Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 55
O dia de Pedro começou com suas habituais aulas de hipismo com Celine.
A garota de cabelos esverdeados estava em pé, do lado da égua mansa do lorde, ensinado-o a tratar do animal. Ela pegou uma escova fina e deslizou o objeto sobre as costas da montaria.
Suave e estável, como a brisa primaveril. A égua pareceu aprovar.
— Não entendo… Por que eu não posso só jogar água nela?! Mais eficiência, pô — A observação foi feita por Pedro, um neófito quando o assunto é tratar bem um ser vivo não-humano.
— Quê? Não, meu lorde! Se fizer isso, ela vai odiar você…
Celine ficou incrédula observando a falta de tato do rapaz. Era como se na mente dele, não existisse diferença entre os meios de transporte animal e mecânico.
— Se me permite, meu lorde, qual nome destes para ela? — perguntou.
Pedro ficou confuso. Ele realmente deveria dar um nome a ela?
— Nome? Não. Chamo ela de égua mansa. Só isso…
A treinadora suspirou.
— Não, meu lorde. Animais também têm sentimentos, se ela não se sentir cuidada por você, não vai retribuir dando o seu melhor.
Aquilo pareceu despertar algum gatilho mental nele. No momento seguinte virou para o animal e o perguntou se gostaria de um nome.
Talvez por acaso, ou talvez realmente por entendê-lo, a égua relinchou. Pedro acatou o gesto como uma resposta.
— Okay. Vou te dar um nome — disse.
Celine sorriu.
— Você agora é Veneno — completou.
O sorriso cessou.
Já a égua respondeu com um coice. Felizmente ninguém se feriu.
— Meu lorde. Seja sério, por favor — pediu a moça.
— Eu estou sério. Só queria transmitir minhas intenções a ela. Quero que ela corra rápido, como um possante venenoso.
— Possante venenoso... — Celine repetiu sem entender.
Pedro fez um gesto com as mãos, desconversando. Não havia como explicar aquilo pra ela.
— Bom, já que não gostou, que tal eu dar outro nome? Deixe-me ver…
Ele caminhou um pouco, pensativo. Reparando nas características do animal, percebeu que a crina dela era muito cumprida e isso o fez se lembrar de um certo personagem bíblico famoso.
— Já sei! — disse. — Vou te chamar de Sansão!
O animal não esboçou reação. Frio como gelo, ou uma mulher com raiva.
— Senhor, desculpe a intromissão excessiva, mas… ela é fêmea. Não acho que gostaria de ser tratada como um macho.
“Humf! Então ela precisa ter mais conversas com Jin(a)”, pensou, antes de dizer:
— Tá, tá. Vai ser Dalila então. Que tal?
O cavalo respondeu favoravelmente dessa fez, relinchando com a cabeça. Aquilo foi muito curioso para Pedro.
Ele se perguntou se ela realmente era capaz de entendê-los.
A seguir o dia transcorreu tranquilamente… ao menos até Pedro ser surpreendido na praça da vila, enquanto ajudava a montar o palanque para o festival.
— Meu lorde, venha rápido! Venha rápido! Tem umas pessoas na entrada, elas pediram para falar com o senhor! — gritou de longe uma campesina.
Aquilo surpreendeu os presentes, que seguiram o lorde até o local designado pela moça.
…
Pedro ficou surpreso com o que viu. Mal completaram dois dias que o amigo retornou a Oss, depois de descansar um dia em Vilazinha, no entanto já havia retornado.
Curioso. Afinal, o exército de homens com os quais ele saiu ficou menor. Não apenas isso, mas estava diferente também.
Mulheres, crianças e só alguns homens. E mesmo estes diferentes daqueles que viu. Mal ultrapassavam a casa dos vinte, diferente dos veteranos experientes de antes.
Pedro avançou para recebê-los.
— Jin, o que houve? — perguntou para o amigo esfarrapado em cima do cavalo.
Ele sorriu ao avistar Pedro, mas sem falar nada em resposta.
Olhando-o de perto notava-se as lágrimas caindo de seu rosto abatido. Se misturavam em meio ao sangue e poeira.
Paft! O jovem desabou.
— Jin!
— Querido!
Uma moça loira rapidamente se desfez de sua montaria e correu para apoiá-lo.
— Ele precisa de ajuda, rápido! — gritou.
Pedro rapidamente foi até lá e verificou se a queda deixou algum tipo de ferida. Não havia nenhuma. Os batimentos também estavam normais, portanto relaxou.
— Ele tá bem, não machucou nada importante.
A expressão da loira também ficou mais calma, mas seu olhar ainda carregava um sentimento misterioso. Pedro conhecia aquilo, um misto de angústia e frustração. Ela estava preocupada.
— Você é Pedro, o lorde de Vilazinha?
— Sim.
Ao ter sua confirmação, a moça agarrou as mangas da blusa dele. Foi rápida, meio sem jeito. Suas mãozinhas tremiam.
— Por favor! Você tem que ajudá-lo! Ele… ele… hunc…
Gotas caíram do alto de seu rosto, seguidas por um soluço volúvel e uma cachoeira de lágrimas. Em seguida ela também desabou, não fisicamente apenas, mas também em seu emocional.
Pedro foi rápido em a reconfortar. Ele sabia que precisava disso.
— Calma, calma… Jin é meu amigo, não sei o que houve, mas é claro que vou ajudar.
— Sério… hunc… sério mesmo? — perguntou a garota, em meio a soluços e choros.
— Sim — Pedro confirmou mais uma vez, afastando a garota de seu abraço.
Ele até queria perguntar-lhe os detalhes do ocorrido, mas Jin ainda estava desacordado e ela também não parecia ter as condições necessárias para uma conversa.
Por isso, ele se virou em busca de apoio, bem na hora de ver Rebecca e Mark chegando.
— O que aconteceu? — Eles perguntaram.
Rebecca correu na frente do conselheiro, chegando para ajudar seu amado com os feridos.
— Leve essa moça. Dê um pouco de leite quente com açúcar pra ela — Pedro a orientou, que concordou sem questionar. Em seguida, ele se virou para o lado. — Mark, chame os policiais e recolha essas pessoas. Deem-lhes comida, bebida e todas os trapos que conseguirem arrumar, é primavera, mas elas devem tar com frio.
O conselheiro assentiu, rapidamente se virando para dar ordens a alguns agentes por perto.
— Mas, meu lorde… e o festival? — perguntou um aldeão.
— Esqueça, — respondeu rispidamente o lorde — quero que chame Marta. Diga a ela para dar uma folga ao pessoal e paralisar o que puder ser paralisado. Em seguida, manda ela ir lá pra minha casa que precisamos urgente conversar.
— Sim, meu lorde!
A seguir a sua gente foi dispensada e os acompanhantes de Jin reunidos na praça da vila. Eram cerca de duzentas pessoas, então o local era o único que os comportaria.
— Vamos levá-lo para minha casa. — Pedro carregou o amigo em seus braços. Ele era seguido por dois soldados remulus.
…
Horas depois…
— Quando voltamos, Oss estava um caos! Tentei descobrir o que estava acontecendo com meu tio, mas, logo na entrada da cidade…
Mais lágrimas caíram.
— O que houve, Jin? — perguntou Pedro, ansioso.
— Ele morreu…
— O quê!?
Jin caiu no choro novamente. Pedro então recolheu o amigo em um abraço.
Os dois estavam em um dos quartos de hóspedes da pequena mansão. Mark os acompanhava, mas saiu quando viu o aceno do rapaz de vestes escuras.
Minutos se passaram desde então, até que o jovem lorde saísse do quarto. Na porta estavam dois soldados remulus de guarda.
Pedro desceu as escadas até a sala, onde Rebecca assistia a loira que acompanhou Jin antes. O conselheiro careca estava com elas, seguido por um homem de meia-idade que logo descobrira-se ser o vice-líder da guarda de Oss.
Percebendo sua presença, a garota loira pulou do sofá e correu até o rapaz.
— Como ele está? Como meu noivo está? — A preocupação consumia sua voz. Mas Pedro logo a aliviou.
— Ele está bem. Tá dormindo agora, mas chorou muito mais cedo. Tenho certeza que ficou chateado com a morte do tio.
A garota abaixou a cabeça em pesar.
— E você, tudo bem?
— Sim… eu acho — respondeu a garota com neutralidade.
A atitude surpreendeu Pedro, que quis saber mais.
— Você é a noiva de Jin, certo? Qual o seu nome?
— Eu sou Grace… dos Loss, arredores da Capital.
— Tudo bem, Grace. Se já está bem, por que não sobe e vai ficar com seu noivo? — Ele propôs. — Jin está no primeiro quarto à esquerda. Tem dois guardas bem na frente do quarto, mas você pode pedir pra eles saírem se quiser. Basta dizer: Deinde move!
— Certo — murmurou ela, antes de subir as escadas. Apesar do pesar, ela tentou manter-se estável e neutra durante toda a conversa, Pedro percebeu. Provavelmente algum tipo de etiqueta dos nobres citadinos.
Ela também não perguntou novamente a frase que ensinou. Ele se perguntou se era porque entendeu de primeira ou se não tinha a pretensão de retirar os guardas de lá.
Ele não tinha mais tempo para gastar com bobagens. Assim, logo balançou a cabeça e então passou ao próximo tema: descobrir o que diabos aconteceu em Oss. Por isso, se virou em direção ao acompanhante com armadura desgastada e rosto abatido.
O oficial lhe deu um relatório completo. Demorou cerca de meia hora.
Pelo que disse, depois que Jin saiu com mais da metade das forças de Oss, incluindo todo o esquadrão de logística, eles sofreram um ataque interno. Aquilo foi estranho. Um grupo de homens histéricos começou a varrer a cidade, do nada.
Vendo rostos conhecidos, os guardas inicialmente pensaram que se tratava de uma rebelião. Contudo, isso logo foi descartado.
Aquelas pessoas não estavam normais. Ele mesmo viu. Seus olhos não tinham cor, espuma branca saia de suas bocas e, o mais bizarro, eles começaram a morder as pessoas. Além disso, ganharam capacidades físicas sobre humanas, massacrando qualquer guarda que se colocasse no caminho.
Resumindo, foi um massacre.
— Lorde Giron me mandou juntar os soldados mais jovens para reunir todas as mulheres e crianças que encontrássemos. E assim fizemos, mas… mesmo assim… — O olhar do homem mostrava consternação. Ele claramente não estava satisfeito com os próprios resultados.
Ele então contou mais coisas. Que o tio de Jin ficou para trás de propósito, liderando as forças para resistir ao desiderato dos inimigos. Que eles formaram um cerco em “Velha Oss”, área mais populosa e também a única que não tinha sido afetada pelos “monstros”. Que Jin chegou logo na tarde do dia em que se iniciou o ataque e que isso foi crucial para que conseguissem ganhar terreno.
Aliás, a esposa do oficial foi salva junto com a leva de refugiados que ele e Jin recolheram, o que explicava a calma.
— Você não deveria estar com ela? — Pedro questionou.
— Não podia. Não sem antes alertá-lo de tudo! — respondeu o homem com convicção. Mas o que ele disse em seguida é que fez todos no recinto estremecerem:
— Lorde Pedro, Lorde Conselheiro. Sinto muito os incomodar, mas nós só conseguimos reunir aqueles mais próximos da parte sul da cidade. Algumas pessoas reclamaram comigo, dizendo que seus parentes nos campos ficaram para trás. Sei que a situação é difícil e não podemos voltar para buscá-los, mas…
— Entendo — interrompeu Pedro. — Você pode ir pra sua esposa agora, oficial.
O homem deu-lhe uma olhada estranha, receosa. Ele queria dizer alguma coisa, mas não o fez.
— Sim, senhor — assentiu antes de sair.
Quando a porta se fechou, o conselheiro se aproximou do lorde.
— O que vai fazer, jovem lorde? — Mark questionou. — A situação é crítica, se isso for de fato um vírus, então precisamos avisar não só Lorde Edward, como também a Vossa Graça, o mais rápido possível!
Pedro entendia as preocupações do velho, contudo tinha outros planos.
— Não. Não avisa ninguém ainda. Pode criar boatos estranhos e dificultar a sucessão do Ed.
O levantamento do jovem estava certo. Contudo, para Mark, só poderia haver sucessão se houvesse uma Mea. E se, como diz o relatório do oficial, Oss foi infectada por um vírus estranho, então eles devem se preparar.
Inclusive, havia a possibilidade de mais locais estarem sendo contaminados. Afinal, isso não aconteceu recentemente? Eles ainda não sabiam ao certo quem estava por trás do contrabandista ou dos gaudérios, e se fosse o mesmo grupo?
Ele ia trazer essas colocações, mas foi bruscamente interrompido por Pedro.
— Eu mesmo vou resolver isso — disse o jovem lorde.
Mark franziu as sobrancelhas.