Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 6
Dois dias depois, em um lugar longínquo no meio do céu…
Cara, aquela reunião com os Anciãos foi sinistra. Eu não sei por quê diabos, mas agora que sou capaz de sentir o mana, também tô mais sensível às variações de partículas mágicas.
E acontece que mesmo assim não consegui captar nenhuma delas naquela sala. Por quê? Simples, é porque aqueles velhos demoníacos não deixaram!
Os dinossauros encapirotados absorveram todas elas! E o pior, eles nem tinham consciência disso, pelo que notei. Aí foi demais, até pra mim…
Na real, sendo sincero como sou — e como todo bom advogado é, aliás —, consegui sentir uns dois que não tavam capturando tantas assim. Não sei o porquê. Mas enfim, melhor não gastar neurônio com esse trêm. Embora já tenha decidido em meu coração não provocar aqueles lá.
E falando em pessoas poderosas, o mestre saiu imediatamente após a reunião. Ele disse algo sobre “deveres pendentes”, “coisas que só eu posso fazer” e blá, blá, blá.
Vou sentir falta do mestre diabo branco. Ele ajudou bastante. Foi como minha professora, Tia Rozinha. Eu gostava dela, era muito gentil, bonita e — nossa! — tinha uma bela de uma…
Ah! Uma coisa legal foi que eu consegui me aproximar do líder do Clã! Hehe, todo mundo sabe que um bom advogado precisa de contatos influentes. E acontece que o líder do Clã obviamente é um contato desse tipo.
Aliás, ele pareceu bem mais sério e fechado do que há três anos. O que será que aconteceu?
— Com licença, meu senhor. Vim informar que estamos prestes a chegar em Mea — interrompeu uma moça vestida com um uniforme rosa. Ela lembrava um pouco a Tia Rozinha… Legal.
Por motivos de sigilo, não podemos ir direto pra Confederação de dirigível. Eu também tô proibido de revelar essas tecnologias complexas pras pessoas fora da ilha.
Contudo, ajudar os países a desenvolver a sua própria tecnologia é permitido. Os anciões parecem agir de forma bem simpática para com aqueles que amam a ciência.
— Estamos chegando, meu senhor — falou um homem bastante simplório no sofá ao meu lado.
Era Beto, um guia que o Conselho designou pra me levar até a Confederação. Apesar de agir meio travado, ele também é legal…
…
Algumas dezenas de minutos depois, nós desembarcamos na Costa Sudoeste de Mea. Um principadozinho insignificante, pelo que li. Ninguém sabe muito sobre.
E neste momento eu estava caminhando com Beto. Nós estávamos indo pra uma pequena vila que ficava alguns quilômetros ao norte de onde o dirigível nos deixou.
Era desértico aqui. Tinha grama, umas árvores, pássaros e solidão. Este último em abundância.
— Meu senhor, devemos ir mais rápido? — disse Beto, percebendo meu desconforto.
Íamos a pé. Sem carros, bicicletas, motos e nem cavalos. Mas tudo bem, não sei montar mesmo.
— O quão rápido você consegue correr? — perguntei.
— Algo ao entorno de 160 km/h, meu senhor. 175 km/h, se eu der meu máximo! Mas aí só resisto por duas horas.
— É o suficiente, vamos! — decidi, adiantando o passo.
Vruuuuuuuuum! Essa é minha especialidade, quando busco algo, fico mais ligado que celular de presidiário. Rápido.
Tsc! Em contrapartida, Beto é muuuuito lento, mas paciência. Eu preciso de um guia, né?
Duas horas se passaram desde o início da nossa jornada. O sol estava alto no céu. Não derramei uma gota de suor, mas senti o calor em minha pele. Aquele calorzinho… bom demais da conta.
Olhando pro lado, dava pra notar que Beto não mentiu sobre sua resistência. Quando paramos ele desabou, cochilando em meio à maciez bazófia da grande planície. Bom, eu tô ansioso pra chegar logo na Confederação, mas acho melhor deixar o coitado descansar um pouco.
O ambiente agora tava tão fresco que até eu decidi deitar um pouquinho junto com o safado.
— Aaar… que ventinho sapeca — comentei, impressionado com a cortesia do verão daqui.
— Sim, meu senhor. O clima é muito bom — respondeu Beto, sentindo a brisinha no rosto.
Alguns minutos se passaram confortavelmente, mas quando nos preparávamos pra partir…
— Oiá lá, chefe! Dois riquinhos na grama!
— Sim, presas fáceis! Kekeke….
Esses ruídos irritantes provinham de um grupo de mendigos mal trajados a alguns metros de nós. Quatro ao todo. O mais mal-encarado deles carregava algo parecido com um gládio e estava prestes a vomitar algo.
— Ocês dois aí! Passa os xilen pra cá, e suas roupas de seda também, senão eu mato ocês!
— Kekekekeke… — Os outros imundos gargalhavam, enquanto tentavam nos cercar.
Tsc! Apesar de ser advogado, tenho que admitir… eu ODEIO criminosos. Eles fedem.
Por isso mesmo eu tava prestes a dar um baita cacete nesses daí. Mas o Beto foi mais rápido.
Ele correu e sacou uma adaga negra. Rapidamente se colocou na minha frente, partindo pra cima do homem com o gládio.
Shiiiiiiiiin! Golpe perfeito. O pescoço dele sentiu.
Foi muito lento para mim, mas o mesmo não era verdade pro líder dos bandidos. Afinal, o coitado nem teve chance de empunhar sua arma antes de ter a cabeça decepada.
Poft! Esse foi o som que fez quando colidiu com a grama. O vermelho substituiu o verde.
— M-matou o chefe…
— Não pode ser… c-chefe… morto…
Seus rostos não esconderam o choque.
— Corre rápido! Ou ele vai matá a gente também! — avisou o próximo alvo.
Correram desesperadamente. Eram como galinhas fugindo do lobo. Ninguém escapou.
Shiiiiin! Shiiiiin! Shiiiiiin! O cálculo foi certeiro. Três cortes, três cabeças a menos.
É impressão minha, ou o Beto não esboçou reação nenhuma matando? Sua impressão era fria, indiferente. Sentimento zero. Nem parece que acabou de eliminar quatro homens a sangue frio.
— Algo lhe incomoda, meu senhor? — perguntou-me, enquanto limpava sua adaga nos farrapos dos cadáveres. Deve ter reparado meu olhar cético.
— Nha… não é nada. Bora continuar nosso caminho — disfarcei, forçando uma poker face.
Agora que parei pra pensar, também não senti nada quando vi o Beto matando os baderneiros imundos. Servi o exército, tá certo. Mas mesmo assim… A sensação de que me lembro não era essa. Não era pra ser assim… Que sinistro…
Devem ser os resultados do treinamento. Ou então a tal modificação genética. Sei lá… Será que esse negócio altera o cérebro também? Caraca, não quero virar uma máquina sem sentimentos!
Enfim, decidi não dar muita bola para o assunto e prosseguir pro vilarejo. Depois eu vejo isso.
…
Algumas horas adiante, a algumas milhas distante do local onde purgamos os criminosos…
— Aqueles caras eram muito fraquinhos e mesmo assim ousaram tentar roubar nosso ouro. Hump! — esnobou um rapaz de cabelos castanhos e traje nobre.
Era Pedro, que tinha a seu lado um outro jovem de cabelos encaracolados e expressão robótica.
— Ei, Beto, por que coelhinhos todo mundo nesse Continente fala a mesma língua e, apesar disso, não usa a mesma moeda? — perguntou.
— Não sei dizer, meu senhor. Por quê?
O rapaz parou um pouco para pensar, mas não pareceu chegar a conclusão alguma.
— Também não sei. Vou perguntar pra algum professor da Confederação mais tarde.
Decidindo suprimir sua curiosidade por um tempo, virou a cabeça para o horizonte próximo e logo percebeu algo. Umas casinhas, um muro de madeira e um rio mais a Nordeste.
— Olha só, Beto. Chegamos!
Ao adentrar a pequena vila, contudo, Pedro logo percebeu algo que o incomodou.
— Cara, isso aqui cheira muito mal. Muito mal mesmo! — reclamou, tampando o nariz com a manga de seu manto. Beto se aproveitou para virar vagarosamente até ele e responder:
— Normalmente não tem saneamento nesses lugares mais pobres. Isso é normal, meu senhor.
Mas isso nem foi o que mais deixou o jovem aristocrata desconcertado. Pois, neste lugar fedorento, também tinham umas estruturas decrépitas que mal podiam ser chamadas de casas.
Além das muito mal feitas ruas de terra batida, que deixavam os pés dos transeuntes mais pesados. Com a chegada do verão e das chuvas, já estavam todas enlameadas e sujas. Eram ao mesmo tempo o esgoto, a estrada e a fachada da população. Não muito diferentes de animais.
De fato, Pedro concluiu o mesmo que seu mestre havia falado. Local pobre, subdesenvolvido e frágil tecnologicamente. Em resumo, um lugar atrasado. E muito!
— Horrível! São as únicas palavras que tenho pra descrever a logística usada na construção dessa cidade — xingou.
E percebendo que ele havia parado de repente, Beto fez o mesmo, encarando Pedro com confusão, vendo-o apontar descaradamente o dedo indicador para uma certa direção.
— Essas ruas são muito estreitas em algumas partes e muito largas em outras. Têm muitos becos e, pelo amor de Deus! Olha pra essas muralhas… Cheias de aberturas! — exclamou com ferocidade, antes de virar seu olhar em uma outra direção e comentar:
— Nha! Também não tem algo como uma rua principal, pra onde raios os portões da muralha deveriam dar acesso então? Em?! — Ele fez uma pausa dramática e um gesto de consternação, antes de concluir de vez: — Um desastre! Simplesmente um desastre de logística!
Ficou claro que os conhecimentos de Pedro não se resumiam aos livros de arcana ou piromancia da biblioteca de Marcus. Afinal, neste momento parecia um autêntico estudante de ciências sociais analisando as condições em uma favela. Recém-formado e puto com o governo.
Sem esconder, desenvolveu um enorme desprezo por aqueles que construíram esta miséria. Foi completamente indelicado. Mas infelizmente essa era uma daquelas situações às quais não se podia muito, então simplesmente cessou os comentários e se apressou para ir embora.
Ao menos foi o que pretendeu ao retomar o caminhar rumo à Estalagem, todavia…
— Ei, você! Pode repetir o que disse?
Escutando aquela voz em suas costas ele se virou rápido, dando de cara com um homem encapuzado e de estatura mediana, parecida com a sua.
— E quem é você? — perguntou.
— Não, por favor, responda primeiro a minha pergunta. Pode repetir pra mim o que disse? — respondeu o encapuzado.
Será que ele queria uma briga? Não. Pelo tom contido de sua voz este não era o caso. E por isso mesmo Pedro resolveu reter o ato-reflexo do punho e respondê-lo com educação.
— Sim, eu disse que a logística dessa vila é uma grande porcaria. Não, horrível é o mínimo para descrever essa coisa lixosa!
Novamente, não fosse o tom, talvez uma briga feia começasse naquela esquina esfacelada.
— E o que você acha que deve ser feito? — perguntou o capuz.
— Uma grande reforma seria o mínimo. Eu começaria com as muralhas, elas são a primeira linha de defesa da vila. Ah, também precisaríamos construir um canal subterrâneo e…
Ele então deu início a uma explicação completa sobre o que mudar para melhorar. Durou alguns bons minutos. A contraparte encapuzada foi bem atento quanto a isso, anotando as informações que recebeu com todo o cuidado do mundo em seu bloquinho de papel.
— Há algo mais? — perguntou.
— Até tem, mas acho que se fosse feito isso que eu já disse, melhoraria bastante o padrão de vida das pessoas daqui — respondeu Pedro, com sorriso gentil.
Eles se deram bem e a conversa estava prestes a continuar mas, naquele mesmo momento, um outro homem encapuzado interviu.
— Jovem mestre, já estamos há muito tempo aqui. Precisamos voltar à estalagem! — exclamou a voz rouca e grave.
Explorando, notou que este segundo homem parecia liderar o pequeno grupo de capuzes armados ao redor do jovem com quem Pedro conversou.
— Cê também tem interesse por logística urbana? Qual o seu nome? Aliás, eu me chamo Pedro, prazer.
Ouvindo a apresentação singela e amigável do jovem, o encapuzado desconversou.
— Ehr… meu nome… acho que você pode me chamar de Ed. Quanto à primeira pergunta, sim, eu tenho grande interesse por essas coisas.
— Milorde, vamos! — interrompeu o velho rouco, puxando a manga de Ed.
Mas antes de se deixar ser arrastado, o jovem se virou mais uma vez na direção contrária.
— Prazer em te conhecer, Pedro! Tenho certeza de que se nos reencontrarmos no futuro, seremos grandes amigos. Haha!
— Até mais então, Ed! Digo o mesmo. Hehe…
Depois daquilo, Pedro e Beto procuraram por uma estalagem para passar a noite.
…
Algumas horas se passaram e agora já não havia mais sol sobre o céu estrelado acima da pequena vila. O dia quente de verão foi substituído pela escuridão arejada da planície.
No momento, Pedro estava apreciando sua bebida quente no bar da estalagem. Ou quase isso…
— Mas isso aqui é horrível! Quem em sã consciência oferece leite azedo com nata aos clientes?! Garçonete, eu exijo meus direitos!
Todos olharam para o balcão. A reclamação gerou um pequeno rebuliço no ambiente rústico.
— Ei, olha! Aquele garoto bonito ali parece não gostar muito do tratamento daqui…
— Ei, ei. Eu acho que o garoto bonito deve ter se perdido de sua caravana, ou o quê ele estaria fazendo aqui em Vilazinha? É tão isolado aqui… Nós nem mesmo temos um lorde oficial.
— Ehr… mas ele é muito lindo mesmo. E olha só aquele gatinho de cabelos encaracolados. Ele parece ser o servo dele. Que gracinha!
— Ohr! Ele é um gato também! Mas não tanto quanto o de robe vermelho. Hihihi…
Algumas garçonetes estavam encantadas e não tentaram esconder isso.
E percebendo a grande atenção que os dois rapazes ricos estavam recebendo, alguns homens de semblantes mais velhos começaram a sentir ciúmes.
— Ei, ocê ai, garoto mimado! Quê é que tem de errado com o leite?! Ein?! — gritou um gordo barbudo que bebia na mesa ao lado.
— É! Esse lugá aqui não aceita gente como ocê! Vaza! Mas trate de deixar todos seus xilins aqui! — ameaçou um outro que também acabou de se levantar.
Quando viu a exaltação, Beto se preparou para o genocídio. Já tinha até colocado a mão na bainha da cintura, mas Pedro o interrompeu com um gesto.
— Hump! Só ignore esses idiotas. Apesar de inúteis, eles têm o direito de dizer o que querem.
Mas os mal-encarados continuaram a provocar. A muito já haviam trocado o ciúmes por ganância. Pensaram que se dariam bem, contando que roubassem os dois e daí fugissem com o resto de sua trupe. Não havia lorde ali, portanto nem lei. Só tinham que esperar os comparsas.
— Ei! Ocê não ouviu não?! Vaza! E deixa seu dinheiro e esse colar de bixa também!
Ao ouvir aquela última sentença, a expressão outrora calma de Pedro mudou de cor.
— O que você disse, maldito?! Do que chamou o colar do meu mestre? — perguntou, puto.
— Ocê é surdo é?! É um colar de bixa! — respondeu, repetindo bem alto a última sentença.
Esse foi o estopim…
— Beto…
— Sim, meu senhor?
— Castre-os! — ordenou Pedro.
— O que disse, meu senhor?
— CASTRE ESSES MALDITOS! AGORA!
E assim teve início o incidente que rendeu a Pedro o título de “Terror dos Eunucos”.