Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 56
A garota pulou do sofá depois de ouvir a fala do namorado.
— Amor?! Eu ouvi bem? Quer ir sozinho?
Pedro a fitou seriamente.
— Sim, é perigoso. Não pretendo levar nenhum subordinado meu pra morte. Por isso, irei só eu e alguns remulos.
— Não! Você não pode! — disse, agarrando-se a ele. — Eu vou com você!
A preocupação dela era perceptível, similar ao que ele sentia com os recrutas. A jovem apenas não queria que um desastre acontecesse.
“Eu já saí diversas vezes para a guerra e nunca vi ela tão preocupada assim”, raciocinou.
E de fato era verdade. De todas as vezes que ele se jogou de cabeça antes, essa foi a primeira que ela insistiu em ir junto. Não tentou impedi-lo, mas se ofereceu para ir com ele. Queria protegê-lo.
“Ela provavelmente sabe de alguma coisa que eu não sei”, foi o que ele concluiu.
— Aquelas coisas… que o vice-capitão da guarda falou, digo. Ehr… parecem perigosas.
Rebecca não sabia esconder seus sentimentos. Pedro gostava disso, mas essa era uma péssima hora. Era necessário ser rápido.
Mark entendia isso e se aproveitou da situação para deixar a sala.
— Esse é um bom motivo pra você não ir, Rebecca. Ninguém vai, só eu e os remulos, eis a minha decisão!
O rapaz foi inflexível. A garota fez biquinho em revolta.
— Papai já lutou contra coisas parecidas antes e me contou muito, talvez eu possa ajudar — tentou negociar.
— Seu pai? — Pedro perguntou.
A garota confirmou com um joinha.
— Sério? Quando seu pai fez isso? Aliás, o que seu pai fazia antes de vir para Mea?
— Não sei. — A resposta foi direta.
Pedro não acreditou naquilo. Eles eram pai e filha, ela obviamente sabia o que ele fazia. Contudo decidiu não insistir no ponto, não era hora para isso.
Um sopesamento se fez necessário nessa situação. De um lado, levá-la poderia colocá-la em perigo. De outro, poderia ser útil, já que ela provavelmente tinha algum conhecimento do tema.
A força pessoal também deveria ser considerada. Rebecca não era fraca. No entanto, Pedro sequer cogitou a possibilidade.
— A resposta ainda é não —disse, tão firme quanto o tronco do ipê.
Rebecca virou a cara, preparando-se para contradizê-lo, quanto teve os lábios selados subitamente. Ele a calou com um gesto ousado.
Um toque suave, porém feroz. Lábios finos, mas que a envolviam por completo. Com seus sentidos captava aquela doçura ardente a envolver por completo. Como a lenha, ela era dominada pelo fogo.
— Não é que desconfie da sua força, meu amor. Na verdade é o contrário — Ele explicou, relaxando seu toque e se afastando.
A garota fez cara de quem não entendeu. Ainda estava perplexa pelo beijo roubado.
— Já faz quase um ano que te conheço, sei da sua força. E sei de outras sobre você também, coisas que você não mostra, mas eu sei. Sabe por quê?
O semblante de Rebecca refletia sua desconfiança.
— Alguém te disse alguma coisa? — perguntou. Ela se referia a Beto.
— Não — Pedro mentiu.
Ela ia questioná-lo, mas o rapaz não lhe deu a chance. A trouxe para perto de si novamente e olhou em seus olhos fixadamente.
— Eu apenas te observo. O que é esperado, já que te amo…
A frase que ele falou no final fez a garota vacilar. Foi uma declaração explícita. Quase inaudível, verdade, porém explicita.
E ele não deu tempo para nenhuma outra reação de Rebecca. Envolveu-a no peito e a afogou com seu abraço.
— Por isso sei tanto sobre você… — Ele a tinha fisicamente em seu domínio.
Escutá-lo assim de perto trazia um arrepio incomum à garota. Não era ruim, pelo contrário, aquilo a acalmava.
— Percebi a sua aproximação súbita depois do banquete e, de verdade, nunca entendi como aquela parada aconteceu. Digo, do porquê você ter se agarrado a mim… eu desconfiei de você.
Um minuto. Esse foi o tempo que levou para que o coração dela fosse de oito a oitenta, como um paraty na estrada.
— Mas admito, também não fui sincero contigo. Me desculpe — Ele completou, se afastando de vez.
Ela não entendeu. Mas a próxima fala elucidou tudo.
— Você percebeu? Falo sobre a minha força e minha origem. Nunca escondi, mas também não expliquei pra ninguém, inclusive a você.
A garota ficou sem palavras. A boca abria, mas nada saia.
— Vou ser sincero, cansei de segredos. — Ele a colocou contra a parede, literalmente. — No entanto, essa não é a melhor hora para discutirmos isso.
A garota continuou a fitá-lo enquanto se afastava.
— Depois desse incidente nós vamos conversar. Se vamos levar nosso relacionamento adiante não poderemos ter segredos.
Rebecca sentiu uma pontada em seu coração. O alívio veio em seguida.
No final das contas, ele ainda pensava em avançar o relacionamento. Não só se declarou como foi sincero. Essa foi a primeira vez em todos esses meses que a garota presenciou isso. Ele falou com o coração.
— Sim! — assentiu a menina de pupilas lilases. Seus olhos mostravam sinceridade e estavam cheios de expectativa.
Ela possivelmente chegou às próprias conclusões com a parte de “levar o relacionamento adiante”. Sabe-se lá o quê exatamente.
— Ótimo — disse Pedro, levando a mão até aquele rosto pulcro, tocando-o afavelmente.
Ela sorriu, para a arrelia do rapaz.
Se ela soubesse como ficava bonita assim, conseguiria arrancar tudo dele. Homens são completamente vulneráveis a esses sorrisos.
— Voltando ao assunto principal. Eu vou, você fica. Você é forte e preciso que proteja a vila.
O argumento fazia sentido, Rebecca também chegou a essa conclusão.
— Mas não quero que se coloque em perigo, ouviu! — O tom era sério. — Se perceber que vai dar ruim é pra você correr e se esconder. Deixa que o velho e os recrutas se virem.
Qualquer pessoa acharia aquilo um verdadeiro absurdo. Deixar os seus e fugir? Impossível.
Rebecca, contudo, era diferente. Ela entendeu a orientação de um modo próprio, como se seu amado a colocasse acima da vila.
Os sábios estavam certos, ninguém nunca seria capaz de entender a mente de uma mulher apaixonada.
— Deixa comigo! — assentiu, fazendo um gesto com o punho.
— Certo — ratificou o rapaz. — Agora fala pra mim o que você sabe sobre esses antropófagos, sim?
Ela concordou e então lhe passou um pequeno relatório sobre aquelas criaturas. Eram ghouls, seres humanos infectados por um determinado tipo de neurotoxina que fritava os cérebros e aumentava as capacidades psicomotoras.
O método para fabricá-la era desconhecido e o pai de Rebecca não disse muito pra ela. Avisou apenas que quase sempre vêm acompanhadas por alguma aberração, o que foi repassado a Pedro.
— O que são essas aberrações? — perguntou.
— Não sei, meu pai não explicou e eu também nunca vi uma — explicou a jovem. — Mas ele disse uma coisa…
— O que foi?
— Se você ver uma, corra! — Ela continuou.
— O quê?!
— Corra ou então atravesse de uma vez seu coração. Ou você os mata de surpresa, ou foge e espera o amanhecer. Meu pai disse que eles odeiam a luz. Fogo lida bem com eles.
Pedro fez cara de dúvida. Essa tal aberração não era muito parecida com os vampiros, esqueletos e zumbis da Terra? Todos eles também eram vulneráveis à luz.
— Vou manter isso em mente — explicou.
Logo em seguida, eles foram interrompidos por um batido na porta. Era Marta, que veio atender a solicitação de Pedro.
A conversa foi breve. O lorde só queria saber o que podia ser parado e instruí-la a continuar apenas com o essencial para a realização do festival. Também avisou que talvez fosse necessário alterar a data, além de incluir as pessoas que vieram de Oss.
Com a catástrofe, o clima não era o mais adequado para uma festa. O baronete sabia.
Contudo, outras coisas além de diversão estavam incluídas nisso. Além de celebrações importantes, como a graduação dos recrutas, esse também seria o seu primeiro marco especial para a formação da cultura local. O futuro estava em jogo!
Ademais, talvez um pouco de festa fosse o que eles precisassem para recomeçar. Mas, claro, isso dependeria se Pedro poderia ou não solucionar a crise rapidamente.
— Muito bem. Caso alguém pergunte, diga que estou pessoalmente liderando uma equipe de elite para buscar os sobreviventes e, se possível, eliminar a ameaça — pediu ele à idosa.
Nesse momento Mark também estava lá e por isso acabou assentindo também. Rebecca olhou para seu amado de canto, mordendo o lábio inferior em consternação. Ela não queria deixá-lo, mas ele lhe confiou uma missão importante, uma missão que ela iria cumprir.
A seguir, o jovem lorde deu algumas instruções para o conselheiro e para a alta cúpula da polícia, inclusive os recrutas — que para ele já estavam formados, embora ainda esperassem a cerimônia oficial.
Logo depois mandou chamar metade dos remulos e partiu assim que se reuniram.
O objetivo era eliminar a ameaça que dominou Oss.
…
Enquanto isso, em um lugar muito distante de Mea, um homem recebia relatórios.
— Abra-se comigo, cabrón. Tem certeza do que ouviu?
— Sim, Grão-Mestre.
O responsável pela pergunta foi Fernando Hernandez, ancião do Clã Dragonark. O homem estava recostado sob um assento de pedra muito peculiar, no salão interno do que parecia ser uma ruína antiga.
— Tudo bem. Pelos relatórios anteriores, eu já esperava que o pilo velho ia conseguir. Parece que acertei esse gol…
Hernandez não estava sozinho. A seu lado, além do subornado, também estava um outro homem encapuzado.
— O que fazemos agora, Grão-Mestre? — perguntou a sombra.
— Hum… agora eu tenho que pensar…
O ancião de cabelos negros saiu do trono de pedras e circulou por ai.
“A última carta do Presságio dizia que o relacionamento entre Pedro e a mocinha dos Barcellos estava avançando. Mas ele nunca mencionou uma outra mulher”, pensou.
A expressão no rosto ficou complicada, como se mastigasse limão.
“¡Anda ya! Vai ficar realmente problemático se ele pôr um filho nela. Sei que os elfos têm uma certa… dificuldade, mas ainda assim, quem é que sabe o quanto da genética ela herdou!?”
Em seguida foi até um certo pedestal, apoiando-se sobre o objeto e movendo seus olhos para cima. O brilho prateado adentrava pelas frestas do monumento.
“Gyaaa! Marcus vai ficar full pistola comigo, mas não tem jeito… O maricón do Kremer já tá pressionando os neutros no Conselho pra pregar seu falso moralismo”, pensou, mudando de uma resignação tristonha a uma careta feia de desgosto.
— ¡Aquele gordo baitola! Pajero! Hijo de una…
— Grão-Mestre??!
— Opa! Fiz de novo, perdón.
O encapuzado acenou com a cabeça. O subordinado continuou no canto do salão, com o silêncio de uma cobra e de cabeça baixa.
— Lo siento. É um antigo hábito. Quando você passa muito tempo sozinho por aí acaba desenvolvendo alguns…
O subordinado não disse nada em resposta.
“Hum… O que fazer agora? O quarta geração não parece ter a mesma disposição que eu e Marcus. Se ele se casar com a niña púrpura antes de tomar uma esposa de sangue puro, vai deixar metade do Conselho encarbronada”, raciocinou.
Naquele momento, Hernandez voltou para seu assento.
— Vou fazer questão de ensinar esses assuntos pra ele no futuro — disse, se referindo a Pedro, antes de depositar o olhar no subordinado ajoelhado e instruir: — Dispensado.
— À sua ordem, Grão-Mestre! — Ele piscou e sumiu.
Em seguida, o ancião se levantou novamente, dessa vez alongando o corpo.
— Ya… acho que vou ter que me exercitar um pouco. Espero que aquela ninã hermosa não tente me matar antes de ouvir o meu pedido de novo — disse. — Se bem que… talvez seja eu quem tenha que matá-la dessa vez.
O encapuzado ficou em silêncio, esperando as ordens.
— Muito bem, Pancho! É o seguinte, enquanto eu estiver em Lunis, você vai para Trous.
— Quais os detalhes da missão? — perguntou o subordinado.
— Sabe aquele pilo velho de quem estávamos falando mais cedo? Então… você vai chegar no ouvidinho dele e dizer…