Sangue do Dragão Ancestral - Capítulo 60
— Você consegue ler? — perguntou ao novo subordinado.
Eles estavam na base improvisada na clareira, esperando reforços de Vilazinha. Os pingos de sol inundavam seus corpos, mas apesar disso apenas sombras restavam em suas mentes.
Os sobreviventes foram deixados dormindo, enquanto Pedro discutia algumas coisas com o oficial remulu. Sua expressão ainda abatida.
— Sim! Consigo entender a língua antiga e a nova, mas não conheço os dialetos — Gaio explicou.
Pedro até tentou ensinar a língua comum aos soldados remulus antes, contudo a maioria deles eram analfabetos. Algo muito curioso se pensarmos que dominavam aquele mundo.
Contudo, por suas experiências na Terra, Pedro sabia que poder militar não quer dizer que a nação vai ter o desenvolvimento humano correspondente. Um país pode ser poderoso, mas ainda assim manter o seu povo na miséria.
Deixando esses pensamentos de lado, ele retirou um amontoado de papeis agrupados em uma brochura simples de pele. Na capa estava escrito: Ex Latina in ‘communi sermone’.
— Perdão, não escrevo tão bem quanto falo. Espero que vocês consigam entender…
— Se o Apostolo escreveu, eu entenderei!
Ele assentiu e então passou o manual ao homem com a armadura.
Em seguida deu mais algumas instruções. A conversa demorou o mesmo tempo que se leva para esquentar o chá e terminou com o lorde passando um envelope ao subordinado. O documento estava lacrado com seu selo.
— Entregue isso para Lilá. Ele é alto, moreno e tem cabelo grande — disse. — Ah, e se duvidarem de você ou não conseguirem entender o que diz, simplesmente entregue o envelope. Eles saberão.
O homem assentiu e bradou, em seguida se virou para ordenar a marcha dos soldados. Contudo, antes disso…
— Ah! Só mais uma coisa, Gaio — Pedro disse. — Tem certeza que não tem problema simplesmente queimar os corpos dos soldados? Vocês não têm nenhum ritual fúnebre não?
A resposta do oficial foi rápida.
— Em serviço do Apóstolo todos os rituais são desnecessários! A morte por batalhar do Vosso lado é a maior honra que um remulu pode receber.
Pedro torceu os lábios. Não era uma sensação muito boa ser tratado como uma divindade. Embora não praticante, ele ainda era um católico, afinal.
Mas no final simplesmente ignorou. Ele mesmo disse antes que poderiam considerá-lo como Marte se quisessem. Era o preço de seu apoio e embora não gostasse aceitou.
— Por Marte! — gritaram os soldados com as mãos sobre o peito.
O apóstolo levantou a mão e a ergueu reto. Era uma saudação clássica da antiga Roma, os remulus também pareciam ter algo assim. A diferença era que sua cultura utilizava o braço esquerdo.
Pedro novamente achou aquilo curioso. Quem sabe os vínculos que aquele mundo guardava com a Terra? Haviam muitas similaridades.
“Depois vou investigar isso melhor. Uma passagem pra lá custa cem almas, acho que vale a pena pagar no futuro”, pensou enquanto os via partindo de longe.
Ao se virar ele notou que alguns refugiados começaram a acordar.
Coincidentemente, essa também foi a hora que os reforços chegaram.
Do Oeste ele viu uma figura conhecida. Estava pálido em cima de seu garanhão de guerra, mas esforçava-se para manter a postura.
Uma garota loira o acompanhava junto de algumas dezenas de homens, quase todos jovens.
Pedro acenou para eles. Seu rosto, entretanto, ainda estava desanimado.
…
A vampira morreu de overdose. Não porque a matei, mas por beber meu sangue. E cara… preciso admitir, isso ainda dá um amargo na boca.
É… realmente não gosto de sentir o gosto da impotência…
Desde então, uma semana se passou. No início ofereci a Jin que ficasse em Vilazinha com os sobreviventes, mas ele recusou.
Como único herdeiro do finado barão, Jin agora é o lorde de Oss e quer assegurar a independência de seus servos. Ou é isso, ou ele se sente um estorvo pra mim — o que não é verdade, claro. Mesmo assim, creio que foi motivado por um pouco dessas duas coisas.
Ele anda muito abatido nesses últimos dias também…
Mas enfim, como não aceitou o asilo eu o ofereci apoio militar. Deixei uma parte do contingente lá na vila e vim pra cá com o resto da polícia. Nesses últimos dias recolhemos as partes dos sobreviventes — as que encontramos, pelo menos.
Ah! E eu não contei pra ninguém sobre a vampira. Menti.
Não quero chamar atenção desnecessária pra cá. Por isso catei aquelas moedas solaris, junto com aquele símbolo estranho, e os plantei por aí. Os crentes agora são os culpados oficiais.
Mark aceitou bem a história, mas ainda não informou ao Ed.
Enfim… por causa disso resolvi adiar de vez o festival cultural. Tenho certeza que o pessoal da vila não tava lá muito animado por esses dias. E também vamos precisar de mais insumos.
Mas isso vai ter que ficar pra depois porque agora, neste exato momento, estamos nos despedindo das pobres vítimas da Calamidade de Oss.
— Meu amor, tudo bem com você? — perguntou-me Rebecca.
Sua voz aseada e cautela refletiam o cuidado que estava tendo comigo ultimamente.
Ela ficou preocupada pra valer dessa vez, me seguindo pra lá e pra cá. Até participou da busca por cadáveres comigo. Uma fofa, de fato.
— Sim, meu bem. Eu estou bem.
— Mas suas mãos tão tãaao geladas… — comentou, apertando sua palma entre a minha. — Você tem certeza que tá tudo bem?
Assenti, acariciando suas tranças laterais. De alguma forma, fazer aquilo me deixava mais calmo. Era como uma terapia pra alma.
Tudo bem, admito que a morte dessas pessoas foi um baque. Não fui capaz de não os associar aos meus próprios servos e subordinados.
Acho que fiquei tempo demais em Vilazinha, o suficiente para criar laços.
Não sei como descrever esse sentimento. É como se… eu só quero vê-los bem. Quero que se desenvolvam e tenham vidas melhores, não que morram em um desastre provocado pela voltinha aleatória de um cafetão de cara pálida.
Vilazinha é o meu lar em Ark e a minha terra! Se alguém ameaçá-la eu irei retaliar! Eu irei, com certeza irei…
— Amor, olha! Os xamãs do lago já acenderam o fogo, vão começar a cerimônia — disse Rebecca, interrompendo meus pensamentos.
Olhando pra frente vi dois velhinhos com tochas nas mãos. Eles usavam um traje azul-marinho e portavam cajados. O objeto era parecido com um remo, mas só tinha uma das pás.
Um deles bateu com o objeto no chão enquanto eu encarava, daí entoou umas palavras estranhas. Já o outro se virou para Jin e entregou uma das tochas.
O semblante de meu amigo ainda estava triste. Ele tentava esconder isso, mas eu percebi. Aquele cara tá muito diferente da “garota” alegre e bem-articulada que conheci naquela noite na taverna.
— Que Namoa os receba, lorde Jin — disse lorde Caring. O velho veio pessoalmente para a cerimônia, foi o único dos vizinhos a fazer isso.
Parece que ele e o antigo barão tinham uma forte amizade. Seu olhar também estava desanimado.
— Que Namoa os receba, jovem lorde — disse o representante de outro lorde. Seus pares fizeram o mesmo.
Eu então os segui, soltando a mãozinha de Rebecca e dizendo:
— Que Namoa os receba, Jin. — Entretanto murmurei baixinho em seu ouvido: — Ou seja lá qual deus exista de fato…
Ele deu um leve sorriso, mas ainda estava com o aspecto tristonho. Então, em meu coração fiz o sinal da cruz e uma oração silenciosa.
— Amém — murmurei de novo em latim. Jin não entendeu, mas não questionou também.
Mais atrás, percebi que Grace estava com a garotinha Vânia no colo. O pai dela era amigo do casal, o barista loiro que me atendeu outro dia. Ela ainda chorava muito e por isso não me notou.
Ehr… Que Deus a abençoe também!
Em seguida, voltei ao meu lugar com Rebecca e de longe assistimos a cremação. Depois de receber condolências, Jin foi até os cadáveres.
Eles estavam todos juntos, dentro de uns barquinhos a remo que eu e os remulus ajudamos a construir. Mas eles não estavam em um lago, o que achei estranho. Será que vão queimá-los na terra mesmo?
O ato seguinte respondeu essa minha pergunta. Os xamãs do lago gritaram mais algumas palavras e então entregaram a outra tocha a Jin. Ele então as desceu sob as piras, inflamando os corpos ainda em terra firme.
Enquanto isso, eu ouvia vozes chorosas. Elas vinham de todos os lados.
— Eu… huc… queria ter passado mais tempo com meu pai — disse uma mulher.
— E justo agora… que eu ia me casar… Meu pai… disse… que… um garoto só vira homem… huc… quando casa. Droga, papai! Que Manzan o receba! E que Mörnan o ensine a nadar no Rio Mundo…
A maioria das baixas foram de homens adultos e idosos, estes últimos de ambos os sexos. Eles sacrificaram tudo ao ficar pra trás e segurar as aberrações.
Fizeram isso para proteger a fuga de seus filhos e netos. O tio de Jin ficou também para coordená-los. Aquilo me fez mudar de opinião a seu respeito.
“Só se conhece a verdadeira face de um homem durante um momento de dificuldade” — diria meu avô.
Sssssssss! Ssssssssss!
O fogo se alastrou no buraco cavado sobre a terra, onde os barcos estavam. E sim, apesar de ter um rio a poucos quilômetros de Oss, eles ainda fizeram isso em terra-firme. Acho que faz parte do ritual.
Quando as chamas se apagaram, Mark foi até o centro. De suas mãos ele tirou um selo, um documento e um símbolo e entregou o papel carimbado a Jin.
Em seguida, proclamou:
— Eu, Mark da casa GoldWalter, venho aqui em nome de lorde Edward Willblood para transmitir a bênção de Sua Alteza, o Grão-Duque do Oeste, à sua senhoria, Jin da casa Oss, novo senhor de Oss e guardião do Oeste!
Foi então que aplausos soaram em meio ao choro coletivo. Nesse mesmo momento percebi a dualidade da situação. Eles estavam ali para se despedir, mas também para recomeçar.
— Viva a lorde Jin! E que Namoa abençoe o futuro de Oss!
— Viva a lorde Jin! — gritaram os presentes. Alguns deles choraram essas palavras, literalmente.
Bravo! Eu mesmo não recebi uma cerimônia dessas. Na minha vez, Ed só entregou o selo e pronto. Será que é porque meu título é apenas de meia-nobreza? Mas que coisa injusta!
Bem.. o tio dele morreu, então o ciúmes é desapropriado. Mas que eu vou cobrar do Ed no futuro eu vou.
Senti um aperto nas mãos. Era Rebecca me chamando.
— A cerimônia acabou e a partir de agora são só formalidades. Então… que tal voltarmos pra Vilazinha mais cedo, Amor? — propôs minha garota.
— Uhum… vamos voltar…
…
O sol já se punha e o jovem casal ainda estava na estrada, a poucos quilômetros de seu objetivo.
— Obrigado Rebecca — disse Pedro. Suas mãos se enroscaram na dela.
Eles vieram a pé.
— Por que você tá me agradecendo, Amor?
O rapaz sorriu para ela.
— Ainda se fazendo de boba? — questionou. — Tudo bem, eu também adoro esse lado seu…
— Hum?
O real motivo para agradecê-la foi o apoio sutil que ela lhe deu durante a última semana.
Talvez sentindo que seu amado escondia alguma angústia, a garota não só não o questionou sobre os detalhes do incidente como também ficou ao lado dele e o apoiou.
Ela até mesmo coordenou as coisas nas sombras durante esse tempo, atendendo pessoalmente às necessidades dos aldeões e camponeses para que Pedro pudesse se concentrar no socorro a Oss. O jovem lorde ficou sabendo disso pelos recrutas depois.
Por causa disso sua afeição por ela aumentou ainda mais.
E, agora que as coisas estavam bem de novo, ele se sentiu na obrigação de retribuir. Não só a ela como a todos os habitantes de Vilazinha, que sacrificaram o festival em prol dos vizinhos.
Quando o casal estava prestes a atravessar a porta de vila, Rebecca saiu correndo na frente. Pedro estranhou e decidiu segui-la. Foi então que teve uma grande surpresa.
— Viva a lorde Pedro! Herói salvador de Oss e senhor de nossa amada vila! — gritou um aldeão.
— Viva a lorde Pedro! Por salvar meu filho durante o surto! — bradou um camponês segurando uma criancinha no colo. A mulher a seu lado o acompanhou:
— Viva!
Olhando para o lado, ele quase não foi capaz de acreditar. Além dos camponeses que salvou, também haviam os recrutas, junto os agentes da polícia, velha Martha também estava lá com sua neta. E não eram só eles, todos os outros habitantes também estavam ali.
— Ave Marte! — Os dez remulos que ficaram para trás na estrada também estavam ali, junto com seus outros companheiros.
— Salve, jovem lorde! — Até mesmo Mark estava ali. Parece que ele veio de cavalo mais cedo, avisando o resto deles.
— Viva a lorde Pedro, por nos ensinar o que é moda! — gritou uma jovem indecentemente malvestida.
Ele jurou que sentiu um beliscão de Rebecca, mas ela não estava ali. Na verdade, ela sumiu!
“Onde é que ela foi?”, ele se perguntou.
Foi então que, no final do corredor de pessoas, ele a viu. Ela trajava suas vestes normais, sem aquelas vestes cerimoniais pesadas que ele ainda vestia.
— Venha — Ela disse.
Como bom namorado, Pedro obedeceu.
Ao alcançá-la, a garota lhe entregou um anel. Ele tinha um fundo vermelho com três peças de dourado. Analisando de perto, Pedro viu que eram dragões.
— Meu símbolo! — deixou escapar. Em seguida a olhou com encanto e perguntou: — Mas… por quê? Isso deve ter custado muito caro…
A garota sorriu.
— Valeu a pena — murmurou baixinho a garota.
Pedro então a recolheu em um abraço e, olhando sobre as costas delgadas da garota, acabou percebendo os olhares jubilosos de sua população
— Salve o lorde! — Eles gritaram.
“Sim… vovô, eu finalmente estou em casa…”, pensou. Desde que chegou a Ark, aquela foi a primeira vez que uma lágrima de verdade saiu dos olhos do rapaz.