Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 54
Era dia e, em um quarto iluminado, uma criança se assentava confortavelmente próximo à lareira. Ela folheava seu livreto, apática, enquanto sentia a quentura eufônica e se desligava do mundo.
Na cadeira ao fundo, uma mulher a observava. Seus cabelos castanhos escorriam por entre os ombros, chegando até o seio. Tinha olhos da mesma cor, só que mais claros. Sua beleza era da mesma temperatura daquela estação, fria.
Com seus olhos melancólicos ela fitava a criança. Fazia isso de hora em hora, abaixando o livro e suspirando.
— Natalie, traga um chá para mim. — Acrescentou: — E leite quente para ele, por favor.
A mulher de feições eslavas assentiu com celeridade e se virou para a porta. Todavia, parou antes de sair, hesitante.
— Senhora Rios, a senhora está realmente bem? Sei que ficou até tarde na empresa, se quiser eu olho o Pedrinho. O senhor Rios só vem mais tarde, não é?
Na contramão da boa vontade da empregada, a mulher orientou:
— Não é necessário, Natalie. Apenas faça o que pedi.
— Sim senhora — disse, abaixando a cabeça em um gesto de desculpas.
Contudo, antes que a moça de cabelos negros saísse de vez pela porta, a mulher de meia-idade a parou.
— Perdoe-me a rispidez, Natalie. Sei que sua intenção foi a melhor. É só que… como você disse, não estou tendo noites muito boas. — Ela suspirou.
— Não precisa se desculpar, senhora Rios. Eu entendo — disse ela, se curvando graciosamente e saindo de vez.
À sós, a mulher chamou a criança.
— Sim, mamãe? — O rapazinho continuou imerso em seu livro, sem se prestar a encarar a progenitora. O tom neutro que usou apenas enfatizou aquela atmosfera amena.
— Largue isso por um momento, tudo bem? Vamos conversar sobre o que aconteceu.
A mulher se manteve séria, escondendo seus anseios com as mãos, que se prendiam firmes junto aos encostos laterais da cadeira.
A criança, contudo, não lhe deu atenção. Era como se tivesse orelhas de serpente, incapazes de captar o som.
Notando aquilo a mulher balançou a cabeça, não disposta a desistir.
— Ora, deixe disso! — Ela foi abaixando a voz. — Sei que o que aconteceu não foi fácil. Seu pai até largou o trabalho e veio voando para cá…
Ela falou de maneira exasperada, como se duvidasse que aquilo de fato acontecesse. Então reparou sua exaltação e a abaixou.
— Fazem meses… E seu avô já contou os detalhes do que fizestes lá, rapazinho. Não parece que foi realmente traumático pra você.
— Sim, mamãe, já fazem meses. E a senhora só veio falar disso agora — respondeu. — Aliás, não sei o que o vovô contou, mas discordo. Ele sempre muda a verdade das coisas.
— Pedro! Não reproduza essas blasfêmias — resignou-se a mulher.
— Mas é o que todos dizem… —tentou se defender, antes de ser interrompido.
— Humpf! Não acredite nessa gentinha. Eles só falam isso pelas nossas costas porque têm medo de nós.
— Eu sei.
A mulher fez expressão de dúvida ao reparar a sinceridade súbita do filho.
— Também quero aprender a modificar a verdade. Quero ser igual ao vovô! E a você, mamãe… — Seu tom firme contrastou com a neutralidade de antes. De fato, era esse seu sentimento verdadeiro.
E assim, pela primeira vez em semanas, ela ficou sem reação. Não sabia se o repreendia ou não. Afinal, estimular um garotinho a mentir nunca deveria ser o papel de uma mãe. Embora por vezes elas sejam necessárias no meio em que eles conviviam.
Com isso em mente ela ponderou um pouco, se preparando para dizer algumas coisas importantes ao filho. Naquele momento, contudo, a porta do quarto se abriu.
— Senhora Rios, o Senhor Clark, ele… —avisou Natalie, se esquivando rapidamente do caminho.
— Olá, Pedrinho! — soou a voz grossa ao fundo, debruçando-se na porta.
— Vovô!
A criança deixou o livro de lado e foi ao encontro do homem. Ele o recebeu com um cumprimento simples, coisa deles, possivelmente.
— Como tá se sentindo? Meditou sobre o que falei? — perguntou o idoso.
— Sim — assentiu a criança.
— Ótimo — respondeu o velho. — Não se esqueça do que nos ensinou o filósofo: “o que não nos mata, nos fortalece”. Use esses ataques fracos para afiar suas lâminas, você vai precisar delas no futuro, contra os verdadeiros inimigos.
O rapaz assentiu e o idoso lhe deu tapinhas nos ombros. De alguma forma, Clark concluiu que ele estava bem e então se permitiu desviar a atenção.
— Oh, Kamila. Não vi você aí. Olá! — provocou.
— Saudações, papai. Chegastes bem mais cedo do que combinamos. — O tom da moça esboçava desconfiança (e um pouco de tristeza velada).
— Ah! sim, sim. Tive um golpe de sorte no laboratório. Nada demais — desconversou. — Falando nisso, você já arrumou as coisas dele?
Pedrinho ao canto olhou para eles com surpresa. Não se lembrava nada sobre isso.
— Pelo visto não…
A mulher encarou o idoso acirradamente.
— Papai, ainda não desistiu dessa ideia descabida?
O homem não respondeu, apenas encarou rispidamente e então se virou à empregada.
— Natalie, querida, vigie o Pedrinho um pouco, por favor. Eu e minha filha vamos conversar lá fora.
— Sim, senhor Rios…
A empregada não sabia o que dizer nessa situação constrangedora. Mas isso não foi necessário. Clark e Kamila saíram depressa.
E Pedrinho, é claro, ficou deveras curioso. Mas não quis espiar. Simplesmente pegou outro livro em uma das prateleiras e se manteve estático em sua almofada.
A conversa durou algumas dezenas de minutos. Enquanto isso, a empregada continuava a vigiá-lo.
“Quatro anos atrás ele fugia sempre que mencionavam a palavra estudo. Hoje em dia já não faz nada além de ler”, ela pensou.
A empregada teve uma epifania enquanto olhava os arredores da biblioteca.
“Agora que parei para pensar, quando foi que Pedrinho começou a se interessar por estudos mesmo…?” refletiu, olhando para os lados.
Pelo que se lembrava esse habito nada tinha haver com o tal “incidente”. Não… isso foi há alguns anos, quando o senhor Clark veio mandou reformar a biblioteca.
Desde então, Pedrinho se interessou muito mais por coisas do tipo. Se tornando cada vez mais apático conforme aprendia, progressivamente mais distante do mundo.
— Natalie — chamou o garoto.
— Sim, Pedrinho. O que foi?
Ele fez um pouco de manha, dizendo em um tom calmo porém cuidadoso:
— Você pode me trazer um pouquinho de leite quente? Por favor, eu realmente quero um pouco agora…
O senhor Clark a havia instruído a permanecer na sala, por isso, ela ia recusar o pedido dele. Contudo…
— Sabe, mamãe tinha razão. Eu acho que não superei completamente aquilo ainda, eu… eu só quero um pouco da minha bebida favorita…
A cara fofa que fez lembrou a Natalie que Pedro ainda era uma criança, apesar da perspicácia acima da média e da ataraxia nietzscheana.
Vendo que estava em dilema, ele fez beicinho, quebrando completamente o coração da empregada.
Ela o abraçou.
— Tudo bem, Pedrinho. Não fica assim — disse. — Eu vou lá em baixo pegar sua bebida. Espere um pouco, sim?
Depois de o soltar, foi rapidamente preparar o prometido.
— Que fácil — comentou o menino, voltando imediatamente à sua expressão indiferente de antes.
Ele encarou a porta aberta e vislumbrou o final do corredor. Sua mãe e seu avô estavam conversando ali. Deveria ir bisbilhotar?
— Nha… Não tenho o menor interesse nos planos do vovô. Provavelmente ele só quer viajar pra algum lugar perigoso de novo, aqueles que mamãe odeia — concluiu em voz alta o rapaz, retornando à literatura.
Alguns minutos depois e a porta da biblioteca foi arrombada com um grito eufórico. Pedro quase pulou de susto com o ato do avô.
A mulher de cabelos castanhos o seguia, com olhos mais tristes do que quando saiu.
— O que houve? — Ele perguntou, abaixando o copo vazio.
A empregada o pegou.
— Pedrinho, você já domina o inglês, certo?
Ele assentiu, sem saber o que o velho queria.
— Muito bem, porque nós dois vamos morar um tempo fora — disse Clark.
Como assim? Fez a tez de Pedrinho, pensando que dessa vez o avô pirou de vez.
Igual a um parquímetro quebrado, ele concluiu que o avô perdeu o limite. Mas ele saberia o motivo de tal.
— O que você pensa da China?
…
No escritório de uma pequena mansão…
— Que curioso, faz tempo que eu não durmo lendo — comentei sem querer, largado em meio à escrivaninha.
Gyaaa… Não me admira. Passei o dia me esquivando do ciúmes de Rebecca e a noite toda dos avanços de Jin(a).
E de tarde ainda arrumei algum tempo para supervisionar os preparativos para a próxima etapa do Plano de Metas.
Crack! Crack! Preciso me alongar um pouco. Meu corpo não dói, mas a mente exige que faça isso depois de uma soneca. Que confortável…
Essa próxima fase vai ser um pouco pesada. Vou gastar mais dinheiro com reboco do que a prefeitura da minha antiga cidade. Hehe! Mas agora meu porão tá cheio, não preciso mais me deslocar pra todo lado.
Óbvio, não pretendo usar muito ainda. Vilazinha é muito fraca e não quero chamar atenção pra cá agora. Algo gradual parece ser o ideal.
— Certo… vou anotar isso — murmurei.
Chic! Chic…
Aliás, o ciúme exagerado de Rebecca tá começando a virar um problema. Vez ou outra ela aparece nas minhas aulas de hipismo por causa da Celine.
Sério mesmo, conversar com outra garota enquanto se namora com ela é como pegar uma rodovia e dirigir sem as mãos, de fone e com os pés no painel. A chance de um acidente acontecer é imensa.
Ontem mesmo a maluca fez isso de novo, embora eu acho que no caso a preocupação foi devido a Jin(a). Sim, ele(a) também tava lá. Os três não se deram muito bem….
Enfim, apesar desse defeito, Rebecca é uma boa pessoa. É atenciosa e sempre pergunta como foi meu dia, também se preocupa muito com as opiniões que dou e até prometeu que ia parar de se intrometer nas minhas aulas com Celine — depois que a xinguei ontem, é claro.
Ultimamente a peguei ajudando o pessoal da vila escondido. E eu acho que não foi algo que começou a fazer só agora, já que todos com quem conversei parecem gostar dela.
Também não vou enganar, as vezes sinto que ela é uma jamanta. Lerda pra caraca. Mas tô começando a achar que é só encenação.
Pelo que Beto disse, ela é de uma família arrivista do Leste Central. Ali só tem conspiração e lutas políticas complicadas. Por isso acredito que talvez o pai dela tenha perdido uma dessas disputas e se mudado pra cá.
Bem… não sei os detalhes e Rebecca também não fala muito, mas uma vez a deixei bêbada e a fiz contar umas coisas. Acho que tava bêbado também, pois não lembro muito de que coisas eram essas…
Oh! O sol já ta no meio do céu. Preciso ir, está quase na hora.
Toc! Toc!
— Jovem lorde, você já está pronto?
Ehr… Esse velho cachaceiro sempre sabe a hora certa de me interromper. Enfim, melhor não deixar o pessoal esperando.
— Cê já pegou as sementes, Mark? Não dá pra fazer rotação de culturas se não tiver variedade, pô — digo, ajeitando o cabelo antes de sair.
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