Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 57
Calamitosa. Essa foi a situação encontrada por Pedro em Oss.
Dois minutos atrás, ele saiu às pressas de Vilazinha. A dúzia de remulus que o acompanharam foram deixados para trás na estrada.
Situação urgente. Usar o máximo de velocidade era essencial. Por isso foi na frente, não se preocupando em fazer pequenas crateras no solo ou de desviar dos obstáculos incômodos. Muitas árvores morreram naquele fatídico dia.
Pela resistência do vento e impacto dos pequenos objetos que esbarravam em si, Pedro supôs que estava perto — bem perto mesmo! — de romper a barreira do som.
O relato do homem o preocupou.
Se o que disse for verdade, se for mesmo um vírus, então ele teria que matar todas as aberrações antes que começassem a infectar outras regiões.
“Isso pode acabar com a sucessão do Ed. E sem Ed, Vilazinha ficaria sem proteção quando eu não estivesse”, refletiu.
E foi só chegar a Oss para que aferisse por si próprio. A situação era perigosa. Felizmente, sua pressa deu frutos e já na entrada ele viu.
Uma criança precisava de ajuda!
A garotinha se escondia no alto do telhado, enquanto criaturas humanoides se reuniam na frente da casa.
— A janela tá aberta, ela deve ter escapado por lá — murmurou, antes de partir pra cima das aberrações.
Eram três ao todo.
Pah! A cimitarra de prata foi de encontro ao tronco do alvo.
Movimento de raquete.
Shiiiiiiiiiin! Blooom!
A aberração sequer notou como deixou esse mundo. A metade de cima do corpo explodiu, a outra caiu no chão.
Em seguida, Pedro empunhou a arma e lidou com o restante deles.
Shiiiiiin! Shiiiiiiiin! Dois cortes, duas baixas. Preciso como um tiro.
Quando a última cabeça rolou pelo chão, Pedro embainhou novamente o espólio gaudério. Ainda precisava tirar a garotinha do telhado.
Para isso, deu um pulo alto, caindo bem no centro da cumeeira.
— Como você tá? — perguntou, depois de se estabilizar. Algumas telhas caíram com isso.
Mas a menina não o respondeu com palavras. Na verdade, o que ela fez foi correr para ele, envolvendo-o com seus anseios.
Sentindo-se segura pela primeira vez depois de dias inteiros se esgueirando pela vida, longe de seus pais e amigos, a única coisa que poderia fazer era descarregar suas águas. Chorar muito e muito alto.
E ele deixou que chorasse, que berrasse e que soluçasse, mantendo-a presa em seu peito a todo momento.
Foi quando enfim teve tempo de olhar para os lados e ter uma visão que o fez tremer.
A maioria das casas já não tinham portas ou janelas. O cheiro de urina permeava o ar. Poças vermelhas se formaram no solo outrora imaculado de Oss. O ambiente era apocalíptico.
Olhando além, viu as paredes quebradas, os entulhos jogados e as construções em ruínas. Corpos foram largados aos montes pelo chão. Apenas o declínio reinava na outrora cidade ascendente.
Pedro tapou os olhos da menininha. Na esperança que isso anulasse o que já havia visto.
Em seguida a tomou nos braços e se retirou dali. Se os gritos dela chamassem a atenção de mais aberrações, as cenas que teria que presenciar só fariam crescer ainda mais seu trauma.
…
Cinco minutos depois, ele parou em uma clareira agreste.
Felizmente, o local que usou com os recrutas de base ainda estava lá. Uma posição muito boa para ver a aproximação inimiga.
Lá ele abaixou a garotinha, que ainda chorava. Entretanto, ela se recusou a largar suas vestes.
— Ei, vamos lá. É seguro, aqueles monstros estão fora e o tio tá aqui com você…
Ela não disse nada, nem se soltou. E Pedro não sentiu a umidade em seu peito cessar. Chuviscos ainda caiam de seus olhos pueris.
Pelo visto ele teria que se esforçar muito mais se quisesse acalmá-la.
— Ei, não chore. O tio tá aqui, não tá? — disse, acariciando aqueles cabelos amarfanhados, desgrenhados pela sujeira.
Depois, a pegou pelos bracinhos e a afastou cuidadosamente de si. Foi quando pôde ter uma visão melhor do mal que a afligia.
Sua constituição era fraca, tão frágil quanto o orvalho no verão. Precisava de comida e água urgente. Mas o essencial agora era deixá-la segura.
— Qual o seu nome? — perguntou, carinhosamente.
— Vânia… huc… — respondeu, ainda chorosa.
Contudo, ainda assim se esforçou para encarar seu salvador nos olhos. Suas mãozinhas estavam cerradas. As perninhas tremiam.
Era uma garotinha forte, Pedro viu isso.
— Vânia, você pode fazer um favor?
Ela fitou-o, curiosa.
— O-o que, tio Pedro?
— Você pode perdoar o tio?
Ela não entendeu.
Poft…
— Agora você pode dormir um pouco, Vânia… — comentou, apoiando a adormecida com cuidado em seus braços.
O que fez naquela hora foi dar um leve tapinha na testa dela. Haviam pontos de pressão ali, mas a cabeça poderia doer um pouco depois. Isso contudo era a menor de suas preocupações.
— Fico imaginando as atrocidades que essa garotinha viu enquanto esperava no telhado… Tsc! Se eu pegar o maldito que fez isso… grrr… — Pedro estava puto.
E com razão. Ele também teve os seus traumas na infância e sabia bem as consequências que esses atos bárbaros traziam a uma mente inocente. Nenhuma criança deveria presenciar a violência.
Assim, depois de encobri-la com seu manto, Pedro respirou fundo. Ele demorou alguns minutos para controlar sua fúria crescente e conseguir raciocinar.
A coisa que mais chamou sua atenção foi a quantidade de corpos nas ruas. Se as aberrações fossem mesmo canibais, então não deveria haver tantos assim.
Isso era estranho, mas também significava que a fonte da contaminação provavelmente não eram as próprias criaturas. Ou então teriam muito mais antropofagos na espreita da garotinha antes.
Era curioso. A única conclusão é que na verdade não eram canibais ou zumbis, mas uma outra criatura. Talvez a infecção fosse demorada, ou então podia ser que sua fonte não fosse a saliva ou sangue, mas viesse de uma coisa diferente.
— Será que é um vírus condicionado? Se for isso, então o velho tá mesmo certo e a mente por trás do surto de gripe é a mesma dessa maldita calamidade. Tsc! Que filhos da puta!
Pedro xingou, mas se sentiu aliviado. Ao menos isso significava que poderia não se tratar de um vírus infeccioso. Mas ainda ia ter que confirmar suas suspeitas.
Se lembrando do que o oficial disse ele achou que fazia sentido, entretanto. Segundo o mesmo, no início pensou-se ser apenas uma “simples revolta”, um “ato de pequena escala”.
Antes Pedro deduziu que eram centenas, mas será que se tratava apenas de dezenas?
Ele teria que verificar isso também. Era uma pena que não dava para fazer perguntas à garotinha, ela não tinha condições, mas talvez outro refugiado o ajudasse.
Assim, precisava voltar e procurar por mais sobreviventes. E rápido!
Todavia, um outro problema logo se mostrou. Haviam pessoas tanto nas cidades quanto nos campos e ele não tinha a mínima noção de onde as aberrações estavam e qual o seu número aproximado.
Ora, mesmo poderoso, Pedro era um só e não poderia estar em dois lugares ao mesmo tempo.
E foi pensando nisso que ele resolveu testar um novo truque.
— Tá, a voz caloteira disse que eu posso convocar oficiais agora. Não faço ideia como, mas suponho que tenha haver com a alma do líder gaudério.
Ele então se concentrou no íntimo de seu poder. A tatuagem negra emitia um leve brilho quando ele fez isso e, em seguida…
— Ave Marte! — bradou.
A invocação deu certo. O homem era o oficial a quem a voz de antes se referiu.
Ele tinha uma armadura muito similar aos demais soldados, todavia, nas laterais de seu capacete estavam duas penas vermelhas.
Curioso, o convocador fez-lhe algumas perguntas.
— Qual é a sua patente?
— Senhor, fui aclamado decano — elucidou o oficial de patente equivalente a sargento ou tenente.
— E quantos homens consegue comandar?
— Senhor! Até cem homens o desempenho é máximo, senhor!
— Bom — respondeu Pedro, já em sua linguagem usual.
Tendo suas dúvidas sanadas, ele ordenou que o homem esperasse. Em seguida, apontou a mão direita novamente para frente e se concentrou.
Instantaneamente, uma força oculta saiu da tatuagem negra. Uma não, cem!
— Ave Marte! — bradaram os novos soldados.
Em seguida, Pedro os pôs sob o comando direito do oficial. Também lhes deu suas primeiras ordens. Basicamente, eles deviam segui-lo na caça às criaturas.
Ele também convocou mais dez deles e os disse para vigiar a garotinha adormecida. Os soldados assentiram, chamando a menina pelo nome de Harmonia, filha de Marte e da deusa Vênus.
Pedro sequer tentou rebater aquilo, não tinha tempo. Então, simplesmente saiu com o grupo maior.
Assim, nem cinco minutos se passaram, quando eles retornaram a Oss.
E a primeira coisa que observaram ao adentrar a cidade foi uma outra aberração. A criatura se escondia no alto de uma construção e veio direto quando percebeu o grande número de petiscos na entrada.
Ela estava frenética.
— Occidere eum! — Pedro ordenou. Em seguida recuou para a retaguarda.
Seu objetivo era ver se os remulus conseguiriam lidar com aquelas coisas sem a sua ajuda.
Atento, o decano remulu começou a dar ordens.
— Formação manipular!
Os homens se separaram em três linhas. Rápido. A primeira, já com os escudos apostos, se preparou para o impacto.
Pah!
A criatura bateu, mas não transpassou as barreiras. Em seguida, ela recuou, quase sendo pega pelas lanças da segunda linha.
Slam! Zupt!
Todavia, não era a segunda linha com a qual ela deveria se preocupar, mas sim a terceira.
Shiiiiiiin! Shiiiiiiiiiiiin! Shiiiiiiiiiiin!
Dezenas de cortes a atingiram. Essas lanças eram mais compridas e mais letais que as anteriores. Foi um ataque certeiro.
Pedro achou aquilo incrível. Foi apenas uma rodada, mas eles conseguiram ferir a aberração.
A batalha, entretanto, não parou por aí. O que se seguiu foi uma outra ordem do decano.
— Movimento circular! Primeira linha, manter!
— Ho! — assentiram.
O que eles fizeram depois foi um movimento lateral, fechando a criatura em um círculo. Obviamente ela não esperou parada.
Mas também não teve tempo para atacar a formação, pois as lanças da primeira linha a perseguiram. Eles espetaram de longe e fecharam os escudos quando ela revidou.
Pah!
Os soldados sentiram o impacto, afinal, eram um pouco mais fracos que ela. Todavia, quando o oficial os ordenou mais cedo, alguns companheiros deixaram as laterais e foram para a retaguarda da primeira linha, servindo de apoio. Ninguém recuou.
Shiiiiin! Shiiiiiin! Em poucos segundos, a formação circular foi completa. A oponente agora estava presa.
O oficial então decidiu deu novas ordens:
— Perfurar!
— Ho!
A criatura gemeu de tormento.
Shiiiiiin! Shiiiiiin! Lanças a espetaram. Diversos tamanhos, diferentes ângulos. Foi o prefácio de sua partida deste mundo.
Pedro estava com um sorriso no rosto. Uma rodada foi mais que o suficiente para assinalar a morte da aberração.
— Vocês conseguem lidar com mais de uma dessas coisas ao mesmo tempo? — Ele perguntou ao oficial remulu.
— Sim, senhor.
— Quantas? — perguntou novamente.
— Se todas os demais tiverem a mesma força do inimigo anterior, então duas dezenas, sem nenhuma baixa.
O general achou o número bem satisfatório. Com isso, poderia sair com mais tranquilidade para procurar nos campos.
O oficial subordinado, contudo, ainda não havia terminado.
—Todavia, se for permitido sacrificar alguns homens, poderemos lidar com cinquenta ou sessenta deles. Com sacrifício total, uma centena pode ser eliminada.
Aquilo sim foi chocante. Uma centena era o número total do contingente convocado. Afinal, esse era o limite que o oficial disse que poderia liderar.
Assim, o que impressionou o rapaz foi ouvir que eles poderiam lidar com o mesmo número de aberrações simultâneas.
Era possível deduzir o que significava “sacrifício total”. Uma baixa, uma morte. Mesmo assim, Pedro ficou um pouco preocupado. Apesar de ter ainda milhares de almas para gastar, as maiores — como a do líder gaudério — ainda estavam meio que fora de seu alcance. Ele não tinha mais.
E àquela altura Pedro já adquiriu experiência militar suficiente para entender o que significava deixar milhares de homens sem comando num campo de batalha. Desastre.
Em suma, por ainda não saber a quantidade real de aberrações, ele não queria arriscar enviar os remulus com tão poucos números. Mas também não poderia convocar mais, pois ficariam sem comando.
E isso também geraria muitos problemas no futuro, do tipo: “de onde vieram tantos mercenários estrangeiros?”— Sim, foi o que ele disse a quem perguntou (Mark, Edward e Beto).
Assim, Pedro resolveu apostar.
— Vocês vão avançar pela cidade e matar todas as aberrações que encontrarem. Ah, e não se esqueçam de salvar os sobreviventes também. Levem eles para a clareira que lhes mostrei mais cedo.
— Sim, senhor!
Em seguida, o oficial se virou com o restante dos soldados, todos em direção a Pedro, e juntos disseram:
— Ave, Marte!
Ele assentiu, partindo na direção oposta à que iam seus subordinados.