assim? — Pedro perguntou.
— Não sei dizer. Mas pelo que soube, ele só é aplicado àqueles abaixo de conde. Acima disso não precisa.
— Que injusto! — exclamou o jovem lorde.
A careta de lorde Caring indicou que ele sentia o mesmo.
— Pelo menos o filho dele pôde fazer o teste, os meus sequer tiveram a chance — comentou o outro lorde.
— Baronetes não podem fazer o teste?
— Não — respondeu. O barão ratificou com a cabeça.
Aquilo era injusto, Pedro concordou. Mas ele sabia também que provavelmente se tratava da forma com a qual a aristocracia local mantinha o status quo. Se a ascensão fosse fácil, quem garantiria que suas posições não seriam tomadas no futuro?
Na Terra era igual e, pelo que ele mesmo soube, o Clã fazia algo parecido. Escalas diferentes, mas injustiça mesmo assim.
Aliás, a tradicional família Rios não era bilionária também? Talvez seus antepassados fizeram o mesmo. Ao menos, Pedro conseguia lembrar de alguns boatos e conversas que teve com o avô.
Complacentemente, ele apenas suspirou. A situação não era tão confortável a ponto de poder se preocupar com os outros agora.
Talvez, no futuro, depois que visitasse a Confederação e retornasse ao Clã, pensaria em algo para atenuar um pouco a mazela dos menos favorecidos.
….
No dia seguinte, as tropas se levantaram cedo, recolheram o que precisavam e voltaram para casa.
Entre os lordes, ficou decidido que as provas e moedas estrangeiras ficariam com Lorde Caring, pois ele era aquele com a família mais antiga, com o maior título e cujos domínios estavam mais próximos de Jamor.
Além disso, dividiram entre eles o que mais acharam de valor. Pedro se absteve de participar, temendo que eles acabariam investigando de mais se não ficassem satisfeitos com os espólios.
No fim, o senhor de Vilazinha seguiu viagem com o representante de Oss, já que iam na mesma direção.
— E os feridos? — O baronete perguntou a Jin.
Os dois estavam na frente da comitiva. Pedro em sua égua mansa e Jin com seu garanhão cinza.
— Sim? O que há com eles?
O rapaz percebeu que o número de soldados que retornou com eles ou com os outros lordes foi um pouco menor dos que estavam no acampamento mais cedo. Alguns ficaram para trás.
— Como vocês vão levá-los?
Ji ficou confuso com a pergunta. Mas ela logo foi substituída por cinismo.
— Vocês não fazem guerras no Leste?
Aquilo foi o suficiente para Pedro entender a situação. Ficou claro que eles não ficaram para trás, mas foram largados lá.
— Os que têm fé passarão o dia orando a seus deuses, se recuperarão e então vão voltar em um dia ou dois. Os outros, bem… provavelmente farão o mesmo. Mas eu duvido que qualquer um deles tenha muito sucesso.
Um sentimento estranho brotou no peito de Pedro. Uma espécie de questionamento que ele só sentiu algumas vezes na vida. Todas elas na Terra.
Seus punhos apertaram um pouco. Ele se esforçou para não soltar um suspiro alto de melancolia. Aquele era o peso do comando.
Aqueles homens morreram porque ele ordenou. Subordinados dele, que ouviram o que ele disse. Simples assim.
“Que estranho, já fiz isso tantas vezes, mas nunca senti essa coisa. Pensando bem, nem foi a primeira vez que alguém do meu lado morreu seguindo minhas ordens… Por que será que só agora me sinto assim? Ehr…?!“. Uma imagem então lhe veio à mente.
Quatro jovens de idade um pouco menor que a dele. Um era baixinho e tinha cabelos branco-acinzentados, a outra tinha cabelos tigelinha e uma personalidade assertiva, curiosa por natureza.
A terceira também era uma garota, Nathalia. Ela tinha uma franja que cobria os olhos e era bem tímida, além de ter uma quedinha amorosa por ele. O último era “forte” e alto, bem valente nas horas certas.
“Os recrutas”, se lembrou. E se fossem eles ao invés desses soldados?
Aquilo o atormentou. Afinal, ele mal conhecia os homens que liderou nos dias anteriores, então não estava tão abalado assim por suas mortes. Os recrutas, por outro lado…
“Preciso me acalmar. Isso só tá acontecendo agora porque criei um vínculo emocional”, concluiu.
De fato, pensando retroativamente, suas estratégias já enviaram muitos inocentes para a boca da morte. As incursões do Novo Exército, as explosões em Gloomer, a Guerra de Secessão. Pedro sabia. E aquilo nunca o incomodou.
Acontece que agora ele criou um laço forte com alguém. Um que ia além de meros amigos.
Inconscientemente, o povo de Vilazinha entrou na seleta lista de pessoas cujas vidas importam. Por isso sentiu aquele gatilho, mas mesmo essa culpa só durou alguns segundos.
Aquela mesma genética de antes agiu, o mantendo calmo. Foi estranho, o peso desapareceu de forma súbita.
Era como se levantasse um haltere pesado demais e, de uma hora para outra, aqueles quilos se tornassem insignificantes.
— Isso explica porque metade dos homens de Lorde Hatt ficaram para trás — comentou Pedro, em tom ameno e inexpressivo.
Jin deu um sorriso falso.
— Vivem a vida toda na parte densa da floresta. São homens de fé.
— Você não parece ter muita fé nos deuses locais.
Jin puxou as rédeas de seu palafrém para mantê-lo lado a lado à egua mansa de Pedro.
— Em deus nenhum, na verdade — corrigiu o rapaz de cabelos claros.
— E tem diferença? — Pedro ficou curioso. A fé e crenças daquele mundo era um assunto ao qual o terráqueo não tinha a mínima noção.
— Não sei. Me responda você — inverteu a pergunta. — Como é no Leste?
Jin viu o companheiro divagar um pouco, afrouxando o laço de sua montaria.
Durante sua estadia na ilha, Marcus contou que seus iguais trouxeram suas crenças junto. Isto é, aqueles que tinham alguma, pelo menos. Não parecia ser o caso de Marcus.
Todavia, a mitologia greco-romana era a religião mais estimulada pelo Clã às pessoas que não tinham sangue puro — aqueles de fora da alta cúpula, basicamente.
Nos poucos dias em que passou na Cidade Dragonark, ele de fato viu muitos templos e estátuas homenageando os deuses e heróis gregos.
Aquilo sim foi curioso. Afinal, nos tempos modernos aquilo era mera mitologia e ninguém acreditava verdadeiramente na existência desses deuses.
— É complicado — Pedro respondeu.
Jin fez uma feição cínica.
— Poisé. É exatamente por isso que não acredito em nenhuma força além da minha própria — disse.
— Esperto.
— Mas e você? Acredita em alguma coisa? — Ele perguntou.
— Ah! Eu sou católico.
— Ca… tólico? O que é isso? — Jin ficou confuso. — Por acaso são seguidores de algum deus que se chama Cá?
Pedro se divertiu um pouco com o embaraço dele.
— Não, Jin. Por Deus! — disse ele em um tom alegre. — É complicado, eu mesmo não sei muito. Coisa de família. Então nem adianta tentar te explicar.
— Sua família tem um deus? — perguntou com perplexidade. Provavelmente chegou às suas próprias conclusões.
A conversa que eles mantiveram a seguir foi tranquila. Pelo resto da viagem, ambos trocaram experiências e aventuras passadas. Pedro o fez de modo vago, nunca revelando demais. Contudo, achou Jin uma pessoa muito agradável de se conversar.
E isso apesar de suas preocupações com as intenções sexuais do amigo. Felizmente, um dia de marcha era o suficiente para chegarem à Vilazinha, onde Pedro se manteria bem longe de seu caçador.
Nesse ínterim, Pedro descobriu que Jin estudou no melhor colégio da região, se formou com uns vinte anos e daí foi para o exército pessoal da família real. Ele serviu cinco anos como oficial de logística e intendência, daí sua habilidade.
— Somos parecidos, então? — perguntou Jin.
— É. Mas no meu caso não fui mandado de verdade pra uma guerra, né? — respondeu solenemente o amigo.
— Sério?
— Er… não esse tipo de guerra, pelo menos.
— Ehr?! Talvez o Leste seja mesmo muito pacifico. Bom, você deve ter passado por muita coisa depois daquilo, para ser tão frio assim — disse ele.
Pedro devolveu um sorriso sem graça. De fato, ele também tinha suas experiências. Algumas na Terra, que por algum motivo não queria lembrar.
Também já participou de uma guerra em Ark, uma que ele mesmo provocou, mas nunca parou para refletir sobre. Não até aquele dia.
Esse assunto fez com que Pedro se lembrasse mais uma vez do sentimento estranho de mais cedo. Sua mente estava em paz agora, mas aquilo ainda o prendia.
“Esse mundo aqui não tem medicina moderna. A maioria que vai à guerra normalmente não volta”, se lembrou.
Ele então decidiu gravar estas palavras na carne: Não colocar meus súditos em risco.
— Aliás, no início minha noiva falou algo assim também. “Você parece muito frio” e blá, blá, blá, — chamou Jin, mudando o assunto.
— En?! Ah… — disse, voltando à realidade. — Mulheres…
Ele olhou para Pedro e sorriu.
— Sim. Mulheres…
— O que eu estou dizendo?! Eu mesmo não sou uma linda mulher às vezes? Hohoho…
O tom baixo e sugestivo que ele usou fez Pedro tremer. Ele se afastou um pouco, por puro medo.
“Retiro o que eu disse mais cedo! Esse cara com certeza tá tramando alguma coisa!!”, concluiu, decidido a hospedar Jin no local mais distante de sua propriedade quando chegassem.