Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 58
Pedro partiu com toda velocidade em direção aos campos. Ele queria encontrar mais sobreviventes.
— O sol vai se pôr daqui a pouco. Tenho que acabar isso logo — comentou ao olhar para o laranja no céu.
Era uma luta contra o tempo. Ele não poderia deixar que mais pessoas morressem ou, pior ainda, corressem o risco de se transformar em aberrações. Pela quantidade de cadáveres, a segunda opção era improvável, mas ainda não poderia ser descartada.
Naquele momento Pedro se lembrou da garotinha. O estado caduco em que a encontrou era de partir o coração. Mesmo o mais gélido dos homens ainda seria derretido por aquele olhar esmorecido.
— Eu juro pela minha honra que vou matar o maldito que fez isso — murmurou friamente, antes de parar.
A verdade é que sentiu o cheiro fresco da morte vindo bem perto do bosque. Sua audição também detectou algo.
— CORRAM! — Uma voz grossa. Vinha de uma casinha a poucos metros das árvores.
— PAI! — Ao aproximar-se notou que o grito desesperado vinha do oeste.
Esgueirando-se, viu um homem com machado na mão. Um de seus braços foi arrancado, a perna esquerda estava mole — possivelmente quebrada — e mesmo assim ele se recusava a cair.
O motivo? Bastava olhar para trás. Lá estavam duas mulheres. A mais velha deveria ser a esposa; a mais nova, a filha.
— VOU TE MATAR, MALDITO! — gritou, antes de deferir um golpe cego contra o inimigo. Felizmente o alvo estava sozinho, ou a luta nem teria começado.
Pah! O homem atingiu o peito da aberração, mas ela não parou.
E o rebote lhe foi entregue. Os dentes afiados miravam o pescoço; as unhas, as costas.
— PAPAI!
— MARIDO!
Foi um desastre. Ou melhor, seria um desastre caso Pedro não estivesse ali.
— Tiid KLo Ui! — O tempo parou. Instantes depois a criatura desapareceu.
O homem ficou incrédulo. Fechou os olhos na esperança de não gritar ao dar de cara com a morte. Todavia, ao abri-los, não foi o inferno que encontrou — e muito menos o céu.
Na verdade, nada mais viu a não ser as costas de um jovem. Seus cabelos cumpridos tapavam a maior parte do dorso, parando um pouco antes do quadril.
A postura ereta e a empunhadura firme, juntamente ao cenário sangrento, o fizeram parecer um general divino que encarava imponente o campo de batalha após a derrota do inimigo.
As mulheres atrás também perceberam isso. Notaram que o chefe da família estava vivo e que o inimigo morreu.
Mas a realidade continuava crítica. Os açoites sofridos pelo lenhador não tardaram em macular o solo cândido com suas tripas.
Sangue jorrava de onde antes era o braço. A perna que sobrou também não estava nada bem. Sua debilidade era tal que Pedro se perguntou como ele fazia para se manter de pé até agora.
Ploft! Vendo que seus amores estavam salvos, o homem se permitiu cair.
— PAI! — gritou a mocinha na casa dos quinze.
A mulher se desesperou também. Foi até Pedro gritando alto:
— Meu marido! Por favor, salve meu marido! Ele vai morrer!
Ela estava eufórica, agarrando-o pelas mangas ensanguentadas e implorando angustiada.
Pedro assentiu rápido, acalmando a vítima com um toque breve.
Então se virou para o coxo e correu para estancar-lhe as lástimas. Tudo abaixo do deltóide foi arrancado. Marcas de dentes compunham as feridas. Sangue escorria de lá em quantidades abundantes.
— Pa-pai…
Poft! A menina não resistiu à imagem destroçada do pai. Caiu.
— Ele… ele…! — A mulher arfava loucamente, desviando o olhar para não vomitar.
Pedro até tentou estancar, mas o líquido acerejado não parava de pingar de jeito nenhum. Como num chafariz do inferno, seu fluxo era incessante.
E agora já era muito tarde, de qualquer forma. Nem cauterização poderia salvá-lo.
O homem parecia compreender aquilo. Reparando de perto notava-se que seu semblante não continha um pingo de esperança e que sua alma se inundava em um mar de dor. A morte era seu único alento.
Virando-se penosamente para a esposa, ele tossiu com dificuldade:
— Marlene… seja forte… cuide… da Carla… Eu amo… vocês… — Quase inaudível, mas a mulher decorou cada palavra dita, como se fossem as moedas de ouro de seu tesouro mais precioso.
Ela assentiu aos prantos, se ajoelhando ao lado dele.
— Marido… huc… eu te amo também! Então… por favor, não nos deixe! — suplicou.
Pedro observou tudo de lado, angustiado. Todavia, não pensava na morte do homem e sim em seus próprios súditos.
Afinal, Vilazinha ficava a meio dia de distância apenas. Se o desastre fosse deslocado por algumas milhas, então seriam os seus a sofrer.
Seriam suas mulheres a chorar e suas filhas a desmaiar. Seriam seus filhos a morrer em vão, acompanhando o ímpeto malogrado dos pais.
Aquela cena reforçou sua convicção. Não haveria remissão.
“Vou matar todos os malditos!”, martelou internamente, cerrando os punhos. Por um breve momento toda sua compaixão foi selada e a fúria foi libertada. Ele ia matar muito e ia fazer isso agora. Contudo…
— Vo.. cê… — praguejou o meio-defunto. — Por… fa… vor… sal… ve… as.. dua…
Aquelas foram suas últimas palavras. Ele morreu sem ver seu salvador assentir, ainda nos braços da mulher.
Mesmo assim, o alívio estava em sua feição. Ele colocou sua fé nele, um completo desconhecido, não por confiança e sim por desespero.
O rapaz misterioso era a única esperança de sua família. Não só a sua, como a de todos os sobreviventes em Oss.
— V-você é…? — Engoliu o choro e forçou-se a se manter de pé, ainda que com os joelhos no chão.
A mulher estava desolada. A única coisa que a mantinha era o desejo de salvar a filha.
— Pedro Rios, amigo de Jin. Vim salvar vocês — disse, contendo sua fúria após o pedido do lenhador.
A mulher virou novamente o olhar porque não sabia o que dizer em resposta. Tentava pensar, mas não conseguia. Tentou se levantar, mas seus pés não lhe obedeciam. Queria chorar, mas os berros não saiam.
Pedro percebeu que ela estava em choque. Infelizmente, a única coisa que poderia fazer para ajudar era…
Paft! Ela apagou com o golpe. Em seguida, o rapaz também pegou a menina e as levou em direção à clareira.
Após deixá-las com os remulus ele conferiu rapidamente a outra menininha de antes. Todas as sobreviventes dormiam.
Pedro então se virou, deu algumas ordens e voltou para os campos.
Vários casos como esses se repetiram então. Pessoas encurraladas, sem lugar para fugir; crianças que perderam os pais; e famílias inteiras massacradas. A destruição era a rainha daquele lugar; a morte, seu rei.
Em certo momento, contudo, ele viu um caso incomum de adolescentes que estavam correndo em busca de refugiados.
O grupo estava cercado quando ele os encontrou, óbvio. Mas Pedro chegou pouco depois das criaturas e acabou os salvando, para a sorte deles. Foi um dos raros casos sem baixas que presenciou.
Vendo-os, o jovem nobre acabou se lembrando dos recrutas que treinou em sua terra; isso só serviu para aumentar ainda mais a sua resignação. Alguém sem dúvidas iria morrer quando isso acabasse.
Esses casos felizes, contudo, eram a exceção. A grande maioria resultou em ele chegando tarde demais e atrapalhando a refeição das bestas. Elas não comiam muito, o que era o pior. Isso significava que poderia tê-las salvado se chegasse alguns minutos antes.
Pedro não ligava muito para mortes, mas nesse caso foi diferente. Talvez por se tratarem de pessoas inocentes, que nunca se colocaram em seu caminho, ou por ele relacioná-los aos seus próprios subordinados, quem sabe?
De qualquer modo, o sol já estava prestes a se pôr quando a última leva de sobreviventes chegou. Um pai e um filho, a mãe morreu.
A clareira estava bem cheia. Aparentemente os remulus também fizeram seu trabalho.
Quando terminou de acomodar os últimos sobreviventes, viu um grupo deles chegando. Estavam escoltando cerca de duas dezenas de refugiados até a clareira.
Uns precisaram ser carregados, outros estavam apenas feridos, mas todos tinham aquela angústia comum em seus olhares.
— Ave Marte!
— O que houve? — Pedro perguntou aos soldados.
— Senhor, sob liderança do decano Gaio, encontramos uma área repleta de aberrações. Eliminando-as, encontramos os sobreviventes — reportaram, acrescentando outras informações.
Decifrando suas palavras, Pedro deduziu que os sobreviventes usaram a mansão do prefeito como base. Foi a maior quantidade em um mesmo lugar que encontraram até agora.
— Onde está Gaio? — perguntou.
— Senhor, o decano está lidando com uma aglomeração de aberrações que encontramos próximo da mansão — disse o soldado.
— Explique-se — ordenou o comandante.
O remulu então relatou. Mais cedo eles encontraram um lugar estranho, repleto de inimigos. Assim, o decano ordenou que tirassem os refugiados de lá enquanto mantinha os inimigos no local.
— Entendo — respondeu o Apóstolo, abandonando o latim.
Vinte e cinco soldados vieram junto aos refugiados, o que significa que Gaio ficou apenas com 3/4 do contingente.
Com esses números ele teria que lidar com 50% a mais do limite máximo que normalmente consegue. Era suicídio.
E isso porque trinta e dois era apenas o número que o soldado relatou. Talvez houvesse mais deles escondidos na taberna.
Pedro tinha que agir.
— Okay. Vocês ficam aqui protegendo os civis. Não façam nada até eu voltar, mas ajudem eles a fugir caso os inimigos se aproximem. Ouçam: é pra evitar o confronto e priorizar a fuga dos sobreviventes, principalmente das crianças.
— A ordem do Apóstolo é a lei! — bradaram os legionários.
Aquilo deixou Pedro mais tranquilo, preparado para voltar a Oss.
…
Ao chegar no local, o rapaz se deparou com dezenas de corpos no chão. Muitos deles eram das aberrações. Alguns, entretanto, pertenciam aos seus.
Pedro contou oito antes que encontrasse a posição das tropas. Ele viu que os remulus faziam uma formação de tartaruga, com os escudos os protegendo de todos os ângulos possíveis dos ataques.
Os bravos guerreiros estavam cercados, contudo. O número de inimigos ultrapassava muito o que fora falado antes. Sem se esforçar, ele contou mais de cinquenta!
“Merda! Estamos encrencados”, refletiu, correndo ao auxílio de seus subordinados encurralados.
— [labaredas escarlates]! — entoou o cântico. Logo após, dois raios de fogo dispararam em direção aos inimigos.
Pah! Ssssssssss!
Ssssssssss!
Ele acertou em cheio. A lateral canhota foi completamente apagada por seu fogo, doze ao todo.
E não parou por aí, ele também se lançou, empunhando a lâmina.
Shiiiiiiiiiiin! Shiiiiiiiiiiin!
Pah! Sssssssssssss!
Decapitações, chamas e golpes de raquete. Os oponentes não conseguiram notar o responsável por seu retorno ao inferno.
Em contrapartida o alívio chegou aos remulus. Eles agora estavam em condições de enfrentar os inimigos restantes sem a ajuda de seu general.
Enquanto faziam isso, Pedro foi falar com o decano.
— Gaio, o que aconteceu?
O oficial relatou o que viu. Basicamente, foi o mesmo que o soldado mais cedo, com o acréscimo de terem surgido derrepentemente mais algumas dezenas de aberrações de dentro da taberna.
A situação então se inverteu e eles passaram para a defensiva, até a chegada de Pedro. Foi então que suas chamas clarearam a situação.
— Então, você acha que a fonte disso tudo tá ali dentro? — questionou o comandante.
— Sim, senhor. Nunca vi tantos filhos de Caco juntos em um só lugar. Nem mesmo na mansão — relatou o oficial.
Pedro ficou intrigado. Na concepção das criaturas, lá era onde estava a maior parte de suas refeições. Todavia preferiram se concentrar ali.
— E você não acha que podem ter pessoas presas ali? Você sabe, em maior quantidade do que na mansão…
O oficial foi veemente em sua negação.
— Improvável, divino Apóstolo. Se houvessem eles já estariam mortos há tempos e então as criaturas já teriam debandado.
Aquilo fazia sentido. Pedro também não viu um grande número concentrado assim em um mesmo lugar. Normalmente, eles se separavam para cobrir áreas mais amplas.
E, como até agora não viu ninguém se transformar por infecção, a conclusão era que a pessoa que os contaminou o fez pessoal e individualmente. Provavelmente alguma coisa muito importante estava dentro daquele estabelecimento. Precisavam invadir.
Assim, capturou um pouco de ar, olhando de relance para o céu. A noite caiu, agindo como plano de fundo para a lua prateada da primavera.
Naquele mesmo momento ele sentiu uma fragrância doce, porém enjoativa, emanado de dentro da taberna. Era um cheiro denso, mistura de lavanda e…
— Sangue? — Pedro se perguntou, sentindo inclusive os resquícios metálicos em suas papilas gustativas quando abriu a boca. Uma outra coisa chamou mais ainda a sua atenção, contudo.
Sons de passos. Uma silhueta delgada saia pela porta da frente.
Olhando de perto ele notou aqueles olhos, o cabelo desgrenhado, o corpo esguio. A imagem lhe era familiar.
— Pera! Você é…